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quarta-feira, 17 de março de 2021

Stella do Patrocínio: marginalizada e poetisa

 Por Janis Cassilia, pesquisadora do IHBAJA

Professora de História e mestre em História das ciências e da Saúde

Stella do Patrocínio nasceu em 1941. Era uma mulher negra e pobre cujo sustento era mantido pelo seu serviço como empregada doméstica. Era solteira, gostava de óculos de sol, caixa de fósforo, cigarro, Coca-Cola, leite condensado e biscoito de chocolate. Era alta e tinha porte de rainha. Não sabemos muito de sua história antes da internação. Em sua ficha as informações diziam apenas que foi abordada pela polícia no bairro de Botafogo, em 1962, quando pretendia tomar um ônibus para a Central do Brasil. Levada pela viatura policial até o pronto de socorro mais próximo, foi encaminhada ao Centro Psiquiátrico Pedro II, no Engenho de dentro, onde se tornou um “sujeito psiquiatrizado”. Em 1966, foi transferida para o Núcleo Teixeira Brandão, na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, local em que ficou até sua morte em 1992. Junta de Stella viviam outros quase 6 mil internos no complexo de hospitais da Colônia. Encarcerados, esquecidos e marginalizados.

Stella do Patrocínio
 

O perfil de Stella é o mais encontrado nos arquivos de hospitais psiquiátricos durante o século XX: mulheres negras e pobres, muitas analfabetas, que sabiam, talvez, assinar apenas o próprio nome. Consideradas indigentes, passaram longo tempo internadas, sem visitas regulares e com poucas anotações médicas em seus prontuários. Períodos de 10, 20 anos ou mais de internação que se refletem em prontuários vazios, quase em branco, muitos sem fotos, com informações escassas (diagnósticos, evasões, alguns exames ou anotações de tratamento e por fim o motivo da morte). Eram enterradas como indigentes. Esses prontuários expressam a ausência de voz dessas mulheres, silenciadas pelo sistema manicomial.

 A história de Stella teria o mesmo fim que tantas outras mulheres institucionalizadas se não fosse os esforços de técnicos, médicos, familiares e indivíduos contra o modelo manicomial psiquiátrico da época. Junto de outras mulheres participou do “Projeto de Livre Criação Artística” que funcionou na Colônia entre 1986 e 1988, conseguindo através da poesia que sua voz fosse ouvida. O seu falatório (oratória) expressa críticas à vida dentro da Colônia, ao controle de sua vida, corpo e à sociedade. Com a interrupção do projeto em 1989, foi realizado uma exposição com os principais trabalhos no Museu do Paço Imperial, entre eles o de Stella. Junto dela é importante mencionar o nome das outras artistas: Iracema Conceição dos Santos, Maria Hortência Bandeira da Costa, Maria José, Carolina Vieira Machado, Januária Marta de Souza e Simone Faria Maciel.

 O trabalho de registro do falatório de Stella do Patrocínio continuou entre 1990 e 1991 resultando entre outros produtos em um livro de poesias transcritas dos áudios dos falatórios de Stella, intitulado “Versos, reversos, pensamentos e algo mais ...” (1991).

Mais livros e homenagens foram criados e realizados após sua morte. Neste mês de reflexão sobre a luta pelos direitos das mulheres, personagens como Stella do Patrocínio que mantiveram suas vozes, em meio a uma morte social, são importantes para entendermos e refletirmos sobre a nossa sociedade atual. Para além da luta manicomial pelo qual Stella é um dos ícones e destaque, esta mulher, negra, pobre, psiquiatrizada tornou-se uma voz poderosa.

Alguns poemas de Stella do Patrocínio:



Olha quantos estão comigo

olha quantos estão comigo
estão sozinhos
Estão fingindo que estão sozinhos
pra poder estar comigo



Eu era gases puro

eu era gases puro, ar, espaço vazio, tempo
eu era ar, espaço vazio, tempo
e gases puro, assim, ó, espaço vazio, ó
eu não tinha formação
não tinha formatura
não tinha onde fazer cabeça
fazer braço, fazer corpo
fazer orelha, fazer nariz
fazer céu da boca, fazer falatório
fazer músculo, fazer dente
eu não tinha onde fazer nada dessas coisas
fazer cabeça, pensar em alguma coisa
ser útil, inteligente, ser raciocínio
não tinha onde tirar nada disso
eu era espaço vazio puro.

Referências:

CASSILIA. Janis A. P. Doença Mental e Estado Novo: A loucura de um Tempo. Dissertação no PPGHCS,. Rio de Janeiro, 2011.

VENANCIO, A. T. A. ; CASSILIA, J. A doença mental como tema: uma análise dos estudos no Brasil. Espaço Plural, v. 11, n.22, pp. 24-34, 1º. sem. 2010. 

ZACHARIAS, Anna C. V. Stella do Patrocínio ou o retorno de quem sempre esteve aqui. Revista Cult, 2020. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/stella-do-patrocinio-retorno-sempre-esteve-aqui/. Acesso em: 08 mar. 2021.

ZARA, Telma B. de M. "Eu sou um anega, preta e crioula": gênero e identidade na obra de Stela do Patrocínio. Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. Disponível: http://www.fg2013.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/20/1377028465_ARQUIVO_Texto_Completo_Fazendo_Genero_-_Telma_Beiser_de_Melo_Zara.pdf. Acesso em: 06 mar 2021.











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quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

PROBLEMAS SOBRE TRILHOS: o sistema de bondes em Jacarepaguá e os moradores descontentes

 


Os problemas com o transporte público em Jacarepaguá não são recentes. Todo morador da região que depende de ônibus ou BRT já teve que: 1. Acordar ou sair cedo, 2. Se acostumar com veículos lotados, 3. Pagar uma tarifa considerada cara por um serviço mal prestado, 4. Se acostumar com as constantes obras para “melhorar” o trânsito. Essa situação persiste desde a inauguração do primeiro transporte público que ligou o bairro ao restante da cidade: o bonde.

A linha de bonde inaugurada em 1875 aproximou Jacarepaguá do restante da cidade. Naquele ano foi inaugurada a Companhia Carril-Jacarepaguá com o sistema de bonde com tração animal. Em 1911, a Light comprou a companhia e se comprometeu a eletrificar o sistema até 1912. Fato que não se concretizou em sua totalidade. Em 1924, o Sr. Arthur Menezes, representante da Freguesia de Jacarepaguá na Assembleia Legislativa, protestou contra o projeto nº 83 do mesmo ano que exigiria a construção de muros (em zonas urbanas), cercas (zonas rurais) e calçadas (passeios) pelos moradores das residências cujas ruas passavam a linha de bonde. Menezes protestou pela injustiça da medida já que em Jacarepaguá o bonde que deveria ser eletrificado ainda era de tração animal. Em 1927, somente as linhas para o Tanque e Freguesia eram eletrificadas enquanto a demanda de usuários crescia vertiginosamente.

