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quinta-feira, 20 de junho de 2024

A luta pela terra em Gardênia Azul: 1969-1984 (Última Parte)


Por Leonardo Soares dos Santos

 

Setembro de 1968. A região da Barra da Tijuca, com as várias obras de melhoramentos realizadas desde a década anterior, estava exposta “a uma ocupação imobiliária indiscriminada e predatória”, nas palavras de Lucio Costa. O governador da Guanabara Negrão de Lima encomendaria àquele o Plano piloto para a urbanização da baixada compreendida entre a Barra da Tijuca, o Pontal de Sernambetiba e Jacarepaguá, que seria apresentado em abril de 1969. Com esse instrumento o governo estadual visava planejar a ocupação da região, evitando o crescimento descontrolado e destruição do espaço verde. O objetivo do arquiteto, um dos formuladores do plano de Brasília, era fomentar o crescimento urbano da região, em especial a parte que compreendia a Barra da Tijuca, porém, “preservando aquilo que chamava de natureza agreste da região”, segundo Stéfano Salles.[1] Com esse fim, “Costa definiu os parâmetros para ocupação, como finalidade de cada área, tipo de construções e gabarito”.

 

A ideia de planejamento da ocupação de uma área era crucial. Ela deveria vir antes de tudo. Mesmo antes de qualquer melhoramento urbano promovido pelo estado. Até porque a expansão urbana sem planejamento poderia atrair “construções impróprias”, que poderia por em risco a integridade paisagística da região.

 

Embora o plano priorizasse a Barra, a área limítrofe também previa uma série de intervenções sobre os territórios vizinhos. As que mais diretamente impactavam Gardênia Azul são assim descritas:

 

As belas várzeas contidas entre a Pedra da Panela e os morros da Muzema e do Pinheiro, ou entre os Dois Irmãos e a Pedra Negra, assim como a ampla área que vai do Rio Marinho ao rio Caçambe e aquela compreendida entre os morros Portela e Amorim, embora comportem ocupação residencial, deveriam se, de preferência, consideradas para finalidades que requeiram espaços abertos e ambientação. Além do autódromo, que já criou raízes, é preciso, por exemplo, reservar lugar para a localização futura de um novo estádio, de novo prado, de nova hípica, de novos campos de golfe, e para instalação dos clubes que fatalmente surgirão. E, nesse sentido recreativo, deve-se igualmente prever a possibilidade de dois ancoradouros, um na própria Barra, protegido pelo morro da Joatinga, outro no extremo oposto, na embocadura do canal de Sernambetiba, quebra-mar que servirá também para resguardá-lo do assoreamento, reservando-se ainda, ali, o recôncavo do Rangel para os adeptos desse novo devaneio que consiste em acampar.

 

Lucio Costa não entrava em detalhes de como deveria ser ocupada Gardênia Azul, mas deixava claro ao mesmo tempo que entendia a área, assim como a Cidade de Deus, como ocupações que destoavam para o que eles planejaram como ideal para a área da Barra da Tijuca.

 

Para esta, o professor Costa se esmerava no detalhamento do que construir e de como. Tudo indicando que as áreas deveriam ser ocupadas pelos grupos mais aquinhoados da sociedade: “edifícios residenciais” com “um sistema térreo autônomo de lojas”, “com passeio coberto”, junto de “pátios, pracinhas e áreas de recreio para crianças”. Tais núcleos residenciais seriam “ligados diagonalmente a uma via paralela à BR, ao longo do canal do Cortado, devidamente alargado e com margens arborizadas”. Previa-se até mesmo o estabelecimento de “cinemas e outras comodidades” próximos aos núcleos, “de acordo com a conveniência dos interessados”. Até mesmo as casas eram minuciosamente detalhadas, com a previsão de construção de “cerca viva com aramado, portões e eventual pavilhão de caseiro”.

 

Outro tipo de planejamento foi concebido para os núcleos residenciais mais modestos, ou no dizer de Lucio Costa, que “já comportam sólido lastro proletário”. Tal “personalidade” justificaria que tais áreas fossem transformada numa zona industrial. As sugestões para essas áreas eram vagas e genéricas. Ao mesmo tempo, a única preocupação que transparece no projeto piloto sobre áreas como Gardênia Azul não diz respeito ao seu desenvolvimento e sim com a melhor maneira de escondê-la:

 

Para melhor delimitação da área, seria desde já criado ao longo desse eixo, na divisa do bairro Gardênia Azul, uma densa cortina verde de árvore de crescimento livre, de preferência “ficus-benjamina”, e as construções, de partido arquitetônico horizontal, seriam dispostas sobre plataformas e espelhos d’água ligeiramente escalonados, conjunto dominado pelo edifício-torre de altura monumental.

 

A maneira como Gardênia Azul era enquadrada no projeto de Lúcio Costa, em que até a Pedra da Panela tinha mais “valor paisagístico” do que o bairro, fazia parecer que a localidade parecia uma anomalia, como algo atrapalhasse a evolução urbana da região da Baixada de Jacarepaguá.

 

Não à toa voltaria a tona, inclusive na imprensa, propostas de desalojamento da população de Gardênia Azul. O trabalho de Ângela Fontes (Gardênia Azul: o trabalho feminino na produção do espaço urbano) demonstra que a Companhia Estadual de Habitação do Rio de Janeiro (CEHAB) apresentou um projeto de construção de blocos de apartamentos na localidade em 1973. Segundo Fontes, “a solução proposta da Cehab era de retirar a população da área sob a alegação de que não haveria possibilidade de urbanizá-la de acordo com o modo como já estava habitada porque as construções já existentes estariam abaixo do nível do mar” (p. 90).

