Por
Leonardo Soares dos Santos
Setembro de 1968. A região da Barra da
Tijuca, com as várias obras de melhoramentos realizadas desde a década anterior,
estava exposta “a uma ocupação imobiliária indiscriminada e predatória”, nas
palavras de Lucio Costa. O governador da Guanabara Negrão de Lima encomendaria
àquele o Plano piloto para a urbanização da baixada compreendida entre a
Barra da Tijuca, o Pontal de Sernambetiba e Jacarepaguá, que seria
apresentado em abril de 1969. Com esse instrumento o governo estadual visava
planejar a ocupação da região, evitando o crescimento descontrolado e
destruição do espaço verde. O objetivo do arquiteto, um dos formuladores do
plano de Brasília, era fomentar o crescimento urbano da região, em especial a
parte que compreendia a Barra da Tijuca, porém, “preservando aquilo que chamava
de natureza agreste da região”, segundo Stéfano Salles.[1] Com esse fim, “Costa
definiu os parâmetros para ocupação, como finalidade de cada área, tipo de
construções e gabarito”.
A ideia de planejamento da ocupação de
uma área era crucial. Ela deveria vir antes de tudo. Mesmo antes de qualquer
melhoramento urbano promovido pelo estado. Até porque a expansão urbana sem
planejamento poderia atrair “construções impróprias”, que poderia por em risco
a integridade paisagística da região.
Embora o plano priorizasse a Barra, a
área limítrofe também previa uma série de intervenções sobre os territórios
vizinhos. As que mais diretamente impactavam Gardênia Azul são assim descritas:
As belas várzeas
contidas entre a Pedra da Panela e os morros da Muzema e do Pinheiro, ou entre
os Dois Irmãos e a Pedra Negra, assim como a ampla área que vai do Rio Marinho
ao rio Caçambe e aquela compreendida entre os morros Portela e Amorim, embora
comportem ocupação residencial, deveriam se, de preferência, consideradas para
finalidades que requeiram espaços abertos e ambientação. Além do autódromo, que
já criou raízes, é preciso, por exemplo, reservar lugar para a localização
futura de um novo estádio, de novo prado, de nova hípica, de novos campos de
golfe, e para instalação dos clubes que fatalmente surgirão. E, nesse sentido
recreativo, deve-se igualmente prever a possibilidade de dois ancoradouros, um
na própria Barra, protegido pelo morro da Joatinga, outro no extremo oposto, na
embocadura do canal de Sernambetiba, quebra-mar que servirá também para
resguardá-lo do assoreamento, reservando-se ainda, ali, o recôncavo do Rangel
para os adeptos desse novo devaneio que consiste em acampar.
Lucio Costa não entrava em detalhes de
como deveria ser ocupada Gardênia Azul, mas deixava claro ao mesmo tempo que
entendia a área, assim como a Cidade de Deus, como ocupações que destoavam para
o que eles planejaram como ideal para a área da Barra da Tijuca.
Para esta, o professor Costa se
esmerava no detalhamento do que construir e de como. Tudo indicando que as
áreas deveriam ser ocupadas pelos grupos mais aquinhoados da sociedade:
“edifícios residenciais” com “um sistema térreo autônomo de lojas”, “com passeio
coberto”, junto de “pátios, pracinhas e áreas de recreio para crianças”. Tais
núcleos residenciais seriam “ligados diagonalmente a uma via paralela à BR, ao
longo do canal do Cortado, devidamente alargado e com margens arborizadas”.
Previa-se até mesmo o estabelecimento de “cinemas e outras comodidades”
próximos aos núcleos, “de acordo com a conveniência dos interessados”. Até
mesmo as casas eram minuciosamente detalhadas, com a previsão de construção de
“cerca viva com aramado, portões e eventual pavilhão de caseiro”.