Em 1923, com o progressivo fechamento das Colônias Agrícolas da Ilha do Governador e do Hospício da Praia Vermelha, parte dos pacientes foi transferida para a Colônia de Psicopatas Homens de Jacarepaguá, à época em fase de construção (foi inaugurada em 1924). A transferência, segundo autoridades da época, realizou-se com os pacientes acorrentados nos vagões de trem até a estação de Cascadura e de lá até a Colônia através de carroças.

Um artigo publicado no “O Jornal”, em outubro de 1927, abordava a falta de organização na integração dos sistemas de Trens e Bondes em Jacarepaguá, gerando transtornos graves. Uma das principais queixas eram os horários das saídas e chegadas desses transportes, pois o trem com passageiros chegava em Cascadura cinco minutos depois da saída do bonde em direção à Jacarepaguá. Com intervalos de mais ou menos uma hora entre si, o passageiro que chegava às 15h35 em Cascadura perdia o bonde que saía às 15h30, só restando esperar pelo horário de 16h30 ou ir a pé até em casa.

Para além desses problemas, os bondes eram mal conservados e não forneciam segurança adequada para os passageiros. Existem várias reportagens da época que mostram pessoas presas entre bondes, automóveis e/ou carroças, brigas entre motoristas com ferimentos por arma branca, atropelamentos de pedestres e de animais.

Na década de 1940, a linha chegava até a Freguesia ou, como diziam,  “Porta d’Água”. Mas esse transporte não veio acompanhado de uma infraestrutura básica para seu funcionamento.  Em janeiro de 1940, uma obra da linha da Light de bondes trazia transtornos para os moradores do bairro. O largo do Tanque havia se tornado um verdadeiro campo de guerra, fazendo o ir e vir dos moradores ser um verdadeiro tormento. Um morador da região escreveu uma carta ao Jornal do Brasil reclamando da situação da obra e dando um panorama da situação: quebra-quebra, materiais da obra pelas ruas, sujeira e poeira, transtornos para pedestres e motoristas. Não parece uma situação atual no bairro? Em outra data, o mesmo jornal aponta um engavetamento de bondes ocorrido no mesmo largo, com vários feridos.

Jacarepaguá era, nessa época, um local cortado por sítios e fazendas com três grandes hospitais. Alguns redutos como Tanque, Pechincha, Freguesia e Praça Seca apresentavam pequenos comércios e algumas características urbanas. Em 1943, foi inaugurada a atual Avenida Menezes Côrtes ou Serra Grajaú-Jacarepaguá, para facilitar a locomoção entre a Baixada de Jacarepaguá e o restante da cidade. Dentro de Jacarepaguá também havia mudanças, os carros tornaram-se mais utilizados e os taxis rodavam pelas ruas levando gente para dentro e fora da região.

Mas para o autor da carta ao Jornal do Brasil, faltava interesse das autoridades em melhorar o serviço público de transportes. Para ele, Jacarepaguá era um lugar de beleza selvagem, e que continuava selvagem na sua infraestrutura. Ele cobrava atitudes das autoridades e mais comprometimento do prefeito da época.

Um número maior de carros passou a circular pelas ruas e, por consequência, aumentou a quantidade de acidentes. Em 1950, um taxi em alta velocidade bateu em um bonde, ferindo muitas pessoas que foram atendidas no Hospital do Meyer, localidade bem distante de Jacarepaguá. Os jornalistas aproveitaram para encher as páginas de fotos dos feridos. Era um jornalismo que vendia e vende até hoje o sensacionalismo! Os bondes foram desativados em 1964 e substituídos pelos ônibus.

 

                                                                                                                    Janis Cassília


Legenda foto:

Bonde elétrico circulando no Rio de Janeiro.

Disponível em: http://memoriacarris.blogspot.com/2014/

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domingo, 3 de janeiro de 2021

A Escola 7-19: ter ou não ter uma escola dentro da Colônia Juliano Moreira.

 


Durante muito tempo perguntou-se se a loucura era “contagiosa”. Estar próximo de loucos podia prejudicar a mente sadia? Na história da psiquiatria brasileira, alguns médicos defenderam a ideia de que, ao invés de se isolar o doente, o ideal seria reinseri-lo na sociedade. A Colônia Juliano Moreira nasceu com esta ideia.

Fundada em 1924, a Colônia Juliano Moreira, tinha como base o convívio controlado dos pacientes em um ambiente social sadio. Para isso foi criada uma vila de moradores, isto é, aqueles considerados “bons funcionários” e suas famílias eram convidados a residirem dentro da propriedade, ganhando terrenos para construírem suas casas. Esse foi o embrião do atual bairro Colônia. Com o tempo essa vila de moradores cresceu e começou a reivindicar melhorias no transporte, luz urbana, calçamento e estradas, parque, creche e escola. Parte dessas reivindicações foram atendidas pelo Governo Federal. Uma delas foi a criação da Escola 7-19, em um pavilhão, para atendimento dos filhos desses funcionários.

A Escola 7-19, hoje (Escola Municipal Juliano Moreira) encontra-se em outro prédio, logo na entrada da Colônia, no antigo pavilhão de atendimento a crianças e adolescentes do sexo masculino. Mas em 1943, o pavilhão utilizado, apresentava sinais de desgaste, além de um número de alunos que não pertencia à comunidade interna da Colônia. A escola cresceu e ganhou mais professoras. De fato, Jacarepaguá, era bastante deficiente em escolas. Segundo uma estimativa da época, eram necessárias 35 escolas para suprir a população da região. Mas qual a particularidade da Escola 7-19? Ela fez parte de um movimento social dentro da Colônia. Os hospitais psiquiátricos possuem como característica a “morte social” do paciente. Eles perdem suas famílias, amigos e identidades; passam a ser identificados e rotulados por números e diagnósticos. Para reinseri-los na sociedade, os dirigentes da Colônia criaram essa vila, onde os pacientes eram recebidos por famílias que conheciam seus temperamentos, gostos, fobias, manias, diagnósticos e histórias de vida.

Para os moradores, a existência dessa escola era vista por uns como problemática e por outros como justificável. Na Mesa Redonda  promovida pelo Jornal “Diário de Notícias” em 1943 e com a participação de personagens de destaque do Rio de Janeiro, a grande discussão girava na inconveniência da localização da 7-19. A Sra. Dyla Sá (educadora) relatou que uma das professoras ficou doente diante das cenas que presenciou. Ela se posicionou contra a existência dessa escola. O sr. Válter Rocha Miranda alertava que a escola servia apenas para funcionários, mas o Sr. Edmundo Melo declarava que a maior parte dos alunos não eram filhos de funcionários. Um funcionário da Colônia, de nome Bento Monteiro, afirmou que se os médicos não viam inconveniências na existência da escola porque eles veriam? A reportagem mostra como era a visão da loucura e a relação entre psiquiatras e moradores. Nem sempre a decisão médica era vista como benéfica. Como poderiam alunos inocentes conviver com loucos? Deveriam transferir a escola de local?

