Por: Leonardo Santos, pesquisador do IHBAJA,
Professor de História (UFF) e doutor em História
O Itanhangá Golf Club é sem dúvida uma das joias da Barra da Tijuca. Possui um dos campos de golfe mais renomados do mundo, com seus 27 buracos, que começaram a ser abertos em 1933 e que estreariam dois anos depois, com o patrocínio de Getúlio Vargas, que considerava o clube seu favorito para a prática do golfe. Projetado pelo arquiteto canadense Stanley Thompson e pelo seu sócio estadunidense Robert Trent Jones, o clube além de promover o golfe, sediava outras práticas esportivas como polo, hipismo e tênis (https://golf-brazil.com/course/itanhanga-golf-club/).
Fundado em 1933, ele se constituiu desde sempre como referência para a elite da econômica e política da cidade, como deixa claro o rol de sócios fundadores (https://itanhanga.com.br/fundadores/).
Para muitos, a criação do clube acabou incentivando o despertar dos agentes econômicos (principalmente do ramo imobiliário) da cidade para as potencialidades da Barra da Tijuca. Lembremos que o bairro é descrito no Wikipédia como “um bairro nobre da Zona Oeste do município do Rio de Janeiro” (https://pt.wikipedia.org/wiki/Barra_da_Tijuca).
Por isso ele também é bastante representativo da história da Barra da Tijuca. Ao menos a história oficial, centrada na expansão do bairro a partir dos anos 1960 e 1970, e associada a ocupação promovida por segmentos da classe média alta da sociedade carioca. Mas e as outras histórias? E a ocupação realizada por outros grupos sociais? Qual o papel da população pobre e preta em tudo isso?
Ali na mesma área do Itanhangá, assim como em outras partes da Barra, várias disputas envolvendo o domínio de terras se desenrolaram por décadas. Essas disputas por terra foram gradativamente sendo removidas da história construída sobre o passado da região. Eram disputas entre visões divergentes sobre o direito à terra.
Mas se recuarmos no tempo veremos que a história da ocupação do que é hoje o Itanhangá é bastante representativa da maneira como foi se constituindo a memória oficial do bairro. Além do clube havia a ocupação de muita gente ali, e gente modesta e negra, pescadores e suas famílias. E que também consideravam ter direitos sobre aquelas terras.
Um desses conflitos seria objeto de uma bombástica reportagem veiculada por Última Hora no final de 1954. Sob o título “600 Lobos da Lagoa Expulsos da Pesca e das Restingas da Tijuca”, o repórter Ariosto Pinto apresentava um impressionante relato dando conta de uma tensa disputa por terras envolvendo centenas de modestos pescadores e suas famílias, de um lado, e grandes proprietários que ambicionavam a valorização das terras para futuros lançamentos imobiliários, de outro. E todos diziam ter direito ao domínio daquela área. Ali, onde boa parte do público carioca imaginava reinar a paz e a calmaria, estava se armando um conflito de grandes proporções – o que na verdade, era algo muito comum na região.
FONTE: Última Hora, 27/12/1954, p. 1.
Assim ele descrevia o dramático cenário, assumindo a versão dos pescadores da Colônia Z-6:
Seiscentas famílias de pescadores da Barra da Tijuca estão passando os dias mais amargos de toda a sua existência, neste fim de ano e vésperas de Natal, porque estão ameaçadas de serem violentamente despojadas de suas posses. Poderão ser obrigados a abandonar seus barracos de uma hora para outra. E não mais colherão, do mar e das lagoas dessa extensa região carioca, o produto que lhes proporciona dinheiro para as suas despesas. Não são grileiros, não invadiram terras de particulares. Fixaram seus barracos em terrenos de marinha, nas margens das lagoas e nas proximidades das praias, onde antes havia apenas mangues. Não forjaram documentos pra manter as posses. Apenas plantaram seus barracos nas terras que há muitos anos encontraram largadas, dominadas por brejos, insalubres. Com os seus próprios esforços limparam os mangues. Sanearam os trechos perigosos das lagoas. E agora, quando a cidade caminha a passos gigantescos para a Barra da Tijuca, estão elas sob a mira dos poderosos, se não houver uma providência urgente, terão de sair, mesmo, a toque de caixa, dos seus casebres (Última Hora, 27/12/1954, p. 10).
FONTE: Última Hora, 27/12/1954, p. 10.
Em outro trecho da reportagem, o pescador e morador da região Natalino Monteiro diz ter ali chegado “há 25 anos” – ou seja, provavelmente entre o final dos anos 1920 e início dos anos 1930. Segundo a sua versão, a ocupação dele e das outras famílias teria se dado de maneira mansa e pacífica, sem nenhuma oposição dos que se consideravam donos daquelas terras. Mas reconhece que a propriedade dessas seria da Marinha. Porém, esta foi permitindo que eles ali se fixassem, até porque contribuiriam com a recuperação das terras, antes “largadas, dominadas por brejos, insalubres”, como frisa a matéria.
Por isso a posse por parte dessas pessoas seria legítima, na versão dos pescadores, e corroborada por Ariosto Pinto, o repórter da matéria.
De modo a ilustrar tal versão, o jornal Última Hora reproduziu o depoimento de Natalino Monteiro:
Sou pescador antigo da zona. Vim para aqui quando tudo era brejo. Havia muita lama. Ninguém queria essas terras. Até então não tinham dono. Sabíamos, e hoje também sabemos que essas posses pertencem à Marinha. São marginais, Patrimônio da União, portanto. Ora, a União não tem interesse algum em despejar-nos [...]. A margem da Lagoa de Jacarepaguá, compreendida entre os quilômetros 18 e 21, está ocupada por pescadores. Pois bem, o Itanhangá julga-se com direito a retomá-la. E moveu uma ação de despejo que correu no Tribunal Federal de Recursos. Agora, somente nos resta apelar para o Presidente da República que, se quiser, poderá tomar uma providência. Somos posseiros há muitos anos. E temos o direito de continuar aqui trabalhando em benefício da população carioca, que muito se aproveita dos peixes que pescamos nas lagoas e no oceano.
Além da ameaça de despejo, os pescadores reclamavam da falta de apoio do governo, como fornecimento de equipamentos, combustível e meios de transporte do pescado. Caso isso fosse assegurado, o Itanhangá poderia abastecer o mercado do Rio em 30%, “venderíamos peixe fresco, barato e de ótima qualidade”, frisava Natalino, segundo a matéria.
Contudo, diziam-se “abandonados”. Mas prometiam resistir para seguir naquelas terras (e águas). Segundo o repórter, “as seiscentas famílias que residem naqueles barracos de madeira estão dispostos à luta”. Estavam dispostos a “defender com unhas e dentes as suas posses”.
Somente sairemos daqui depois de esgotados todos os recursos humanos disponíveis. Venderemos bem caro a nossa derrota, que não é a derrota do erro, mas, sim, a derrota do próprio direito ante a força dos que não tem piedade, dos que vivem para o trabalho e do seu trabalho.
Mas, afinal, o que aconteceu com toda essa gente? Qual teria sido o final dessa história?
Continua....
Fonte: Autor: Jankiel. Fundo Última Hora. Arquivo Público do Estado de São Paulo.