Por Janis Cassilia
Pesquisadora do IHBAJA
20
de abril de 1963, sábado, 23:40 da noite. Mais de cem veículos estacionam em
frente ao Conjunto Habitacional Juscelino Kubitscheck, mais conhecido como o
IPASE de Jacarepaguá. Em questões de minutos uma multidão, descarrega seus
pertences, adentram os blocos e tomam posse de 125 apartamentos. A polícia é
chamada, mas ao chegar às 00:30 de domingo (21 de abril) não encontra mais nenhum veículo
sendo descarregado. Somente apartamentos ocupados por famílias numerosas (na
maior parte por crianças pequenas) e em cujas portas estava escrito em giz
“OCUPADO”. Os invasores ameaçam resistir caso os policiais forcem a
desocupação. O administrador do conjunto chamou a invasão de premeditada e
organizada. Os novos moradores dão crédito apenas a si mesmos. Não falam em
líderes ou um movimento político específico. Falam em movimento coletivo, de
pobres injustiçados por uma autarquia de quem são contribuintes. Exigiram seus
direitos a ocupar os apartamentos. Dizem que há dois anos têm seus pedidos
indeferidos. Denunciam a preferência pelos pistolões políticos, os aluguéis dos
apartamentos a terceiros que nada tem a ver com o funcionalismo público. A autarquia
lhes negou justiça. Resolveram eles mesmos consegui-la.
Conjunto Habitacional do IPASE, Praça Seca, Rio de
Janeiro. Imagens Google Earth.
Inaugurado
em 1956, o Conjunto Habitacional Juscelino Kubistchek, o popular IPASE, foi um
projeto habitacional financiado pelo Instituto de Previdência e Assistência dos
Servidores do Estado (IPASE) como parte de um projeto governamental para a
solução de moradias populares dentro de padrões aceitáveis de higiene e saúde
pública. Tal ideia vem desde o final do século XIX e ganhou força no século XX.
Após 1964, o problema das moradias populares ganhou impulso com investimentos
na área. Foram os casos dos conjuntos habitacionais de Olaria e Realengo. Os
projetos, elogiados à época pelas soluções de engenharia e arquitetura, foram
manchetes em revistas estrangeiras. Através dos IAPs e os CAPs (Caixas e
Instituto de Aposentadorias e Pensões), o governo inaugurou a época das COHABs
(Conjunto de Habitação Popular Brasileira).
Manchete do Jornal Correio da Manhã de 21 de abril de 1963.
Fonte: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/
A
invasão do IPASE em Jacarepaguá expôs o problema deste sistema de moradias. Em
tese, elas seriam destinadas aos servidores com menores salários, mas acabavam
com aqueles mais favorecidos, os chamados “pistolões”, que alugavam essas
residências por valores considerados altos. Na fila de espera, as famílias de
baixa renda e com inúmeros dependentes viam o conjunto abandonado e habitado
por homens solteiros, “bicheiros” e pessoas sem qualquer vínculo com o IPASE. Eles
eram na sua maioria, funcionários de baixos níveis das repartições e órgãos, pais
e mães de famílias com em média 5 ou 6 filhos. Ao entrarem nos apartamentos
encontraram os prédios deteriorados, com infestações de ratos e baratas.
Realizaram ligações clandestinas de energia e reivindicaram para si um direito
que lhes havia sido negado.
Manchete do Jornal Última Hora, segunda-feira, 22 de abril de 1963. Fonte: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/
O diretor do IPASE foi ao
local ouvir os invasores. Numa postura de conciliação, os administradores do
conjunto, junto com a diretoria do órgão decidiram mantê-los nos respectivos
apartamentos ocupados. Eles passaram então da condição de “invasores” a “novos
moradores”. Condição sempre contestada pelas autoridades quando havia
ocorrência de irregularidades. Em 1969, a Light decidiu cortar as luzes de
todos os apartamentos por falta de pagamentos do IPASE. O administrador do
conjunto culpava os “novos moradores-invasores”, pois os mesmos “não pagam
aluguel nem as luzes”. Os moradores culpavam o IPASE pela não cobrança. Esta
foi apenas uma de uma série de conflitos existentes entre os dois grupos.
Denúncias de assaltos, homicídios, atropelamentos e rachas foram algumas das que
chegaram à público. De um lado os funcionários dos correios e o restante dos
moradores reclamando da fraca infraestrutura, péssimo sistema de coletas de
lixo e a má conservação dos edifícios, culpando a administração ineficiente e o
abandono do IPASE. Do outro o administrador do condomínio reclamando da
permanência dos mesmos e o IPASE não repassando verbas. Nos seis anos de
diferença entre o episódio de chegada dos assegurados e suas famílias até o fim
da década de 1960, a visão sobre o conjunto foi se modificando. O IPASE passou
a figurar nas páginas dos jornais de arquitetura elogiada para reduto da
pobreza. Ao mesmo tempo, os novos moradores mobilizaram-se pelo espaço. Atuaram
em diretorias políticas, em Jornadas Femininas, na construção de um colégio, torneios
de futebol, bailes e festas públicas. Sozinhos ou em conjunto com a
administração do local. Os moradores do Conjunto Habitacional Juscelino
Kubistchek na década de 60 atuaram de forma política em um sistema que os
marginalizava. Reivindicaram não apenas sua moradia, mas a cidadania.
Vista aérea em 2D do IPASE na Praça Seca, Rio de
Janeiro. Imagens Google Earth.