Outros problemas foram levantados: a falta de condução para as professoras, o funcionamento da segunda série escolar em um galpão improvisado, e a promessa de novas instalações para a escola. Mas a questão da Escola 7-19 estar dentro da Colônia foi muito forte. Diversas opiniões foram ouvidas, sem se chegar à um consenso. Ainda que tenha mudado para outro prédio, mais adequado às suas funções, a Escola 7-19 atravessou as décadas e deu origem à Escola Juliano Moreira. Passou a atender oficialmente alunos de fora da Colônia. Com a chegada da década de 1970 e a Reforma Psiquiátrica, algumas das antigas instalações da Colônia foram sendo desativadas e a internação passou a diminuir. O número de moradores aumentou, passando seus filhos a serem alunos da antiga Escola 7-19, outrora pioneira na promessa do tratamento da doença pelo convívio com as “boas famílias” da Colônia Juliano Moreira.

                                                                                                                           Janis Cassilia

                                                                                                                                                         Professora e pesquisadora do IHBAJA
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terça-feira, 29 de dezembro de 2020

A atuação do IHBAJA em 2020 e novas perspectivas para 2021

 


O ano de 2020 foi atípico. Começou com notícias sobre a COVID-19 na china e termina em um cenário de aumento de contágio, mortes e um provável segundo lockdown. Estivemos à procura de notícias de uma vacina, e esperando o retorno a uma normalidade familiar. Durante esse ano, tivemos que refletir sobre nossas atitudes e redescobrir o conceito de coletividade e a necessidade de cuidar de nós mesmos e dos nossos.

O IHBAJA, enquanto instituição e coletivo nesse momento de incertezas, precisou se reinventar. Nossas tradicionais caminhadas históricas e participações de eventos foram canceladas. E durante a primeira metade do ano reformulamos nossas estratégias. Seguindo a tendência das redes sociais, a partir do segundo semestre de 2020, nossas atividades virtuais se intensificaram, trazendo nossos desafios e oportunidades ao grupo. Enquanto um coletivo de pesquisadores, professores e artistas que pensam Jacarepaguá nas mais diferentes óticas, pudemos mostrar ao público que nossas pesquisas e atividades não pararam. Em nosso Facebook e Instagram disponibilizamos textos, imagens antigas, dicas e divulgamos atividades virtuais. Nosso blog, em processo de reformulação, passará a ser um local aglutinador de conteúdo, onde o visitante pode encontrar todos os nossos Boletins Informativos.

 No mês de setembro lançamos uma campanha comemorativa sobre os 426 anos de Jacarepaguá chamando a atenção para a celebração desta data. Também participamos da primeira live da Semana Alternativa de Jacarepaguá (parceria com o Jornal Abaixo Assinado de Jacarepaguá). Com a presença de quase a totalidade de nossos membros, essa live foi importante para marcamos presença no cenário de divulgação da história local. Vieram outras em que nossos membros participaram apresentando suas pesquisas e a história da região.

 Novas parceiras foram formadas, lançamos um novo número do Boletim Informativo (disponível em nosso blog e redes sociais), participamos de seminários e eventos culturais e continuamos nossas atividades com as colunas no Jornal Abaixo Assinado de Jacarepaguá. Encerrando 2020 e iniciando o ano de 2021, iniciaremos uma série de lives em parceria com a TV Onde Moro Jacarepaguá e que integram a 10ª Semana Fluminense do Patrimônio (10ª SFP).

Há três anos, o IHBAJA recebeu o prêmio Miriam Mendonça de Cultura Popular. Desde então reforçamos nosso compromisso com a história de Jacarepaguá. Seguimos no intuito de pesquisar e preservar o patrimônio material e imaterial da região, atuando junto aos movimentos sociais, órgãos públicos e privados.

 

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quarta-feira, 25 de novembro de 2020

20 de novembro: vivências e resistências



No dia 20 de novembro celebra-se a Consciência 
Negra, uma homenagem ao líder quilombola Zumbi e aos negros e negras que resistiram à escravidão no Quilombo dos Palmares, localizado na Serra da Barriga, então Capitania de Pernambuco (atual município de União dos Palmares - Alagoas). Em meados do século XVII, o Quilombo dos Palmares era formado por vários povoamentos, com cerca 20 mil indivíduos ao todo. Em 20 de novembro de 1695, Zumbi foi morto pelas tropas do bandeirante Domingos Jorge Velho. O Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra foi criado oficialmente pela Lei nº12.519, de 10 de novembro de 2011.

Num país em que metade da população é negra ou parda e que enfrenta uma das maiores desigualdades sociais do mundo é necessário a reflexão e ações para reverter esse quadro. Na Baixada de Jacarepaguá, os negros também estiveram presentes. Relegados ao silêncio, eles eram os trabalhadores dos inúmeros engenhos e fazendas da região. Eles construíram a identidade do sertanejo carioca. Construíram quilombos, comunidades, centros religiosos e marcaram presença na história da Baixada de Jacarepaguá.




O município do Rio de Janeiro possui quatro quilombos reconhecidos pela Fundação Cultural Palmares (FCP): o Quilombo da Pedra do Sal, na Região do Porto; o Quilombo Cafundá Astrogilda, em Vargem Grande; o Quilombo Sacopã, no bairro da Lagoa e o Quilombo do Camorim, próximo ao Maciço da Pedra Branca. O documento de titulação da FCP certifica que os moradores desses locais são descendentes de antigas comunidades onde ex-escravos buscavam refúgio. Importante preliminar na luta jurídica pela posse definitiva de seus territórios.

O IHBAJA realiza pesquisa e promove a divulgação do patrimônio e história de luta desses indivíduos, de movimentos sociais e dos quilombos da região.
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segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Novo livro sobre o Sertão Carioca

 Novo livro sobre o Sertão Carioca.


Pesquisador Leonardo Soares do IHBAJA lança novo livro sobre a zona rural carioca.

A Zona Rural do Município do Rio de Janeiro, título do livro, conta a história de formação dessa importante região da cidade ao longo da primeira metade do século XX.

O livro pode ser obtido por meio do seguinte endereço: https://www.agbook.com.br/backstage/my_books/345795





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sábado, 17 de outubro de 2020

Novo Boletim Informativo do IHBAJA

    Apresentamos o novo número do Boletim Informativo do IHBAJA. Retornando após uma pausa de mais de um ano, o Boletim apresenta um novo formato e diagramação. Nosso objetivo inicial de apresentar nossas atividades e pesquisas continua, entretanto percebemos que esse também pode ser um espaço de acolhimento para pesquisadores e coletivos que pensam Jacarepaguá e o subúrbio do Rio em seus mais diferentes aspectos.