 

Mas os moradores, através da Associação de Moradores, prontamente se mobilizaram e foram pressionar diretamente o presidente da Cehab, Benjamim de Moraes. Em depoimento dado a Ângela Fontes, Antonio Silvino, morador de então e que foi um dos protagonistas daqueles eventos, revelou:

Disse a ele [Benjamim de Moraes] que nós já tínhamos lutado 15 anos e que lutaríamos mais 20, que o povo estava preparado para isso. Aí então o professor chamou os outros diretores e convocou uma reunião. Reunidos ali chegamos à conclusão que o protesto ia continuar, que devia ser desativado [o projeto de blocos de apartamentos] e que Gardênia Azul ia continuar conosco. [...] as imobiliárias que exploram a Barra da Tijuca, como a Sérgio Dourado por exemplo, deveriam estar [envolvidas]... (pp. 90-91).

 

Diante de tanta resistência, a Cehab recuou. Ao mesmo tempo, os moradores trataram de pressionar mais o governo estadual para garantir a efetivação da regularização do loteamento. O que viria ocorrer em 1973, na administração Faria Lima. A aprovação do projeto de urbanização demorou um pouco mais, pois a Cehab alegava que as casas tinham sido construídas abaixo do nível da rua. A associação mobilizou os moradores novamente e fez correr um abaixo-assinado pelo qual aqueles diziam estar cientes do problema que era ter suas casas num nível abaixo das obras de urbanização. Pedro Moreira Pádua, também morador, relembra o fato: “levantamos... fomos de casa em casa, e apanhamos a maioria de assinaturas [...]. Entregamos na Cehab e foi encaminhado para a SERLA, [...] nós se responsabilizava pelas nossas construções.” (p. 92).

 

Assim, o projeto de esgoto e urbanização seria finalmente aprovado no final de 1974, durante a administração de Chagas Freitas. E executado apenas em 1978 na gestão de Marcos Tamoyo (já como prefeito da cidade do Rio de Janeiro).

 

O então prefeito Marcos Tamoyo. Gardênia Azul foi reconhecido como bairro em sua administração. https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Marcos_Tamoyo_Rio_Prefeitura_%28cropped%29.jpg

 

E nesse movimento de intensa mobilização e pressão das autoridades públicas, o papel das mulheres de Gardênia Azul foi crucial. Primeiro, elas perceberam que além ou junto com a Associação Pró-Melhoramentos, outras formas de organização seriam possíveis. Surgirão, então, várias comissões. A primeira, segundo Ângela Fontes, foi a Comissão de Solidariedade Humana, que logo depois deu lugar à Comissão de Apoio Comunitário. A partir delas, várias “campanhas foram lançadas: a) escola primária, primeiro grau completo, no interior do bairro; b) melhor iluminação, introduzindo a luz mercúrio; c) canteiro no ponto de ônibus para evitar atropelamentos e acidentes; d) pavimentação da via 11 e da via 7; e) área de lazer” (p. 106). Vários abaixo-assinados circularam entre os moradores (três em 15 dias). “Contando com mais de três mil assinaturas, os documentos foram encaminhados aos órgãos competentes” (Idem).  

 

Havia ainda a Comissão de Senhoras, que era integrada pelo Departamento da Associação Pró-Melhoramento. “As mais constantes, anota Fontes, foram: “d. Rosinha Silvino, d. Etilde Pinto Siqueira, d. Ana Neves Belmonte, d. Branca, d. Sílvia, d. Antônia, d. Maria Silves, d. Elza, D. Adegair e d. Iracema” (p. 115). Fontes enfatiza ainda que “foi constante a presença e a atuação das mulheres no interior do bairro, na manutenção do cotidiano” (Idem).

 

Outra forma de organização importantíssima desenvolvida pelas mulheres foi o Clube de Mães, “que se reunia nas tardes de quartas-feiras”. A descrição de Ângela Fontes sobre o seu funcionamento é primorosa:

Nesses encontros, ao mesmo tempo em que eram trocadas experiências sobre os filhos ou sobre como fazer flores de caixa de isopor, eram passadas mensagens de otimismo a respeito do que estava ocorrendo nas reuniões com os órgãos públicos e de como vinha sendo encaminhado o processo da urbanização. Era a forma de mantê-las informadas e ligadas à luta.

[...]

Era, também, a oportunidade que se tinha de conversar um pouco, de “sair de casa” sem sair do bairro, de aprender algum outro tipo de trabalho, como um bordado, ou uma pintura, e de ver materializado um trabalho que não seria consumido imediatamente, que poderia ser visto talvez por futuros netos e, principalmente, por ela mesma, tempo depois. Além disso, permitia uma eventual remuneração no caso de uma necessidade. Era a hora de afastar-se dos problemas resolvidos individualmente e aprender a contribuir com as próprias ideias e ideais para a solução de problemas coletivos. Era somar, sentir-se parte de um todo que vai além dos limites da casa, da família. (Gardênia azul : o trabalho feminino na reprodução do espaço urbano, 1984, p. 116)

 

As mulheres, muito mais que os homens, preocupavam-se com a questão das necessidades do dia-a-dia, das demandas e tarefas ligadas à esfera da reprodução.

 

Contudo, se a luta por melhoramentos e por urbanização proporcionava “um certo conforto no viver”, também trazia problemas para os moradores mais humildes, que sofriam com a valorização dos terras. Nota Ângela Fontes que “o imposto predial é considerado, proporcionalmente, um dos mais altos do Rio de Janeiro, devido à aproximação com bairros altamente valorizados como a Barra da Tijuca. É alta também a taxa de lixo, a conta da água e os demais “benefícios” da urbanização (p. 95). Alguns moradores viram na valorização imobiliária uma possibilidade de ganhar dinheiro. Segundo Antonio Silvino, em depoimento a Ângela Fontes:

Houve realmente uma debandada muito grande do bairro. (...) Eles tinham um terreno aqui que para eles não valia nada, porque até 73 éramos considerados favelas, porque era ilegal. Então, os moradores não davam muito valor à propriedade deles: porque eles achavam que era barato por ser favela. Depois que houve a legalização, vieram também os exploradores, os interesses, que sabem que é uma área de valor. Ofereciam uma soma e muitos acharam que era vantagem vender e foram vendendo (p. 96).

