por Leonardo Soares, pesquisador do IHBAJA e professor da UFF e UFRJ
Não era fácil os trabalhadores rurais se organizarem em associações
trabalhistas em pleno início da década de 1960. Muito embora as iniciativas do
Governo João Goulart favorecessem a criação de novos sindicatos, é preciso que
não se esqueça que o ambiente anti-comunista era muito presente no interior dos
aparelhos policiais. E tal fato condicionava enormemente o intenso trabalho de
vigilância da polícia política sobre essas entidades. A suspeita de que tais
entidades não passavam de meros aparelhos a serviço do PCB eram acentuadas.
Entre as poucas informações que temos sobre como
funcionavam efetivamente aquelas entidades é bastante emblemático que a mais
detalhada seja exatamente um relatório produzido pelos DOPS do então estado da
Guanabara, em dois de dezembro de 1963. A ânsia do agente em captar os mínimos
detalhes da Associação Rural de Jacarepaguá acaba nos proporcionando
informações que infelizmente não encontramos em relação a outras. Por ele
ficamos sabendo que a Associação se localizava na estrada dos Bandeirantes, nº
5.045, “a 100 m. adiante do marco Km 5”. O agente da polícia política nota
ainda que “suas instalações são toscas. Constam de pequena sala e carteiras e
bancos tipo escolar. Algumas gravuras nas paredes com motivos e trajes do
campo”. A minúcia no detalhamento é tanto que consta também que existe “um
quadro negro onde estava escrito - ‘manina’ e gravuras relativas ao dia das
mães”. A sede da associação parecia ser pobre não apenas em mobiliário, como em
termos de acervo de livros: “num armário encontra-se um número da revista A Lavoura, papéis não identificados e
alguns talões de blocos de recibo amarrados e sem uso”.
Certos detalhes do relato sugerem que as observações do
agente não foram realizadas numa única visita à sede. É bem provável que ele
participasse de várias reuniões. É o que se deduz quando lemos detalhes sobre a
rotina de funcionamento da sede:
- A chave da sede é guardada na residência do filho do
tesoureiro localizada nos fundos do terreno. Note-se que esse indivíduo é
desconfiado e não responde a perguntas. Tem pequeno defeito nos quadris.
- Das reuniões participam constantemente políticos e,
no show de 24, o Ministro do Trabalho enviou representante.
- Tudinho e Arlindo Amador da Silva possuem carteira
social. São moradores na rua do Rio do Cascalho, no antigo Km 28 da Estrada dos
Bandeirantes e nada de concreto quiseram informar. Demonstraram medo em suas
respostas que são sempre repetições do que tem sido divulgado pela Associação.
O relatório revela também um aspecto da metodologia de
investigação do DOPS, e que reforça a hipótese de que as observações de campo
que os agentes efetuavam demandavam dias – talvez semanas - de trabalho de
apuração:
Embora o Sr. Caseiro informe que a Associação tem por
finalidade a legalização da situação dos posseiros, frente aos legítimos
proprietários, verifica-se que se está promovendo a intensificação de um
progresso social visando arregimentar novos socios ao mesmo tempo que novas
teorias lhes são apresentada[s].
Cheguei a tal conclusão, não só pelo que ouvi no local
como também pela faixa afixada frente a estrada dos Bandeirantes, que convidava
aos lavradores para um grande show, enquanto os convites distribuidos entre os
associados menciona grande assembléia para a fundação do sindicato.
Além das informações sobre o dia-a-dia da Associação, o relatório concede
grande papel à figura do tesoureiro da entidade, o sr. Antonio Ferreira
Caseiro. É ele quem “conhece todo o histórico imobiliário do local, descrevendo
tudo com muita facilidade.” Conhecimento esse que de certa forma revela a
notável importância que nesse tipo de entidade possuía a figura do advogado,
que no caso da Associação de Jacarepaguá era o dr. Pedro Coutinho Filho.