Outro tipo de planejamento foi
concebido para os núcleos residenciais mais modestos, ou no dizer de Lucio
Costa, que “já comportam sólido lastro proletário”. Tal “personalidade” justificaria
que tais áreas fossem transformada numa zona industrial. As sugestões para
essas áreas eram vagas e genéricas. Ao mesmo tempo, a única preocupação que
transparece no projeto piloto sobre áreas como Gardênia Azul não diz respeito
ao seu desenvolvimento e sim com a melhor maneira de escondê-la:
Para melhor delimitação da área, seria
desde já criado ao longo desse eixo, na divisa do bairro Gardênia Azul, uma
densa cortina verde de árvore de crescimento livre, de preferência “ficus-benjamina”,
e as construções, de partido arquitetônico horizontal, seriam dispostas sobre
plataformas e espelhos d’água ligeiramente escalonados, conjunto dominado pelo
edifício-torre de altura monumental.
A maneira como Gardênia Azul era
enquadrada no projeto de Lúcio Costa, em que até a Pedra da Panela tinha mais
“valor paisagístico” do que o bairro, fazia parecer que a localidade parecia
uma anomalia, como algo atrapalhasse a evolução urbana da região da Baixada de
Jacarepaguá.
Não à toa voltaria a tona, inclusive na
imprensa, propostas de desalojamento da população de Gardênia Azul. O trabalho
de Ângela Fontes (Gardênia Azul: o
trabalho feminino na produção do espaço urbano) demonstra que a Companhia
Estadual de Habitação do Rio de Janeiro (CEHAB)
apresentou um projeto de construção de blocos de apartamentos na localidade em
1973. Segundo Fontes, “a solução proposta da Cehab era de retirar a população
da área sob a alegação de que não haveria possibilidade de urbanizá-la de
acordo com o modo como já estava habitada porque as construções já existentes
estariam abaixo do nível do mar” (p. 90).
Mas os moradores, através da Associação
de Moradores, prontamente se mobilizaram e foram pressionar diretamente o
presidente da Cehab, Benjamim de Moraes. Em depoimento dado a Ângela Fontes,
Antonio Silvino, morador de então e que foi um dos protagonistas daqueles
eventos, revelou:
Disse a ele [Benjamim de Moraes] que
nós já tínhamos lutado 15 anos e que lutaríamos mais 20, que o povo estava
preparado para isso. Aí então o professor chamou os outros diretores e convocou
uma reunião. Reunidos ali chegamos à conclusão que o protesto ia continuar, que
devia ser desativado [o projeto de blocos de apartamentos] e que Gardênia Azul
ia continuar conosco. [...] as imobiliárias que exploram a Barra da Tijuca,
como a Sérgio Dourado por exemplo, deveriam estar [envolvidas]... (pp. 90-91).
Diante de tanta resistência, a Cehab recuou.
Ao mesmo tempo, os moradores trataram de pressionar mais o governo estadual
para garantir a efetivação da regularização do loteamento. O que viria ocorrer
em 1973, na administração Faria Lima. A aprovação do projeto de urbanização
demorou um pouco mais, pois a Cehab alegava que as casas tinham sido
construídas abaixo do nível da rua. A associação mobilizou os moradores
novamente e fez correr um abaixo-assinado pelo qual aqueles diziam estar
cientes do problema que era ter suas casas num nível abaixo das obras de
urbanização. Pedro Moreira Pádua, também morador, relembra o fato:
“levantamos... fomos de casa em casa, e apanhamos a maioria de assinaturas
[...]. Entregamos na Cehab e foi encaminhado para a SERLA, [...] nós se
responsabilizava pelas nossas construções.” (p. 92).
Assim, o projeto de esgoto e urbanização
seria finalmente aprovado no final de 1974, durante a administração de Chagas
Freitas. E executado apenas em 1978 na gestão de Marcos Tamoyo (já como
prefeito da cidade do Rio de Janeiro).