 

E além dessa questão da especulação imobiliária, havia ainda todo o imbróglio com a Cehab, que seguia cobrando as taxas de urbanização e o imposto predial. Como o loteamento não era regularizado pelo estado, toda a obra deveria ser arcada pelos moradores. Havia também a dívida que cada morador ainda pagava pelos lotes adquiridos junto a José Padilha. Tudo isso tornava ainda incerta e precária a situação de muitos moradores na localidade. O risco de não conseguir fazer os pagamentos e ter que deixar Gardênia Azul era algo que estava sempre no horizonte. Boa parte desse problema seria resolvido com a legalização do projeto de urbanização de Gardênia Azul e o reconhecimento oficial como bairro em 1976.

 

Mas a legalização não beneficiou a todos os moradores. Muitos deles acessaram as terras via ocupação direta, que era considerada pelas autoridades como “ilegal” ou “clandestina”. E boa parte dessas ocupações incidiu sobre lotes que acabaram sendo abandonados, por saída de antigos moradores ou pela falta de compradores. Tais ocupantes ainda se encontravam ameaçados de despejo. 

 

O que fazer com essa gente? Como resolver a situação dos moradores que não tinham comprado lotes e sim os ocupado? Era a questão mais premente de Gardênia Azul no raiar dos anos 80.

 

A vitória de Leonel Brizola representaria um alento a esse grupo, pois o histórico líder trabalhista tinha como uma de suas principais bandeiras a solução da questão habitacional promovendo o acesso a moradia por parte dos segmentos populares. O programa habitacional “Cada Família, Um Lote” seria formulado exatamente com esse objetivo: toda família teria direito a um lote em boas condições, servido por escola, saneado, com atendimento de saúde próximo da residência. A Secretaria de Habitação, responsável pela execução do programa, era chefiada por Carlos Alberto de Oliveira, o Caó. A secretaria ainda era apoiada pelos trabalhos de “regularização fundiária levadas pela Comissão de Assuntos Fundiários, depois Secretaria de Assuntos Fundiários”, segundo Vivaldo Barbosa (https://wikifavelas.com.br/index.php/Leonel_Brizola_e_as_favelas_do_Rio). Ao fim do governo Brizola, “cerca de 41 mil lotes e unidades habitacionais” foram legalizadas por meio da entrega de “títulos de propriedade em conjuntos habitacionais, favelas e loteamentos clandestinos em todo o estado”( https://riomemorias.com.br/memoria/a-nova-arquitetura-carioca-acentuar-o-moderno-e-criar-estilo/).

 

O programa seria implantado em Gardênia Azul em julho de 1984. No dia 27, o Jornal dos Sports (p. 10) noticiava “a entrega de Títulos de Propriedade a 96 famílias moradoras do loteamento de Gardênia Azul, em Jacarepaguá”, com a presença do governador Leonel Brizola, o prefeito Marcelo Alencar e o secretário Carlos Alberto Oliveira, em solenidade da Praça Ludovia.

 

 


Brizola na volta do exílio em 1979. Com ele a questão de terra seria solucionada em Gardênia Azul. Mas não por muito tempo....
https://www.flickr.com/photos/fotosantigasrs/11038141573

Uma nova fase era inaugurada na história de Gardênia Azul com essa iniciativa de Brizola. A questão da terra não era mais um problema que tirava o sono de seus moradores, como a possibilidade de despejo ou desapropriação da localidade, por exemplo. Mas uma série de outras necessidades e demandas ainda se fariam sentir por anos adiante: as constantes enchentes, falta de escolas, postos de saúde, modernização do sistema de esgoto, violência. E diante disso tudo, os poderes públicos seguiam atuando com lentidão.

 

A vida seguiria sendo desafiante para os moradores do bairro. E se tornou mais ainda com as novas ocupações de terra em áreas vizinhas ao núcleo original a partir de 1991 (já no segundo mandato de Brizola à frente do executivo fluminense). Novos agentes (líderes comunitários) e formas de representação seriam configuradas a partir daí, o território do bairro se ampliaria, assim como o tamanho da sua população. Gardênia crescia, e o número de seus problemas também, tornando-se mais complexa e imprevisível. E mais arriscada, em muitos sentidos.



[1] Disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/blog-do-acervo/post/plano-lucio-costa-responsavel-por-determinar-diretrizes-para-ocupacao-da-barra-da-tijuca-completa-50-anos.html. 

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domingo, 3 de março de 2024

A História da ocupação de Gardênia Azul (Parte IV)


POR Leonardo Soares dos Santos, 

Professor de História/UFF, Pesquisador do IHBAJA e do IAP

 

Se não havia dúvidas sobre a inclinação do governo Lacerda pela desapropriação, o que ainda gerava preocupação era a modalidade desta: que tipo de desapropriação pretendia Lacerda realizar? E essa não era uma questão menor. Havia duas formas mais comuns, a desapropriação por utilidade pública e por interesse social. Havia (e ainda há) importantes diferenças entre as duas.

Na primeira, o processo de desapropriação não tem caráter de urgência. Já na segunda forma, a execução teria que se efetivada no prazo de dois anos. Havia uma outra diferença, mais crucial ainda: pela primeira, o executante não era obrigado a conservar os antigos moradores em suas posses. Ou seja, se o Estado quisesse, ele poderia despejar a população de Gardênia Azul para a realização de outro empreendimento. Pela segunda forma, o Estado se via obrigado a prover meios que assegurassem a permanência dos seus moradores no território.

Havia o receio de que por existir perto dali a construção do conjunto da Cidade de Deus, e diante das várias evidências de que Gardênia Azul foi estabelecida num terreno impróprio para ocupação (área alagadiça, antes um verdadeiro brejo, sempre sujeita a alagamentos), Lacerda se decidisse pela transferência dos moradores desta última para a localidade vizinha.