Em época de pandemia, a vida cotidiana foi ressignificada. Velhos hábitos foram substituídos por novos e infelizmente os encontros calorosos precisam esperar. Nossas caminhadas, tão procuradas, estão suspensas, assim como encontros e participações em eventos. Contudo, nossas pesquisas não pararam e elas podem ser vistas no Facebook e no Instagram do IHABAJA. Neste Boletim, os leitores encontrarão textos de nossos pesquisadores sobre os mais diferentes aspectos históricos, geográficos e sociais da Baixada de Jacarepaguá. Além disso, entendemos que esse pode ser um espaço para agregar novas visões de pesquisadores, intelectuais e coletivos parceiros do IHBAJA e que pensam a cidade do Rio de Janeiro. Por isso, convidamos para esta edição o historiador Rafael Mattoso, que abre nosso Boletim com um excelente texto reflexivo sobre o subúrbio e a urgência em reconhecer suas pluralidades e importâncias.

Entre nossos membros, Valdeir Costa apresenta uma breve história da ocupação da região, desde a pré-história, passando pela ocupação indígena, pela colonização portuguesa e os loteamentos na Barra da Tijuca. Já Janis Cassilia, apresenta a ocupação da Baixada de Jacarepaguá por grandes hospitais como um projeto de medicalização da cidade do Rio de Janeiro, e a criação de dois hospitais colônias, a Colônia Juliano Moreira e o Curupaiti. Seguindo uma linha cronológica, Leonardo Soares, apresenta a Aliança Nacional Libertadora, a atuação de Pedro Coutinho e de outros militantes comunistas em Jacarepaguá e no Rio em plena repressão do Governo Varguista. Renato Dória analisa os conflitos fundiários em Jacarepaguá no ano de 2013, que tiveram movimentos sociais como protagonistas de ação como quilombolas, produtores agrícolas e residentes de comunidades, contra as remoções promovidas em nomes de mega eventos como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. E João Magalhães apresenta o projeto “Poesia Jacarepaguense” e textos de sua autoria.

Esse mês comemoramos 426 anos do aniversário de Jacarepaguá. O lançamento deste Boletim nesta data é uma forma singela de comemoração do IHBAJA para com a Baixada de Jacarepaguá. Parabenizamos a todos os moradores, antigos e atuais. Às pessoas que caminham por nossas ruas, que trabalham e vivem na região. Mais do ruas, lojas, empresas, escolas e outros prédios e usos, um local é feito de pessoas, as vivências e significações que estabelecem com seu entorno. Jacarepaguá é moradia, é luta, é história. Parabéns a todos nós.

 Boletim Informativo 2020.1 Acesse aqui!   

Janis Cassilia

(Professora de História e pesquisadora do IHBAJA)

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sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Jacarepaguá e seus hospitais de isolamento

 

Por Janis Alessandra Pereira Cassilia

Pesquisadora do IHBAJA

Professora de história e mestre em história das ciências e da saúde (COC/Fiocruz) 

 

            No início do século XX, a cidade do Rio de Janeiro, então capital federal passou por uma série de transformações urbanísticas e sociais. Casarões e cortiços, lares dos mais pobres eram demolidos enquanto as chamadas “classes perigosas” se dirigiam para zonas mais afastadas, formando as primeiras favelas e bairros do subúrbio da zona norte. Ao mesmo tempo, a elite começa a direcionar suas residências e palacetes para a zona sul à procura de ares mais sadios e longe das doenças do centro. Procurava-se produzir uma cidade organizada e “civilizada” aos moldes europeus como vitrine de um país modernizado de acordo às ideias da recém proclamada república brasileira.

Longe do burburinho do centro, Jacarepaguá era considerada zona rural do município, o chamado “sertão carioca”, com fazendas, sítios e chácaras que produziam hortaliças, frutíferas e outros gêneros. O acesso era difícil, feito a carroça, charrete ou a pé. Durante muito tempo a estação de trem mais próxima ficava em Cascadura, e a linha do bonde (à tração animal e depois elétrico) seguia da Praça Seca até o Tanque. Grande parte da região, ainda conservava os velhos casarões e fazendas coloniais, muitos deles de antigas famílias nobres e de ordens religiosas.

            No meio de tantas transformações, intelectuais, políticos, médicos e sanitaristas pensavam a cidade do Rio de Janeiro como uma cidade doente que deveria ser medicalizada e higienizada. Enquanto o movimento pela vacina era visto como medida primordial para o combate de doenças, pensava-se que o tratamento de outras doenças deveria ser realizado em isolamento e longe dos centros urbanos. Diversos argumentos eram utilizados para implantar esse modelo de tratamento e assistência, como retirar da cidade a fim de proteger os doentes dos olhares dos habitantes, impedir a circulação de vadios e personagens violentos, além de proporcionar a esses indivíduos um local sadio e em meio à natureza.

            Para isso, a área de Jacarepaguá foi eleita como lugar ideal para a criação de hospitais de isolamento de tratamento de doenças como tuberculose, lepra e doença mental, pois oferecia o clima e a distância necessárias para tal feito. Entre as décadas de 1920 e 1950 quatro hospitais foram criados na Baixada de Jacarepaguá, todos obedecendo os critérios de locais de isolamento e tratamento dessas doenças.

            Construídos na década de 1920, a Colônia Juliano Moreira e o Hospital-Colônia Curupaiti, estavam dentro dos parâmetros do conceito de Hospital-Colônia, um local de grande extensão espacial, longe dos centros urbanos e de difícil acesso, onde além do tratamento houvesse meios de formação de um espaço de sociabilidades dentro do hospital e controlado pela equipe médica. Inaugurados nas décadas de 1940 e 1950, o Hospital de Santa Maria e o Conjunto Sanatorial da Curicica, de atendimento a tuberculosos, estavam inseridos em uma política de erradicação da Tuberculose do Governo Federal. Eram grandes instalações que preconizavam o isolamento como forma de tratamento e de impedir a propagação da doença. É característico destes espaços a internação compulsória e o longo tempo de internação, culminando muitas vezes em grande parte da vida do paciente.

 

Colônia Juliano Moreira (atual Instituto Municipal de Assistência à Saúde Mental Juliano Moreira)


Arcos da Colônia Juliano Moreira. Acervo fotográfico do Museu Bispo do Rosário.

     Em área equivalente ao bairro de Copacabana, a Colônia Juliano Moreira é uma instituição psiquiátrica fundada em 1924 para atendimento de pacientes masculinos e a mais antiga instituição hospitalar de Jacarepaguá. Está situado nas terras da Fazenda do Engenho Novo, desapropriada pelo poder público em 1912. Na época da inauguração foi nomeada como Colônia de Psicopatas- Homens e, a partir da década de 1930, passou a atender pacientes mulheres, idosos e crianças. Se tornou a partir desse momento em um imenso hospital-colônia com diversos tratamentos cirúrgicos (como lobotomia) e eletrochoque e choque químico) e terapêuticas pautadas no trabalho em oficinas e hortaliças. Além disso foi criada uma vila formada por alguns funcionários e suas famílias que deveriam oferecer um “ambiente saudável” para a ressocialização do paciente (tratamento hetero familiar). Em 1946 foi renomeada como Colônia Juliano Moreira.

