POR Leonardo Soares dos Santos,
Professor de História/UFF, Pesquisador do IHBAJA e do IAP
Se não havia dúvidas
sobre a inclinação do governo Lacerda pela desapropriação, o que ainda gerava
preocupação era a modalidade desta: que tipo de desapropriação pretendia Lacerda realizar? E essa não era uma questão menor. Havia duas formas mais
comuns, a desapropriação por utilidade pública e por interesse social. Havia
(e ainda há) importantes diferenças entre as duas.
Na primeira, o
processo de desapropriação não tem caráter de urgência. Já na segunda forma, a
execução teria que se efetivada no prazo de dois anos. Havia uma outra
diferença, mais crucial ainda: pela primeira, o executante não era obrigado a conservar
os antigos moradores em suas posses. Ou seja, se o Estado quisesse, ele poderia
despejar a população de Gardênia Azul para a realização de outro
empreendimento. Pela segunda forma, o Estado se via obrigado a prover meios que
assegurassem a permanência dos seus moradores no território.
Havia o receio de que
por existir perto dali a construção do conjunto da Cidade de Deus, e diante das
várias evidências de que Gardênia Azul foi estabelecida num terreno impróprio
para ocupação (área alagadiça, antes um verdadeiro brejo, sempre sujeita a
alagamentos), Lacerda se decidisse pela transferência dos moradores desta
última para a localidade vizinha.
Daí que seus
habitantes vissem com grande preocupação a declaração da área abarcada por
Gardênia Azul como de “utilidade pública” (o que definia a área a ser objeto de
desapropriação). Face a esse acontecimento, Angela Fontes, “a Associação passou
a lutar em duas frentes: ao nível do privado, pela legalidade do loteamento
feito pelo sr. Padilha, e, ao nível público, contra o interesse do estado em
preservar a área para ocupação por uma classe de renda alta” (FONTES, 1984: 79-80).
Pouco tempo depois,
as pressões fariam o efeito tão ambicionado. Em 10 de março de 1965, quase um
ano depois do Golpe Militar, o governador Carlos Lacerda assinou o decreto de
desapropriação da área do loteamento do Parque Gardênia Azul. Argumentava o
mandatário que a decisão estava “baseada no fato que os proprietários da área
desapropriada descumpriram obrigações com os promitentes compradores dos lotes
deixando o ‘Parque Gardênia Azul’ sem urbanização e saneamento e sem condições
de habitabilidade” (Diário Carioca, 13/03/1965).
Diário Carioca, 13/03/1965.
Ficava ainda a
Companhia Metropolitana de Habitação da Guanabara (COHAB) encarregada de
executar a desapropriação e “instrução para mandar urbanizar toda a
área”.
A matéria do Diário
Carioca ainda informava que “os compradores dos lotes desapropriados
deverão assinar convênio com a COHAB para a execução das obras necessárias ao
saneamento e à urbanização do Parque”.
Antonio Silvino, um
dos primeiros moradores de Gardênia Azul (ele dizia ter sido o “sexto”), em
entrevista concedida a Angela Fontes na primeira metade dos anos 80, rememora o
acontecimento:
Em 1965, o governador Carlos Lacerda
queria desapropriar para utilidade pública, o que desapropriava a nós também.
Nós resistimos. Mantivemos a posição firme em torno da desapropriação por
interesse social, direitos de terceiros e adquirentes. Então, em 65, num dos
últimos atos de Lacerda, a assinatura do decreto da desapropriação por
interesse social. Muito bem! Mas o Lacerda saiu e ficou só assinatura” (FONTES,
1984: 80).
Correio da Manhã, 13/03/1965.
Em parte, as medidas oficializadas
por Lacerda seriam cumpridas. Alguns desses compradores conseguiram regularizar
a sua situação junto à COHAB. Porém, vários outros seguiriam lutando para
regularizar sua situação
Mas as obras e
melhoramentos prometidos pelo executivo estadual demoraram muito a acontecer.
Logo, a penúria perdurava. Nos últimos dias de 1965, matéria do Última Hora traçava
um triste retrato das condições de vida na região:
Também moradores do Bairro Gardênia Azul (Jacarepaguá) foram vítimas da conversa fiada de
companhia loteadora. Como acontece com a maioria deles, na hora de vender,
nhannhanzinhos, com tranquilidade bovina, prometiam: água, luz, gás, esgoto,
arruamentos, o diabo. E nada disso foi feito. Claro. Hoje, cerca de cinco mil
moradores comem o pão que o diabo amassou, pois estão no mato sem cachorro.
Começa que vivem na mais completa escuridão. Não tem água. Nem telefone. Quanto
à condução é a mais avacalhada possível: uma só linha de ônibus e cujos carros,
no verão, trafegam com gente pendurada até em coma das rodas, pois vão até a
Barra da Tijuca. E quem reside no Gardênia Azul que se dane. Que mofe duas e
mais horas à espera que algum passageiro desça e dê uma vaguinha muito espremida.
E mais: se alguém adoece durante a
noite e tem necessidade de socorro urgente, pode ir encomendando o enterro ao
papa-defunto porque vai morrer por absoluta falta de recursos!
É incrível mas verdade.
Por conseguinte, aos diretores do Dep. de Concessões (hoje com nome complicado pra burro), do Serviço de Aguas e de Energia Elétrica, pra fazerem qualquer coisa pelos moradores do Jardim Gardênia, que de conversa fiada já andam cheios, coitadinhos (Última Hora, 13/12/1965, p. 31).
Seria já no Governo Negrão de Lima que
o desafio de transformar a “assinatura” de Lacerda em algo efetivo, ou seja, a
realização de obras públicas e a garantia da propriedade da terra por parte de
seus moradores.