Daí que seus habitantes vissem com grande preocupação a declaração da área abarcada por Gardênia Azul como de “utilidade pública” (o que definia a área a ser objeto de desapropriação). Face a esse acontecimento, Angela Fontes, “a Associação passou a lutar em duas frentes: ao nível do privado, pela legalidade do loteamento feito pelo sr. Padilha, e, ao nível público, contra o interesse do estado em preservar a área para ocupação por uma classe de renda alta” (FONTES, 1984: 79-80).

Pouco tempo depois, as pressões fariam o efeito tão ambicionado. Em 10 de março de 1965, quase um ano depois do Golpe Militar, o governador Carlos Lacerda assinou o decreto de desapropriação da área do loteamento do Parque Gardênia Azul. Argumentava o mandatário que a decisão estava “baseada no fato que os proprietários da área desapropriada descumpriram obrigações com os promitentes compradores dos lotes deixando o ‘Parque Gardênia Azul’ sem urbanização e saneamento e sem condições de habitabilidade” (Diário Carioca, 13/03/1965). 


Diário Carioca, 13/03/1965.

 

Ficava ainda a Companhia Metropolitana de Habitação da Guanabara (COHAB) encarregada de executar a desapropriação e “instrução para mandar urbanizar toda a área”. 

A matéria do Diário Carioca ainda informava que “os compradores dos lotes desapropriados deverão assinar convênio com a COHAB para a execução das obras necessárias ao saneamento e à urbanização do Parque”. 

Antonio Silvino, um dos primeiros moradores de Gardênia Azul (ele dizia ter sido o “sexto”), em entrevista concedida a Angela Fontes na primeira metade dos anos 80, rememora o acontecimento:

Em 1965, o governador Carlos Lacerda queria desapropriar para utilidade pública, o que desapropriava a nós também. Nós resistimos. Mantivemos a posição firme em torno da desapropriação por interesse social, direitos de terceiros e adquirentes. Então, em 65, num dos últimos atos de Lacerda, a assinatura do decreto da desapropriação por interesse social. Muito bem! Mas o Lacerda saiu e ficou só assinatura” (FONTES, 1984: 80).

 

 



Correio da Manhã, 13/03/1965.

 

Em parte, as medidas oficializadas por Lacerda seriam cumpridas. Alguns desses compradores conseguiram regularizar a sua situação junto à COHAB. Porém, vários outros seguiriam lutando para regularizar sua situação 

Mas as obras e melhoramentos prometidos pelo executivo estadual demoraram muito a acontecer. Logo, a penúria perdurava. Nos últimos dias de 1965, matéria do Última Hora traçava um triste retrato das condições de vida na região: 

Também moradores do Bairro Gardênia Azul (Jacarepaguá) foram vítimas da conversa fiada de companhia loteadora. Como acontece com a maioria deles, na hora de vender, nhannhanzinhos, com tranquilidade bovina, prometiam: água, luz, gás, esgoto, arruamentos, o diabo. E nada disso foi feito. Claro. Hoje, cerca de cinco mil moradores comem o pão que o diabo amassou, pois estão no mato sem cachorro. Começa que vivem na mais completa escuridão. Não tem água. Nem telefone. Quanto à condução é a mais avacalhada possível: uma só linha de ônibus e cujos carros, no verão, trafegam com gente pendurada até em coma das rodas, pois vão até a Barra da Tijuca. E quem reside no Gardênia Azul que se dane. Que mofe duas e mais horas à espera que algum passageiro desça e dê uma vaguinha muito espremida. 

E mais: se alguém adoece durante a noite e tem necessidade de socorro urgente, pode ir encomendando o enterro ao papa-defunto porque vai morrer por absoluta falta de recursos! 

É incrível mas verdade. 

Por conseguinte, aos diretores do Dep. de Concessões (hoje com nome complicado pra burro), do Serviço de Aguas e de Energia Elétrica, pra fazerem qualquer coisa pelos moradores do Jardim Gardênia, que de conversa fiada já andam cheios, coitadinhos (Última Hora, 13/12/1965, p. 31). 

 

Diário de Notícias, 13/03/1965.

 

Seria já no Governo Negrão de Lima que o desafio de transformar a “assinatura” de Lacerda em algo efetivo, ou seja, a realização de obras públicas e a garantia da propriedade da terra por parte de seus moradores.

 

Referência bibliográfica:

FONTES, Angela Maria Mesquita. Gardênia Azul: o trabalho feminino na reprodução do espaço urbano. Rio de Janeiro: Dissertação de mestrado, UFRJ/COPPE, 1984.



Continua.......


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quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

A História da ocupação de Gardênia Azul (Parte III)

  A História da ocupação de Gardênia Azul (Parte III)

Leonardo Soares dos santos

Professor de História/UFF

Pesquisador do IHBAJA e do IAP


 Contudo, se a linha adotada pelo governo Lacerda junto às favelas localizadas na zona sul era muito coerente com as estratégias políticas por ele elaboradas, como pensar a questão específica de Gardênia Azul? Como o governo podia lidar com os crescentes problemas da população em termos de precariedade das condições de habitação? Ela não era caracterizada como uma favela passível de ser removida, principalmente por não estar localizada numa área considerada “nobre”. Ao contrário, visto em si, o projeto de ocupação de Gardênia Azul era um exemplo animador para os objetivos de Carlos Lacerda, que esperava urbanizar o quanto antes a Baixada de Jacarepaguá, plano que ele tinha em mente desde os anos 1940, quando era vereador. Tratava-se no fundo de um bairro que contribuiria para a afirmação do caráter crescentemente urbano da região. Daí que a remoção não fosse algo cogitado. A fixação daqueles moradores na localidade era sim o que interessava. Mas, ao mesmo tempo, faltava quase tudo: água, luz, telefone, transporte, esgoto, escolas, postos de saúde.