 Até a década de 1950, possuía 4 núcleos com diversos pavilhões, incluindo um para cirurgias como lobotomia e tratamento por eletrochoque e choque químico, e passou a ser visto como o mais importante hospital psiquiátrico do Brasil. No auge do seu funcionamento, a colônia chegou a atender quase 8 mil internos, possuir 4 núcleos divididos em 2 masculinos e 2 femininos, pavilhões para tuberculosos, pavilhões de isolamento para pacientes perigosos, necrotério, hospital de cirurgias, cinema, rádio, hortas e oficinas mecânicas e de colchões, campo e time de futebol, clube recreativo, igreja, vila de casas para funcionários, casa do diretor e de médicos e biblioteca.

Contudo a superlotação e os cortes no orçamento contribuíram para a depredação e abandono de pavilhões e núcleos. Enquanto isso, a comunidade interna aumentava e ganha feições de bairro integrado ao resto da cidade.

Apesar de sua estrutura, inúmeras eram as histórias de abandono e de dificuldades dos pacientes. Muitos eram para lá encaminhados de outras instituições psiquiátricas, correcionais ou até mesmo da polícia e eram internados de forma compulsória. Nos anos 70 e 80 as denúncias de maus tratos ganharam força e impulsionaram o movimento da reforma psiquiátrica.

Hoje, a área é dividida pela Prefeitura do Rio de Janeiro, a Fundação Oswaldo Cruz e o Exército, e é cortada por uma via expressa (a transolímpica). Algumas unidades de tratamento ainda existem como o Hospital Jurandyr Manfredini e pavilhões dos núcleos Rodrigues Caldas e Franco da Rocha. Outros prédios do antigo hospital sofrem com a descaracterização, invasões e abandono.

 

Hospital Colônia Curupaiti (atual Instituto Estadual de Dermatologia Sanitária – Hospital Curupaiti Dermatologista)

 

"Esta Casa foi a sede de administração até 1937. Hoje o Hospital tem lotação para 400 doentes e é centro de leprologia". Hospital Colônia de Curupaiti, fundado em Jacarepaguá, Distrito Federal, em Outubro de 1928. Acervo Base Arch da Casa de Oswaldo Cruz. Fiocruz. Disponível em: http://basearch.coc.fiocruz.br/

 

Fundado em 1928, em terreno elevado de difícil acesso e de 130 mil m², o Hospital Colônia do Curupaiti, foi um dos primeiros hospitais-colônia para o tratamento da hanseníase em controle do Estado. Se tornou centro de referência no tratamento da doença apesar da internação compulsória realizada no local. Começando com o tratamento de 53 pacientes, com o passar dos anos viu o número de internos e suas instalações aumentarem. Possuía 3 pavilhões e abrigos masculinos, 1 pavilhão e abrigo femininos, cineteatro, rádio, campo de futebol, hospital de cirurgias, prédio de psiquiatria, prédio para tratamento de crianças, além de casas e vilas para os internos, divididos entre solteiros e casais. A vida social dentro da Colônia também era expressiva, dado a existência de muitas festas (como casamentos e aniversários) e de festas religiosas (como carnaval, juninas, entre outros). Além da presença da Igreja Católica, havia centro espírita, centro de umbanda, igrejas evangélicas e centro budista.

A internação compulsória também foi uma característica desta instituição. Assim como a doença mental, a hanseníase (antiga lepra) trazia a seus enfermos o estigma do preconceito, e uma morte social que precedia a morte física. Dentro da instituição, esses pacientes se integravam a vida social lá existente enquanto recebiam tratamento para a hanseníase. Muitos já curados permaneciam no Curupaiti devido a crença no retorno da doença e na dificuldade de retornar a sociedade externa fora dos muros do hospital-colônia.

            Após a década de 1980, quando o isolamento e a internação compulsória deixaram de existir, o espaço passou a sofrer cada vez com o abandono e depredação das suas instalações. Atualmente em parte do terreno foi criada uma comunidade. Os prédios do cineteatro, rádio e outros instrumentos de socialização foram abandonados, com exceção de alguns centros religiosos e do campo de futebol.  Muitos ex-pacientes continuam a residir dentro dos pavilhões com dificuldades de mobilidade (provocadas pela doença ou por velhice) e de reinserção social (como moradia e emprego). Outros constituíram família e residem em casas e vilas dentro do hospital.

 

Hospital Sanatório Santa Maria (atual Hospital Estadual Santa Maria)



Hospital de Santa Maria, em Jacarepaguá, s/d. Acervo pessoal.

            Sua construção teve início em 1939, em terras da antiga Fazenda Santa Maria. Foi inaugurado em 1943, mas só começou a atender pacientes em 1945, com 26 enfermos transferidos do Hospital São Sebastião. Era um hospital destinado ao isolamento e tratamento de tuberculosos, com capacidade de 546 leitos, e fazia parte do projeto de construção de diversos sanatórios no Brasil, a cargo do Departamento Nacional de Tuberculose (DNT), do Ministério da Educação e Saúde (MES).

            Localizado em terreno elevado de difícil acesso, recebia pacientes transferidos de diversas instituições e a partir dos anos de 1960 passou a estar sob a responsabilidade do governo estadual e a prestar atendimento clínico e cirúrgico. Em meados dos anos de 1970, as cirurgias foram interrompidas, dedicando-se à internação e isolamento dos pacientes tísicos.

            Com a passagem do tempo formou-se uma comunidade ao redor do Hospital. Diversas enfermarias e pavilhões foram desativados e abandonados. Nos últimos anos, os conflitos entre o tráfico de drogas e a milícia que disputam território na região, atingiram o hospital que foi fechado pelo poder público estadual em 2019.

 

Conjunto Sanatorial de Curicica (atual Hospital Municipal Raphael de Paula Souza)



Vista aérea das obras do Sanatório de Curicica”, fotografia com data de 25 de março de 1950. Fonte: Base Arch da Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz. Disponível em: http://basearch.coc.fiocruz.br/

             Inaugurado em 1951 e funcionando a partir de 1952, o Conjunto Sanatorial de Curicica foi destinado a internação de tísicos e do tratamento da tuberculose. O hospital foi projetado pelo arquiteto Sérgio Bernades e é um exemplo arquitetônico único entre os hospitais de isolamento de Jacarepaguá. A criação do hospital fazia parte do programa federal Campanha Nacional contra a da Tuberculose (CNCT), do Serviço Nacional de Tuberculose (SNT) que propunha a erradicação da doença no Brasil em até 10 anos. O tratamento para a tuberculose foi criado em 1946 e, portanto, acreditava-se que o isolamento dos doentes em Jacarepaguá, proporcionava solução para a disseminação e a cura através do tratamento pelo antibiótico estreptomicina.

            O Conjunto Sanatorial Curicica possuía capacidade para 1.500 leitos, era composto biblioteca, enfermarias, laboratório, centro cirúrgico, maternidade, biblioteca, administração, necrotério, alojamento para médicos e diretor, centro médico, biotério, capela, estação de tratamento de esgoto, subestação de luz e força, entre outros prédios típicos de hospitais de isolamento e que também existiam na Colônia e no Curupaiti.        