O então prefeito Marcos Tamoyo. Gardênia Azul foi reconhecido como bairro em sua administração. https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Marcos_Tamoyo_Rio_Prefeitura_%28cropped%29.jpg
E nesse movimento de intensa
mobilização e pressão das autoridades públicas, o papel das mulheres de Gardênia
Azul foi crucial. Primeiro, elas perceberam que além ou junto com a Associação
Pró-Melhoramentos, outras formas de organização seriam possíveis. Surgirão,
então, várias comissões. A primeira, segundo Ângela Fontes, foi a Comissão de
Solidariedade Humana, que logo depois deu lugar à Comissão de Apoio
Comunitário. A partir delas, várias “campanhas foram lançadas: a) escola
primária, primeiro grau completo, no interior do bairro; b) melhor iluminação,
introduzindo a luz mercúrio; c) canteiro no ponto de ônibus para evitar
atropelamentos e acidentes; d) pavimentação da via 11 e da via 7; e) área de
lazer” (p. 106). Vários abaixo-assinados circularam entre os moradores (três em
15 dias). “Contando com mais de três mil assinaturas, os documentos foram
encaminhados aos órgãos competentes” (Idem).
Havia ainda a Comissão de Senhoras, que
era integrada pelo Departamento da Associação Pró-Melhoramento. “As mais
constantes, anota Fontes, foram: “d. Rosinha Silvino, d. Etilde Pinto Siqueira,
d. Ana Neves Belmonte, d. Branca, d. Sílvia, d. Antônia, d. Maria Silves, d.
Elza, D. Adegair e d. Iracema” (p. 115). Fontes enfatiza ainda que “foi
constante a presença e a atuação das mulheres no interior do bairro, na
manutenção do cotidiano” (Idem).
Outra
forma de organização importantíssima desenvolvida pelas mulheres foi o Clube de
Mães, “que se reunia nas tardes de quartas-feiras”. A descrição de Ângela
Fontes sobre o seu funcionamento é primorosa:
Nesses encontros, ao mesmo tempo em que eram
trocadas experiências sobre os filhos ou sobre como fazer flores de caixa de
isopor, eram passadas mensagens de otimismo a respeito do que estava ocorrendo
nas reuniões com os órgãos públicos e de como vinha sendo encaminhado o
processo da urbanização. Era a forma de mantê-las informadas e ligadas à luta.
[...]
Era, também, a oportunidade que se tinha de
conversar um pouco, de “sair de casa” sem sair do bairro, de aprender algum
outro tipo de trabalho, como um bordado, ou uma pintura, e de ver materializado
um trabalho que não seria consumido imediatamente, que poderia ser visto talvez
por futuros netos e, principalmente, por ela mesma, tempo depois. Além disso,
permitia uma eventual remuneração no caso de uma necessidade. Era a hora de
afastar-se dos problemas resolvidos individualmente e aprender a contribuir com
as próprias ideias e ideais para a solução de problemas coletivos. Era somar,
sentir-se parte de um todo que vai além dos limites da casa, da família. (Gardênia
azul : o trabalho feminino na reprodução do espaço urbano, 1984, p. 116)
As
mulheres, muito mais que os homens, preocupavam-se com a questão das
necessidades do dia-a-dia, das demandas e tarefas ligadas à esfera da
reprodução.
Contudo,
se a luta por melhoramentos e por urbanização proporcionava “um certo conforto
no viver”, também trazia problemas para os moradores mais humildes, que sofriam
com a valorização dos terras. Nota Ângela Fontes que “o imposto predial é
considerado, proporcionalmente, um dos mais altos do Rio de Janeiro, devido à
aproximação com bairros altamente valorizados como a Barra da Tijuca. É alta
também a taxa de lixo, a conta da água e os demais “benefícios” da urbanização
(p. 95). Alguns moradores viram na valorização imobiliária uma possibilidade de
ganhar dinheiro. Segundo Antonio Silvino, em depoimento a Ângela Fontes:
Houve realmente uma debandada muito
grande do bairro. (...) Eles tinham um terreno aqui que para eles não valia
nada, porque até 73 éramos considerados favelas, porque era ilegal. Então, os
moradores não davam muito valor à propriedade deles: porque eles achavam que
era barato por ser favela. Depois que houve a legalização, vieram também os
exploradores, os interesses, que sabem que é uma área de valor. Ofereciam uma
soma e muitos acharam que era vantagem vender e foram vendendo (p. 96).