Carlos Lacerda. Fonte:https://www.camara.leg.br/deputados/130732/biografia.



Mas havia um outro complicador: oficialmente, o loteamento Gardênia Azul era um empreendimento privado, cuja melhoria urbana era de responsabilidade pelo responsável por aquele projeto, o Sr. José Padilha. Portanto não era fácil que os poderes públicos assumissem as tarefas de urbanização da localidade. Isso ficou nítido um ano antes, pois mesmo o governo produzindo um relatório bastante negativo sobre o loteamento, ficava impossibilitado de tomar medidas mais efetivas, já que se tratava de uma área de propriedade particular.

Porém, como vimos nos acontecimentos de 1963, com a ocupação de terras em Urussanga, boa parte dos moradores buscava construir algumas alternativas a esse impasse. Naquele ano, a estratégia consistiu em ocupar terras, pressionando seja o governo federal (de João Goulart) ou o governo Estadual (de Carlos Lacerda) a desapropriar a área. No entanto, a repressão foi intensa, impossibilitando a realização daquele objetivo.

Após esse insucesso, outra alternativa passou a ganhar o horizonte: a possibilidade de desapropriação da própria área de Gardênia Azul. Para isso, era fundamental que se comprovasse que o antigo proprietário não tenha cumprido com o prometido no ato da venda dos lotes. Significativo que alguns movimentos tenham sido realizados nesse sentido. De fundamental importância foi a pressão desses moradores junto às autoridades públicas por meio de denúncias crescentes sobre as péssimas condições de moradia do lugar.

O contexto político pós-golpe tornava tudo mais difícil. Muitas das desapropriações efetuadas pelo governo João Goulart foram anuladas, por exemplo. A desapropriação de terras para fins de reforma agrária acabou se tornando um símbolo da esquerda subversiva e radicalizada – esse foi o discurso difundido pelos setores conservadores que contribuíram para a vitória do movimento golpista que instaurou o regime militar no país. Contudo, o fechamento do regime não foi capaz de paralisar o segmento mobilizado e organizado dos moradores de Gardênia Azul. Mesmo com toda a dificuldade imposta pela nova e dura conjuntura política, eles e elas seguiram exercendo pressão sobre as autoridades políticas da cidade. Em outubro de 1964, “o deputado estadual Rossini Lopes encaminhou requerimento à CPI que apura irregularidades nos loteamentos, encarecendo investigar a respeito da venda de lotes no bairro “Gardênia Azul’, em Jacarepaguá, de propriedade do sr. José Nunes Padilha Coimbra (Diário de Notícias, 13/10/1964, p. 3).”

A insistência das denúncias sobre a precariedade do local e as irregularidades do loteamento tinham todo o sentido. Em que pese o contexto político mais amplo, o interesse pela desapropriação podia ser facilmente acolhido pela administração Carlos Lacerda. Mesmo porque, a desapropriação em questão aqui não era aquela voltada para reforma agrária, mas para o assentamento de população urbana na periferia da cidade. Cabe relembrar que o instituto da desapropriação fazia parte da política habitacional do governo estadual no tocante às favelas, pois era o que viabilizava áreas destinadas para sediar conjuntos habitacionais voltados para as populações transferidas daquelas. Assim, com esse objetivo, o governo promoveu a desapropriação de áreas para a instalação de Vila Kennedy (Senador Camará), Vila Aliança (Bangu), Cidade Alta (Cordovil), Vila Nova Holanda (Ramos) e Cidade de Deus (Jacarepaguá). Segundo ainda Rose Compans, o governo Carlos Lacerda construiu ao todo 10 conjuntos habitacionais, perfazendo um total de 8.869 unidades habitacionais neles distribuídos (COMPANS, 2011, p. 5). E, ainda segundo a autora, três desses conjuntos - Vila Kennedy, Vila Aliança e Vila Esperança – acabaram abrigando “moradores de 32 favelas parcial ou totalmente erradicadas” (Idem).

E o mais relevante para a situação dos moradores de Gardênia Azul: o governo parecia disposto a efetuar a desapropriação de áreas já ocupadas, desde que não estivesse localizada na zona sul, para a fixação de população de baixa renda e, quem sabe, atrair moradores de favelas extintas.

A reportagem do Diário de Notícias do início de 1964, ainda antes do Golpe Militar, é ilustrativa. Com o sugestivo título “Desapropriações para exterminar favelas cariocas” o jornal destacava o plano do governo estadual para “construir, ainda este ano, seis mil casas populares numa área de 700 mil metros quadrados da rua Edgar Werneck, em Jacarepaguá”. As “autoridades estaduais” estariam ainda examinando “a desapropriação de mais duas áreas de terras para a instalação de novos núcleos residenciais, frisando que, quando este programa estiver concluído, o Rio não terá mais favelas nem cariocas vivendo em condições precárias” (04/02/1964, p. 7). Demonstrando apoio irrestrito aos objetivos do plano do governo, o texto ainda sublinhava que “tanto quanto possível”, o executivo procurava “deslocar parte da superpopulação da zona sul para as regiões pouco habitadas”, por meio dos conjuntos residenciais (Idem).

Mas se na zona sul o governo procurava expulsar as populações das favelas, na zona rural e subúrbios a ênfase era exatamente oposta. A administração Lacerda não hesitaria em fazer uso de instrumentos urbanísticos para fixar tais populações na região. Daí que o jornal assim explique o papel das desapropriações na “solução” do “problema” das favelas

O Plano de Urbanização [do governo Carlos Lacerda] começou há pouco mais de dois anos. Durante esse período, o governo construiu casas e transferiu favelas. Por outro lado, atento à “ganância” de proprietários de terras, a atual administração intervém sempre que se torna necessário evitar o despejo de centenas de pessoas (Idem).