            A partir da década de 1980, o hospital foi dividido em duas partes. Uma administrada pelo município do Rio de Janeiro, que compunha o hospital, os serviços ambulatoriais e a administração, e outra composta pela Casa do Diretor e alojamentos que passaram a compor um centro de pesquisa, Centro de Referência Hélio Fraga, da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), Fiocruz. A parte sob responsabilidade do município encontra-se em estado de má conservação e completo abandono, com pavilhões, enfermarias fechadas, inclusive o centro cirúrgico.  Parte do terreno original do hospital sofreu com invasões e a criação de uma comunidade. Além disso, foi construída uma creche municipal e pavilhões foram demolidos pelo poder público alegando-se perigo de desabamento.

 

 

 

           

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quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Pedro Coutinho em Jacarepaguá (Parte II)


Por Leonardo Soares dos Santos

  

Pedro Coutinho em Jacarepaguá

Pedro Coutinho trabalhou, profissionalmente falando, por muito tempo em Jacarepaguá. Ele chegou a fazer parte dos trabalhos de saneamento levados a cabo na Baixada de mesmo nome durante a administração de Hildebrando de Góis, fator que talvez tenha pesado na decisão (dele ou do partido) de escolher o Sertão Carioca como área de atuação, muito embora não tenha se restringido a ela. Justamente o que mais nos chama atenção na sua trajetória é a diversidade de campanhas e organizações comunistas em que tomou parte (e ás vezes a frente) em diferentes regiões. Além de Jacarepaguá, atuava também em Nova Iguaçu e no subúrbio da Leopoldina (Zona Norte). Integrou quase que de forma simultânea as seguintes organizações: na década de 40 fez parte do Comitê Distrital de Jacarepaguá, Comitê Democrático Progressista de Jacarepaguá, Comissão de ajuda à Tribuna Popular (órgão do PCB), Liga Camponesa de Jacarepaguá, Liga Camponesa do Distrito Federal, Comitê Democrático Progressista de Nova Iguaçu. Na década de 50 integrou o Centro Nacional de Estudos e Defesa do Petróleo (CEPDEN), Comissão Executiva Pró-Reforma Agrária, a Liga de Emancipação Nacional e a Associação Rural de Jacarepaguá. Em função disso, Pedro Coutinho esteve na linha de frente de Campanhas como as da nacionalização do petróleo, da Reforma Agrária, da Imprensa Popular e pela defesa da posse da terra dos pequenos lavradores do Sertão Carioca. Além de membro, ele exercia cargos de direção em algumas daquelas organizações. Foi o primeiro presidente do Comitê Democrático Progressista de Jacarepaguá,[1] fundado em junho de 1945, e posteriormente fez parte do seu Conselho Fiscal e da Secretaria de Massa Eleitoral, chegando a se tornar seu presidente de honra. Foi também presidente da Liga Camponesa de Jacarepaguá e membro da diretoria da Liga Camponesa do Distrito Federal.[2]

 


Retomada da atuação de Pedro em Jacarepaguá. Fonte: Tribuna Popular, 16/02/1945, p. 4.

 

 

 

Segundo o agente da polícia política encarregado da produção de seu dossiê, essa ampla inserção de Pedro Coutinho em diferentes campanhas e organizações comunistas e, principalmente, a posição de direção que exercia em várias delas se daria pelo fato de estar “estreitamente ligado ao líder e chefes comunistas no país”, tanto assim que foi “um dos organizadores e oradores de vários comícios do líder LUIZ CARLOS PRESTES e outros chefes comunistas”, como o professor Henrique Miranda.[3] Exagero ou não, o fato é que Pedro Coutinho parecia usufruir boa relação com homens bem situados na estrutura partidária do PCB, pois além de ocupar posições de direção daquelas entidades locais era também um dos dirigentes do CEPDEN, organismo de âmbito nacional que se ocupava de uma das principais frentes de luta do partido na década de 50, o da nacionalização do petróleo, que tinha como lema “O Petróleo é nosso”. No final de outubro de 1951, era ele quem presidia a “conferência sobre Petróleo e defesa da Economia Nacional” realizada em Grajaú.[4] Pedro ainda organizaria vários eventos dessa campanha em localidades do Sertão Carioca, como Cascadura, Campo Grande e Jacarepaguá. Ele, dessa maneira, procurava incluir a zona rural no cenário dos debates políticos: o Sertão Carioca era também lugar de debate e politização.

 


“Cícero”, o segundo da esquerda para a direita, em evento do Comitê Democrático Progressista de Jacarepaguá. Fonte: Tribuna Popular, 6/6/1945, p. 5.

 

Mas foi no exercício da função de advogado das entidades sediadas em Jacarepaguá que Pedro Coutinho deve ter despertado o mais efetivo interesse por parte dos pequenos lavradores. É provável também que muitos deles tenham se filiado àquelas entidades justamente por poder contar com serviços jurídicos, tendo para isso apenas que pagar uma módica quantia cobrada a todos os seus sócios. Ao menos, essa era a expectativa de muitos sócios da Liga Camponesa de Jacarepaguá, na década de 40, e da Associação Rural de Jacarepaguá, nas décadas de 50 e 60. E em todas elas Coutinho foi o seu advogado. Ele também foi advogado da Associação de Lavradores de Campo Grande e Guaratiba, onde tinha entre seus clientes Manoel Ferreira, objeto de uma ação movida pelo “grileiro” Joaquim Rodrigues Pazo.[5] Foi também um dos procuradores, junto com Heitor Rocha Faria, da comissão do Distrito Federal da I Convenção Nacional dos Trabalhadores Agrícolas, realizada em São Paulo em 1953, eleita para participar dos trabalhos da Convenção Pela Emancipação Nacional, no ano seguinte.

Mas há um outro ponto importantíssimo presente na atuação de Pedro Coutinho (e na dos militantes comunistas de uma maneira geral): a inserção que tinha na estrutura partidária, possibilitou-lhe, entre outras coisas, atuar em diferentes campanhas e integrar a direção de diferentes organizações, favorecendo a realização de um objetivo que era muito caro ao PCB numa época de grande competição política com os setores ligados ao trabalhismo de Getúlio Vargas, especialmente o PTB: a unificação ou, ao menos, a integração desses movimentos numa frente comum de luta, de modo que isso fortalecesse a imagem do PCB como o principal partido das classes trabalhadoras.[6] Nesse caso, ela poderia se dar sob a forma de manifestações de apoio, solidariedade e mesmo de adesão, entre membros de diferentes lutas ou campanhas.

Assim vemos Pedro, por exemplo, participar de atos em favor da liberdade de Luiz Carlos Prestes e da extinção de todos os processos judiciais contra ele, como o ato público na Associação Brasileira de Imprensa, reunindo vários militantes do partido que atuavam nas forças armadas (O Dia, 24/07/1953, p. 1).