Antonio Caseiro na visita da comissão do Sindicato
Rural de Jacarepaguá é o segundo da esquerda para a direita. Fundo Última
Hora do acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo.
Mas o que mais chama atenção do agente mesmo é a grande
capacidade do tesoureiro Antonio Caseiro em efetuar uma espécie de trabalho de
conscientização política dos posseiros que recorriam à entidade. Lembra o
agente que ele devia “possuir biblioteca” e que lia “tudo sobre o problema de
terras e colonos”.
Capacidade essa que se expressava na própria
organização da estrutura física da sede.
Aspectos que denotavam o desenvolvimento da Associação como uma espécie
de centro de socialização e aprendizado de conceitos e categorias discursivas e
de pensamento, voltados para a configuração de uma determinada leitura sobre os
processos sociais da região que mais dissesse respeito à experiência de vida
dos pequenos lavradores que recorriam à organização. Além das carteiras e
cadeiras disposta como num auditório ou sala de aula, o agente do DOPS notava
que “na frente da sede existe pequeno palanque”. O mesmo frisava ainda vários
“políticos” costumavam comparecer à Associação. O próprio Caseiro era descrito
como “amigo influente” de políticos como os deputados pela Guanabara Mourão
Filho, Roland Corbusier, Hercules Correia e Oswaldo Pacheco. Rede de amizades
que provavelmente muito tinha a ver com o fato de ser “Cabo Eleitoral desde
muitos anos, existindo no terreno de sua residência uma placa eleitoral do Dr.
João Machado – [do partido] MRT”.
A formação de uma rede de apoiadores não visava apenas
às autoridades políticas. Os dirigentes da Associação, até por contar com algum
recurso viabilizado pela entidade (ou mesmo por partidos, como o PCB, ou mesmo
por alguns daqueles políticos), desenvolvia ações que buscava congregar o maior
número possível de pequenos lavradores, dos diversos pontos não só da região de
Jacarepaguá, mas de outros do Sertão Carioca. Para a reunião do dia oito de
dezembro de 1963, haviam sido “fretados 2 ônibus para transporte grátis dos
participantes”. No dia 1º daquele mês, o “ônibus nº de ordem 49.513 da Viação
Taquara S.A. conduziu associados para uma reunião em Santíssimo”.
O reconhecimento da grande habilidade de Caseiro em
articular seus argumentos leva o investigador do DOPS a destacar em tópicos os
temas de maior interesse por parte do português:
Sem grande conhecimento, porém com grande vibração
discute:
Criticas ao Governador
Reforma Agrária na China
Necessidade de Reforma Agrária
Inoperância do Poder Legislativo
Ricos ‘demais’ e pobres ‘miseráveis’
Sindicalização
S.U.P.R.A.
A Reação inevitável do camponês
Outro aspecto a se destacar é que bem antes da
averiguação da Associação Rural de Jacarepaguá por parte do DOPS, este já tinha
uma ficha com informações sobre seus dirigentes. Eles já sabiam, por exemplo,
que “Teobaldo ou Theobaldo José Ribeiro, brasileiro, preto, morador na estação
de Santíssimo. [...] Cabo eleitoral experimentado e influente entre
autoridades” (as mesmas que Caseiro).
Sobre Antonio Caseiro, os agentes já tinha ciência que
se tratava de um “português naturalizado, branco, casado com brasileira, pouca
instrução, 60 anos aparentes, morador no local 33 anos em casa situada à 200
metros da sede da Associação, onde são guardados todos os documentos e livros
do órgão”.
Para infelicidade de Caseiro os agentes não apenas
conheciam muito de sua vida e de sua atuação sindical e política. Na visão
deles, o luso-brasileiro era subversivo demais para os padrões políticos da
região. Tanto assim que mal havia sido desencadeada com o Golpe de 1964, a
Ditadura Militar por meio do mesmo DOPS iria ao encalço de Antonio Caseiro,
prendendo-o e torturando-o, certamente pelo “programa social” que ele tinha o
costume de discutir com tanta “vibração”.