 

A matéria finalizava mencionando um exemplo que tinha muitas semelhanças com o caso de Gardênia Azul. Tratava-se da Mangueira, “onde, por decreto, foi feita a desapropriação de toda a área, transformando-a de utilidade pública”. O que demonstrava a inclinação do governo Carlos Lacerda em utilizar a desapropriação como uma saída política para determinados conflitos, e em benefício dos moradores – desde que não habitassem na zona sul. O caso da Mangueira indicava também que a desapropriação, seguida de uma política de urbanização poderia ser benéfica para o capital ligado ao setor da construção civil. Nesse sentido, a reportagem acrescentava que na “Mangueira, a primeira etapa do plano de urbanização está pronta, [...] já tem rua calçada, esgoto e água. Agora esta sendo estudado um programa de loteamento de toda a área para construção de casas de alvenaria” (Idem).  

Não parece sem sentido pensar que Carlos Lacerda visse a desapropriação de Gardênia Azul com bons olhos. É possível que ele passasse a ver a localidade como mais uma área a receber moradores despejados de favelas erradicadas na zona sul.

Outro ponto que não pode ser negligenciado no debate sobre essa conjuntura dos anos 1964 e 1965, a parte final do governo Carlos Lacerda, é o grande desgaste que este sofreu pela radicalidade e violência da sua política remocionistaGonçalves lembra ainda que até mesmo as agências financiadoras da política habitacional lacerdista teceriam críticas a sua estratégia de remoção violenta.

Mas é também possível que a desapropriação visada por Lacerda pudesse ser ruim também para os seus humildes moradores. É possível que o governador tivesse planos de expulsar todos dali. E essa possibilidade não era infundada. 

E isso passou a assombrar os moradores de Gardênia Azul nos primeiros meses de 1965.



Continua......

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terça-feira, 2 de janeiro de 2024

 A História da ocupação de Gardênia Azul (Parte II)

Leonardo Soares dos santos

Professor de História/UFF

Pesquisador do IHBAJA e do IAP


A vida propriamente dita no Parque Gardênia Azul não era das mais fáceis no início dos anos 60. 


Em sessão da Assembleia Legislativa da Guanabara, o deputado Valdemar Viana (Partido Republicano Trabalhista) apresentou requerimento por “informações indagando porque o proprietário do loteamento ‘Gardênia Azul’, em Jacarepaguá, não respeita a lei 6.000” (Tribuna da Imprensa, 26/01/1961, p. 4).





http://urbecarioca.com.br/um-passeio-pelos-cantos-e-encantos-historicos-de-jacarepagua-parte-1-de-marcelo-copelli/


As queixas dos moradores se multiplicavam. No início de 1962, uma comissão de moradores visitaria a redação do jornal O Globo, “solicitando que divulgássemos os memoriais em que pedem providências ao Governador Carlos Lacerda para irregularidades que afirmam existir” no local. Segundo o “memorial com dezenas de assinaturas, residem 866 famílias, que estão privadas de água, luz, escolas e outras tantas necessidades, pelo que desejam que a administração do Estado constate diretamente tais irregularidades para as necessárias providências” (O Globo, 15/01/1962, p. 14).


O semanário comunista Novos Rumos noticiava no início de agosto de 1962, em matéria intitulada “Moradores do Parque Gardênia Azul vítimas da especulação imobiliária” que eram 600 famílias, “totalizando cerca de três mil pessoas”, tinham se organizado em torno da “Associação Pró-Melhoramentos do Bairro Gardênia Azul” para a defesa de seus interesses. Era, segundo o jornal, o início da “luta contra os danos, que lhes vêm causando comerciantes e corretores de imóveis”.


O jornal detalhava a fundo várias denúncias dos moradores. Segundo o Novos Rumos, os moradores teriam sido vítimas de um “conto”, que foi o que consistiu, segundo o jornal, as promessas oferecidas pela empresa aos compradores dos lotes:

Afirmando aos interessados que a área do atual Parque Gardênia Azul constava do “plano de reloteamento em processo na prefeitura do Distrito Federal, de acordo com planta aprovada sob o numero 18 328, em 24 de julho de 1955” a firma José Padilha Nunes Coimbra vendeu ali dezenas de lotes de terreno para a construção de residência. As operações de vendas e contratos foram feitas por intermédio do corretor Denize Michel Emanuel, estabelecido em escritório na Praça Mauá, 7, quinto andar (Novos Rumos, 3 a 9 de agosto de 1962, p. 7).


Após a compra, segundo o que afirma o jornal comunista, os compradores se deparariam com uma situação totalmente destoante do que havia sido anunciada: 


Acontece entretanto que toda a imensa área não consta de plano algum de urbanização do Estado: ao contrário do que asseguravam os vendedores dos imóveis. Assim as famílias que compraram os terrenos, ou não construíram suas casas ou as construíram e estão morando numa zona sem iluminação, sem rede de esgotos e sem água, uma vez que tais melhoramentos, indispensáveis ao preenchimento de condições mínimas de habitabilidade, não tiveram sua instalação providenciada pelo governo do Estado. Os compradores dos terrenos não escondem sua revolta contra o engodo de que foram vítimas. Muitos deles chegaram mesmo a suspender o pagamento das prestações dos lotes (Idem).


Ainda segundo o periódico, dois quadros políticos ligados ao PCB, o deputado estadual Hércules Corrêa e o jornalista Marco Antonio Coelho, teriam participado de um debate com os moradores da localidade “em assembléia popular”, “para a qual foram convidados”, com o intuito de discutir “problemas referentes à carestia e à necessidade das reformas de base. Junto a questões típicas da militância partidária, o jornal asseverava que os representantes comunistas “ficaram a par da ‘desenvoltura’ com que agiram os especuladores de imóveis contra os moradores da região”, e, garantia o Novos Rumos, ambos “prometeram incorpora-se à sua luta” (Idem). Com esse propósito, Hercules Correa teria solicitado em requerimento apresentado em sessão da Assembleia Legislativa, no dia 17 de julho (o debate ocorreu em 1º de julho), informações ao poder executivo do Estado sobre o Parque Gardênia Azul.