Esse talvez tenha sido o principal capital político que Pedro Coutinho tentou obter junto aos lavradores organizados naquelas entidades, procurando, a todo momento, fazer com que eles encampassem as bandeiras de outras campanhas do partido e, em contrapartida, fazer com que essas campanhas tomassem como suas as reivindicações dos pequenos lavradores do Sertão Carioca. Essa parece ter sido a sua grande tarefa ao participar como convidado especial da assembleia organizada por posseiros de Curicica em comemoração a uma vitória que obtiveram contra “grileiros” na justiça. Nela Coutinho teria conseguido a adesão desses posseiros à Convenção pela Emancipação Nacional, chegando a eleger para tanto uma comissão encarregada de acompanhar os trabalhos preparatórios desse evento. Mas não sem antes assegurar a eles que “nenhuma questão de importância para a vida do país escapará à discussão e à análise” da Convenção. “Assim, os problemas mais sentidos dos Lavradores, inclusive os de Curicica, serão ventilados”.[7]

 


Pedro Coutinho Filho com alguns lavradores de Jacarepaguá na redação do Imprensa Popular de 26/04/1958. Fonte: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1587, fl.03.

 

 

Dois anos depois vemos Coutinho tentar unificar a pauta do movimento dos lavradores do Sertão Carioca com outros movimentos, e consequentemente obter seu apoio. Foi o caso da reunião, por ele presidida, da Comissão Executiva do Distrito Federal Pró-Reforma Agrária, na sede da Liga da Emancipação Nacional. Nessa reunião ele conseguiu reunir dois deputados, algumas lideranças sindicais como Lyndolpho Silva, representantes do Sindicato dos Têxteis e representantes das Associações de Lavradores de Jacarepaguá e de Coqueiros. As medidas discutidas foram a coleta de assinaturas pela Reforma Agrária, cuja cota determinada foi de 320 mil, e a colaboração da Comissão ao II Congresso de Lavradores do Distrito Federal.[8]

Em outubro de 1955, às vésperas das eleições presidenciais daquele ano, o jornal comunista Imprensa Popular, demonstrando ter certeza de que Pedro Coutinho tivesse sua atuação reconhecida pela grande maioria dos lavradores do Sertão Carioca, chamou-o de “líder camponês”. Foi nesta condição que ele conclamou “seus companheiros de profissão [os “camponeses” cariocas] a votar em J-J” (chapa presidencial composta por Juscelino Kubitschek e João Goulart). Só “com êles”, continuava Coutinho, “teremos o clima desejável para que consigamos vencer os grileiros, a distribuição de terras aos lavradores, títulos definitivos das terras já cultivadas pelos posseiros, revisão dos contratos e fixação à terra, concessão de crédito fácil”, etc.

 

As estratégias de atuação do advogado dos “camponeses cariocas”

 

Além de se ater aos aspectos técnicos das demandas judiciais dos pequenos lavradores, Pedro Coutinho sempre procurou fortalecer tais iniciativas investindo na frente política. Para que isso fosse possível ele sempre teve muito claro que era necessário unificar o discurso dos pequenos lavradores. Daí que todos orientados por ele declarassem ter ocupado os terrenos em litígio há várias décadas (geralmente de três a quatro, nunca menos que isso), estando tais terras no ato da ocupação completamente abandonadas. Ou seja, tratavam-se de terras devolutas que teriam sido ocupadas de maneira legal, não simplesmente invadidas, e de forma inteiramente “mansa e pacífica”. Detalhe importantíssimo, pois que, a) fundamentava o acionamento da Lei de Usucapião, que assegurava a posse de um terreno abandonado por mais de duas décadas; b) e o fato garantia que os pequenos lavradores reivindicassem a condição de posseiros, categoria legitimada pelo Código Civil, ao contrário da categoria invasor.

Outro aspecto ressaltado na argumentação dos posseiros, sob orientação de Coutinho, é a da violência empregada pelos pretensos proprietários para promover a expulsão daqueles lavradores, o que fundamentaria a intervenção por parte do governo para garantir os direitos e a integridade física daqueles posseiros.

Mas Pedro Coutinho sabia que não bastava concretizar essa unificação apenas no âmbito das alegações contidas nos autos dos processos judiciais. Ele sabia que seria necessário um amplo trabalho político de convencimento da opinião pública carioca. Daí que despendesse tanto tempo para às várias redações de jornais, geralmente acompanhado por uma espécie de comissão de pequenos lavradores. Essas “visitas” eram feitas não apenas ao órgão de imprensa comunista, o Imprensa Popular, mas também àqueles de orientação política ou ideológica divergente, como Última Hora, A Noite, Correio da Manhã, Gazeta de Notícias e Diário de Notícias.

 

Antonio Caseiro na visita da comissão do Sindicato Rural de Jacarepaguá é o segundo da esquerda para a direita. Fonte: Última Hora, 26/04/1955, p. 8.

 

 

Outro aspecto relevante da trajetória de Pedro, em especial como advogado comunista com atuação na zona rural, era o seu papel de mediador entre as linhas políticas do PCB e as demandas reais dos pequenos lavradores de Jacarepaguá. A maneira como tal mediação era operada nos mostra como a atuação dos militantes do partido junto a “base social” não era uma iniciativa simples: não estamos diante de um quadro partidário buscando construir mecanicamente a adesão de agentes concretos às linhas políticas impressas nos documentos oficiais do seu partido. Ao analisarmos tal situação observamos o quanto essas experiências engendradas no âmbito da relação do partido com segmentos sociais efetivamente existentes no dia-a-dia - da fábrica, do sindicato, da associação, do bairro, da feira, da rua, da roça ou da fazenda – confirmam a tese de Marco Aurélio Santana sobre a existência de dois “PCs”: o dos debates e relações internas e o da articulação com agentes sociais efetivos.

Assim o autor sintetiza a questão:

[...] se buscou instrumentalizar o movimento dos trabalhadores no sentido dos interesses partidários, o PCB não logrou fazer isso da forma que queria. Este processo sofreu injunções, desvios e alterações oriundos seja da resistência interna, seja das pressões externas experimentadas pela organização. A implantação das linhas políticas definidas pelo partido não se deu, portanto, de forma lisa e direta; antes, se realizou de forma negociada e perpassada por uma série de condicionantes tais como: o cenário político geral e o quadro de alianças e competição travadas pelo partido dentro e fora do meio sindical, bem como as resistências estabelecidas pelos trabalhadores e/ou pela própria militância comunistas, que chegou a gerar, na prática, a existência do que se chamou dois PCs.[9]

 

E a trajetória de Pedro junto aos pequenos lavradores do Sertão Carioca, em especial os de Jacarepaguá, vai exatamente nesse sentido: embora entre 1948 e 1954 o PCB defendesse em seus documentos, editoriais em imprensa e manifesto, a linha política insurrecional, na zona rural carioca a linha adotada pelo advogado pecebista foi a da linha institucional. Ou seja, no mesmo período em que o PCB consagrava no Manifesto de Agosto de 50 a proposta de tomada do poder do Estado via mobilização armada de “Exércitos de Libertação Nacional” e a renúncia à disputa política junto às instituições e sindicatos, o seu quadro mais importante instava os pequenos lavradores do Sertão Carioca a se organizarem em associações de classe reconhecidas pelo Estado, a apelarem aos tribunais de justiça o cumprimento de leis que garantissem seus direitos pela terra. E esse era um ponto bem curioso da situação vivenciada por Coutinho, um advogado de um partido que pregava a luta armada entre os camponeses do país: ao fundamentar a sua principal estratégia jurídica na lei do usucapião, o seu maior desafio era instruir pequenos lavradores a convencer os juízes de que sua posse sobre as terras estava se dando de forma “mansa e pacífica”, totalmente dentro da lei.