E
além dessa questão da especulação imobiliária, havia ainda todo o imbróglio com
a Cehab, que seguia cobrando as taxas de urbanização e o imposto predial. Como
o loteamento não era regularizado pelo estado, toda a obra deveria ser arcada
pelos moradores. Havia também a dívida que cada morador ainda pagava pelos
lotes adquiridos junto a José Padilha. Tudo isso tornava ainda incerta e
precária a situação de muitos moradores na localidade. O risco de não conseguir
fazer os pagamentos e ter que deixar Gardênia Azul era algo que estava sempre
no horizonte. Boa parte desse problema seria resolvido com a legalização do
projeto de urbanização de Gardênia Azul e o reconhecimento oficial como bairro
em 1976.
Mas
a legalização não beneficiou a todos os moradores. Muitos deles acessaram as
terras via ocupação direta, que era considerada pelas autoridades como “ilegal”
ou “clandestina”. E boa parte dessas ocupações incidiu sobre lotes que acabaram
sendo abandonados, por saída de antigos moradores ou pela falta de compradores.
Tais ocupantes ainda se encontravam ameaçados de despejo.
O
que fazer com essa gente? Como resolver a situação dos moradores que não tinham
comprado lotes e sim os ocupado? Era a questão mais premente de Gardênia Azul
no raiar dos anos 80.
A
vitória de Leonel Brizola representaria um alento a esse grupo, pois o
histórico líder trabalhista tinha como uma de suas principais bandeiras a
solução da questão habitacional promovendo o acesso a moradia por parte dos
segmentos populares. O programa habitacional “Cada Família, Um Lote” seria
formulado exatamente com esse objetivo: toda família teria direito a um lote em
boas condições, servido por escola, saneado, com atendimento de saúde próximo
da residência. A Secretaria de Habitação, responsável pela execução do
programa, era chefiada por Carlos Alberto de Oliveira, o Caó. A secretaria
ainda era apoiada pelos trabalhos de “regularização fundiária levadas pela
Comissão de Assuntos Fundiários, depois Secretaria de Assuntos Fundiários”,
segundo Vivaldo Barbosa (https://wikifavelas.com.br/index.php/Leonel_Brizola_e_as_favelas_do_Rio).
Ao fim do governo Brizola, “cerca de 41 mil lotes e unidades habitacionais”
foram legalizadas por meio da entrega de “títulos de propriedade em conjuntos
habitacionais, favelas e loteamentos clandestinos em todo o estado”( https://riomemorias.com.br/memoria/a-nova-arquitetura-carioca-acentuar-o-moderno-e-criar-estilo/).
O
programa seria implantado em Gardênia Azul em julho de 1984. No dia 27, o Jornal dos Sports (p. 10) noticiava “a
entrega de Títulos de Propriedade a 96 famílias moradoras do loteamento de
Gardênia Azul, em Jacarepaguá”, com a presença do governador Leonel Brizola, o
prefeito Marcelo Alencar e o secretário Carlos Alberto Oliveira, em solenidade
da Praça Ludovia.
Uma nova fase era inaugurada na história de Gardênia Azul com essa iniciativa de Brizola. A questão da terra não era mais um problema que tirava o sono de seus moradores, como a possibilidade de despejo ou desapropriação da localidade, por exemplo. Mas uma série de outras necessidades e demandas ainda se fariam sentir por anos adiante: as constantes enchentes, falta de escolas, postos de saúde, modernização do sistema de esgoto, violência. E diante disso tudo, os poderes públicos seguiam atuando com lentidão.
A
vida seguiria sendo desafiante para os moradores do bairro. E se tornou mais
ainda com as novas ocupações de terra em áreas vizinhas ao núcleo original a
partir de 1991 (já no segundo mandato de Brizola à frente do executivo
fluminense). Novos agentes (líderes comunitários) e formas de representação
seriam configuradas a partir daí, o território do bairro se ampliaria, assim
como o tamanho da sua população. Gardênia crescia, e o número de seus problemas
também, tornando-se mais complexa e imprevisível. E mais arriscada, em muitos
sentidos.
[1] Disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/blog-do-acervo/post/plano-lucio-costa-responsavel-por-determinar-diretrizes-para-ocupacao-da-barra-da-tijuca-completa-50-anos.html.