1 – A quem pertencem os lotes agrícolas de números 1 a 11 e de 33 a

49, situados em Jacarepaguá?

2 – A antiga prefeitura do Distrito Federal, hoje governo do Estado da

Guanabara, ao aprovar a planta dos citados lotes (processos número

18.328 de 24 de julho de 1955) que permissão legal deu ao

proprietário dos mesmos?

3 – Quais as providências legais que dispõe o poder executivo para

legalizar a situação dos que residem na área dos citados lotes? (Idem)


Significativo que logo depois desse pronunciamento, a administração estadual se apressasse para apresentar propostas de intervenção na localidade. Até para que o Gardênia Azul não se tornasse facilmente numa espécie de base política dos grupos de esquerda.


Tendo isso em mente, em outubro daquele ano, o governador Carlos Lacerda anunciava a execução de obras de urbanização e saneamento na “favela” Gardênia Azul (A Noite, 03/10/1962, p. 2). O anúncio era um indicador de que as demandas dos moradores encontravam algum eco na esfera governamental estadual. Curiosamente, o reconhecimento de que havia algo de errado nas condições de moradia da localidade era o fato de imprensa e poder público começarem a nomear Gardênia Azul não como um “loteamento” e sim como “favela”. 


Mais do que isso, o anúncio estava relacionado a um importante aspecto conjuntural. O governo Carlos Lacerda iniciava uma campanha agressiva de "remoções de favelas e buscava complementar tal iniciativa investindo na construção de conjuntos habitacionais. Para tanto, ele começou a procurar vultosas fontes de financiamento junto aos órgãos exteriores, especialmente estadunidenses, já que a possibilidade de financiamento por vias internas encontrava-se bloqueado devido às disputas políticas com o governo presidencial de João Goulart, herdeiro do varguismo e adversário político e ideológico do representante udenista. 


Por essa razão, Gardênia Azul poderia cumprir até mesmo um papel nessa nova estratégia de Lacerda, da mesma forma como os conjuntos habitacionais de Vila Kennedy e da Cidade de Deus. Talvez Lacerda enxergasse o local como o destino de pessoas expulsas do Leblon ou Humaitá. O Jornal do Commércio (07/10/1962, p. 7) dava maiores detalhes, que nos ajudam a visualizar melhor o cerne da proposta do governo. A decisão pela intervenção urbanística do governo Lacerda teria como base o “relatório apresentado pela Administração Regional de Jacarepaguá, contendo uma série de sugestões relacionadas com o saneamento e urbanização da favela Gardênia, local que naquele momento abrigava 2.300 pessoas. Segundo o jornal, o administrador Mário Campelo afirmava no relatório “serem ‘péssimas e inferiores ao mínimo tolerável de desconforto’ as condições de vida daquela favela”. O administrador ainda se mostrava pessimista quanto à realização de melhorias por parte do autor do loteamento. Além de explicar as razões de tal pessimismo, ele apresentava ainda uma denúncia quanto à legalidade do empreendimento:


[O administrador Mário Campelo] Ressalta que o proprietário da área ocupada pela favela Gardênia Azul nada faria para executar as obras de urbanização porque: a) venderá os lotes a preços baixíssimos, cujas prestações variam em torno de Cr$ 60 a Cr$ 100 por mês e por terem alguns lotes sido também invadidos; e b) o projeto de loteamento não chegou a ser aprovado” (Idem).


Não obstante a falta de confiança na realização de mudanças efetivas na situação do Gardênia Azul, Mário Campelo apresentava algumas “sugestões” a serem ponderadas:


1) O proprietário deve realizar obras de urbanização; 2) essas obras devem ser fixadas em função do resultado financeiro da venda dos lotes vagos e do reinício do pagamento dos lotes vendidos, paralisado há tempo; 3) deve ser aprovado um projeto de loteamento, modificando o atual, para que os moradores tenham seus títulos de propriedade e, com eles, garantia para efetuar os pagamentos das prestações; 4) o Governo providenciaria também, a curto prazo, para que água e luz cheguem até às portas do loteamento (Idem).


As sugestões seriam consideradas pelo governo. Nota-se que em nenhum momento se aventa a possibilidade de desapropriação. Mesmo que o relatório aponte a possibilidade de irregularidades, nas soluções apontadas pelo administrador regional, o governo teria que estabelecer ações conjuntas com o proprietário. Este seguiria recebendo os pagamentos pelos lotes e ficaria responsável pelas obras de urbanização, sendo que serviços como água e luz ficariam a cargo do governo. Na proposta de Campelo, abria-se até mesmo a possibilidade de refazer o projeto de loteamento. Ou seja, em que pese a gravidade da situação dos moradores, a administração regional seguia considerando o proprietário como um parceiro e não como um antagonista.


Na verdade, o governo Lacerda tinha a intenção de atuar como um intermediário do conflito entre moradores e proprietário (José Padilha). Ainda segundo o relatório, deveria haver “a assinatura de um acordo entre o proprietário e os moradores, com a interveniência da Fundação Leão XIII, pelo qual se fará o controle da receita e a execução das obras fixadas no termo de obrigações, e pelo qual pagará o proprietário à Fundação Leão XIII o valor de seu trabalho” (Idem).


Continua.........

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domingo, 30 de julho de 2023

A História da ocupação de Gardênia Azul: anos 1950



Por Leonardo Soares dos Santos

Professor de História e membro do IHBAJA


O território da Gardênia Azul faz parte do que já foi um dia o Engenho D’Água de Jacarepaguá. Ele pertenceu a diferentes donos ao longo de mais ou menos três séculos - todos eles pertencentes à família Correia de Sá. No século XIX, o então proprietário das terras, o sexto Visconde de Asseca José Maria Correia de Sá, que passava por sérios problemas financeiros, decidiu vender a propriedade ao Comendador Francisco Pinto da Fonseca (pai do Barão da Taquara).