 

* * *

 

A partir de meados da década de 50 até o mais ou menos 1963, não veríamos Pedro Coutinho desempenhar atuação de destaque em eventos públicos organizados por entidades do PCB com a mesma frequência de antes. Seu trabalho parece ter se concentrado na prestação de assistência jurídica às “organizações camponesas” do Sertão Carioca. Sabe-se apenas que Coutinho integrou em 1961 uma Comissão Brasileira de Solidariedade ao Povo Cubano, organizada provavelmente após os acontecimentos ocorridos na Baía dos Porcos envolvendo grupos cubanos dissidentes apoiados pelos EUA.[10]

Ele voltaria a se destacar em alguns eventos “camponeses” ocorridos em 1963. Em maio desse ano Coutinho integraria junto com Antônio Caseiro, Teobaldo José Ribeiro, Manoel Rodrigues e Manoel Agapito - presidentes respectivamente das Associações Rurais de Jacarepaguá, Santíssimo, Guaratiba e Mendanha – e outras personalidades, a “comissão promotora” da II Conferência dos Lavradores da Guanabara.[11] Meses depois, em novembro, ele também teria “liderado” uma “concentração” de lavradores em frente a Assembléia Legislativa do Estado da Guanabara. O objetivo, segundo ele, era lembrar aos parlamentares que “a gravidade da situação alimentar da população do Estado é, em parte, conseqüência do abandono e miséria em que se encontra o lavrador carioca, sem terra própria, sem auxílio técnico e financeiro, sem mercadoria garantida para os seus transportes e, ainda perseguido pelos exploradores imobiliários e pelos grileiros”.[12]

 

Pedro (o primeiro da esquerda para a direita) em evento em Jacarepaguá organizado pelo PCB em apoio a candidatura do Marechal Lott (o terceiro). Entre eles, Antonio Caseiro, pequeno lavrador e militante do PCB que atuava em Jacarepaguá. Fonte: O Semanário, 20-26/08/1960, p. 1.

 

Fazia-se mister que tais parlamentares tomassem não só medidas de urgência, mas principalmente “modificações estruturais” no campo, pois só elas – e isso valia para o restante do país - poderiam fazer com que os lavradores do Sertão Carioca deixassem de ser um “peso morto”.

A atuação de Pedro Coutinho junto às “organizações camponesas” foram suficientes para que aqueles que, segundo a “grande” imprensa, “salvaram” o país do “risco da comunização” com o golpe de 64,[13] incluísse-lo na lista de indiciados do Inquérito Policial Militar nº 709, chefiado pelo general Ferdinando de Carvalho, e que tinha por tarefa apurar a responsabilidade de reais e supostos participantes da “onda de agitação e subversão” que pretendia varrer os valores democráticos e cristãos do país. Aliás, Pedro Coutinho era o único de todos esses indiciados que tinha como base de atuação o Sertão Carioca.[14]

Nos poucos registros sobre Pedro após o Golpe de 64, atestamos apenas que estava preso em 1965. Em nove de julho desse ano sairia a expedição de soltura.

Acusado de ser ainda um agente subversivo, e temendo sofrer com a tortura e ser executado, Pedro procurava se desvencilhar de sua ligação histórica com o PCB. Em depoimento que prestou em 1965 ao DOPS (polícia política), ao ser perguntado se fez parte alguma vez de uma “agremiação política”, Pedro declararia que fez parte apenas do Partido Social Democrático no Ceará, em 1930. Negaria também ter participado, mesmo em Jacarepaguá, de qualquer associação, entidade, campanha ou movimento patrocinado pelo PCB. Única exceção seria reconhecer ter presidido o Comitê Democrático Progressista de Jacarepaguá, mas afirmaria também que se tratava de uma “entidade apolítica e apartidária”.

A partir do final da década de 60, já idoso e diante de um cenário tão repressivo parece ter concentrado a sua atuação na Associação Brasileira de Imprensa, fazendo parte sucessivas vezes do corpo dirigente, assumindo cargos como tesoureiro, diretor de sede e conselheiro fiscal, e chegando a sua presidência no início da década de seguinte.

Pedro veio a falecer no Rio de Janeiro no início de 1986, aos 84 anos.

Pedro em evento com militares na sede da Associação Brasileira de Imprensa. Fonte: Boletim da ABI, julho de 1970, p. 3.


[1] Tribuna Popular, 05/06/1945. p. 2.

[2] Tribuna Popular, 21/05/1946. p. 2

[3] APERJ. Fundo DOPS.  Série Informações, n. 34: “memorando nº 69/62”.

[4] Imprensa Popular, 01/11/1951. p. 4.

[5] Novos Rumos, 18-24/12/1959. p. 11.

[6] Podemos dizer que o PTB foi o grande adversário do PCB no interior do movimento sindical em particular, e no âmbito das esquerdas em geral, de l945 a 1955. O suicídio de Vargas e a comoção nacional por ele causado farão com que os comunistas comecem a se aproximar dos trabalhistas. Em 1955 essa aproximação é oficializada com a criação do MNTP – Movimento Nacional Popular Trabalhista, que procurava ser na prática uma base de apoio da chapa presidencial encabeçada por J. Kubitschek e João Goulart. Nos anos subseqüentes tal aproximação resultaria ela mesma numa progressiva indiferenciação entre as linhas políticas dos dois partidos.

[7]  Imprensa Popular, 18/12/1953. p. 3.

[8] Imprensa Popular, 16/02/1955. p. 1.

[9] SANTANA, Marco Aurélio. Homens partidos. São Paulo: Boitempo, 2001. p. 21.

[10] APERJ. Fundo DOPS. Série DOPS – 85.

[11] Diário Carioca, 25/05/1963. p. 4.

[12] Diário de Notícias, 12/11/1963. p. 12.

[13] O Globo, 02/04/1964. p. 1.

[14] APERJ. Fundo DOPS. Série Secretaria, n. 10. Se Pedro Coutinho foi o único a ser oficialmente indiciado, vários outros foram perseguidos pelos órgãos de repressão, casos de Antônio Ferreira Caseiro, Eros Martins Teixeira, Aristides e outros. No depoimento dado ao autor, Eros Martins declara que Aristides foi torturado por ter dado “fuga” a Antônio Caseiro. Uma parente deste, D. Alice (nome fictício), também declara que chegou a ser agredida pelos agentes do DOPS que estavam à procura de A. Caseiro.

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