Em meados dos anos 1950, ele constava como sendo de propriedade de José Padilha Coimbra, empresário rico e com bens espalhados por toda a cidade.




https://www.guiajpa.com.br/gardenia-azul/


Em 1953, ele resolve lotear sua fazenda, criando o Parque Gardênia Azul (planta que cultivava à larga em sua propriedade). Tão logo foi aprovado, o projeto do loteamento Gardênia Azul começou a ser anunciado nas páginas dos jornais em 1954.


Tão logo foi aprovado, o projeto do loteamento Gardênia Azul começou a ser anunciado nas páginas dos jornais em 1954. 



Anúncio de venda de lotes no Parque Gardênia Azul na Gazeta de Notícias, 4/12/1954, p. 5.



Carolina Zuccarelli Soares apresenta um importante aspecto da história de ocupação do território em sua dissertação sobre “as diferentes estratégias de  escolarização utilizadas por famílias de segmentos populares na Gardênia Azul”, lembrando que nos primeiros anos, “o pedreiro Severo Silveira Maciel construiu grande parte das casas na região tornando-se, posteriormente, líder comunitário” (p. 53) 


Num verbete sobre o bairro que corre por diversos sites na internet é comum encontrarmos a versão de que a implantação do seu “núcleo” - ou seja, a concretização do loteamento - teria se dado nos anos 60. Mas a história não foi bem essa. A ocupação do território já havia sido iniciada poucos anos depois da aprovação do projeto nos anos 50. Mas, é certo que tudo era muito difícil nos primeiros anos de consolidação do bairro. Sintomática era a forma como o bairro de Gardênia Azul era retratado nas poucas vezes que estampavam alguma nota nas páginas da imprensa carioca. O território aparecia muito associado a um local perigoso, violento, vicioso e refúgio de criminosos.


Em oito de agosto de 1955, o Diário da Noite estampava na página 10 a notícia de um sério conflito entre vizinhos no “Parque Gardênia Azul”, ocasionando um “ferimento penetrante no occipto-frontal” de Carlos Chagas Alvaro, na época com 25 anos. Segundo a reportagem, Carlos morava na “quadra 13, lote 10”. A contenda com os seus vizinhos Antonio Ribeiro de Oliveira e Domingos Lopes de Oliveira, teria sido motivada por “uns centímetros de terra”. Assim, no “auge da discussão, os dois, empunhando foice e enxada, respectivamente, o agrediram, após o que Antonio conseguiu fugir, sendo o outro detido pela guarnição da Patrulha 5”.


Ainda no final da década de 50 pululavam pelo noticiário carioca dando conta da ocorrência desses fatos. Em cinco abril de 1958, o Última Hora noticiava a morte a foiçadas de “Cachaça”, apelido do operário Jocelino Gomes de Sousa. Eis o que relatava a reportagem “Abatido a Foice no Parque Gardênia Azul”:


Seriam pouco mais de zero hora de sexta-feira quando o operário Rubem Silva (Rua “D”, sem número, Parque Gardênia Azul) ouviu forte discussão entre duas vozes masculinas e a seguir um baque surdo de algo caído. Mas como fôsse tarde e o lugar abandonado de policiais, foi dormir. Pouco depois era acordado pelo Comissário Nogueira Guedes, do 26º Distrito, que investigava o assassinato de Jocelino Gomes de Sousa, vulgo “Cachaça”, operário, casado, morador à Estrada da Água, 45. Segundo ficou apurado a vítima havia sido assassinada possivelmente a golpes de foice, pois apresentava dois profundos ferimentos na cabeça e pescoço. Ninguém que pudesse dar informações pelas redondezas, afora a testemunha já citada. O corpo fóra achado pelo motorista de praça Maurício Cesar de Andrade (Conselheiro Rubens de Melo, 581, Jacarepaguá), quando voltava da residência de um freguês. Foi pedido o auxílio da perícia e da Polícia Técnica, tendo comparecido por esta última, o Detetive Nielsen Kauffman. O autor do homicídio é inteiramente desconhecido (p. 8)



Mas para o que nos interessa aqui, muito mais importante do que analisar a associação que a imprensa faz da região como um espaço perigoso, é observar que muitas das pessoas citadas nas reportagens já moravam na região. A briga envolvendo Antonio Ribeiro e seus vizinhos em 1955, o assassinato de Jocelino em 1958, as testemunhas arroladas - todos eles moravam em Gardenia Azul, num determinado lote, inserido numa quadra e rua. O loteamento já estava sendo ocupado desde então. Porém, era uma ocupação precária em seu conjunto. As condições de vida na região eram difíceis.


Diante de tantos problemas observados, um fato novo começa a ganhar corpo na cobertura jornalística sobre o bairro. Desde o início dos anos 60, vários jornais passam a noticiar declarações de personalidades políticas em favor de melhorias no Gardênia Azul. Em maio de 1960, por exemplo, o então deputado federal pelo PSB Breno da Silveira teria ido “cobrar do Governador as promessas feitas ao povo carioca”, entre os pedidos constava a demanda por “água e luz para o bairro Gardênia Azul, hoje transformado pelo abandono, num antro de viciados em maconha e outros vícios”, complementava o Última Hora (30/5/1960, p. 2).


Após os primeiros anos de consolidação, a luta pela melhoria das condições de moradia seria o grande desafio dos anos 1960. E o crescente interesse de lideranças políticas sobre o assunto foi um importante sinal. 


Trataremos disso no próximo artigo.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


“Gardênia Azul”. Disponível em: https://www.guiajpa.com.br/gardenia-azul/. Acessado em: 28/07/2023.


SOARES, Carolina Zuccarelli. Segregação urbana, geografia de oportunidades e desigualdades educacionais no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Tese (mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, 2009.


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