Campo Grande, Guaratiba, Jacarepaguá,
Irajá, Inhaúma, Tijuca, Engenho Novo, Santo Antônio e Santa Cruz – eram estes
os nomes das freguesias que em conjunto formavam a zona rural da cidade do Rio
de Janeiro, instituída pelo Ato Adicional de 12 de agosto de 1834. O
historiador Ilmar Mattos em seu O Tempo Saquarema
nos informa que eram chamadas de freguesias “de fora”, em contraste com as
freguesias “de dentro”, pois, mais próximas dos centros de decisão da corte, a
saber, as “instituições e instalações que tornavam possível a reprodução dos
interesses dominantes”: o Paço, o Senado, a Câmara dos Deputados e a Câmara
Municipal. Um pouco antes, no século
XVIII, tinha sido a zona rural carioca grande produtora de açúcar. Os engenhos
dos carmelitas e dos beneditinos eram as principais unidades produtoras. Só em
Jacarepaguá, eram 11 os engenhos da “Veneranda Ordem de São Bento”. O século
XIX traz uma aparente “decadência” econômica, ou como ele também prefere
designar – um “estado de letargia produtiva”. Em vez de grandes unidades –
fazendas e engenhos – serão as chácaras e sítios os responsáveis pelo novo tipo
de produção. Esta nem de longe se aproximava da do século anterior, tanto que
será a produção doméstica ou de subsistência a ocupar o papel de maior
relevância econômica. A chamada produção comercial estará restrita a poucas
fazendas, localizadas principalmente nas freguesias de Irajá e Jacarepaguá.
Fora dessas regiões, a cultura do café, por exemplo, teria sido efêmera e tão
somente de “fundo de quintal”. Por outro lado, chácaras e sítios de Jacarepaguá
“plantavam para o gasto” (mercado interno), mas também se dedicavam a uma
produção de larga escala, “com colheitas de centenas de milhares de arrobas”,
voltada para o abastecimento de um mercado mais amplo. A cultura do café teria
se disseminado nas encostas de morros propícias ao cultivo, as “soalheiras”
(vertentes ensolaradas e bem drenadas), deixando de lado as “noruegas”
(vertentes úmidas e sombrias) e as baixadas de Sepetiba e Jacarépaguá.
Muitos historiadores entendiam que a partir da década de 1890 a região conheceria uma
grande crise. Até aquele momento, a Zona Rural tinha-se mantido como uma área
de “grande valor populacional e comercial”. Prova disso era Jacarepaguá, a
freguesia de maior população escrava da Corte. Segundo o recenseamento de 1838,
entre seus 7.302 habitantes, 4.491 eram escravos. O fim da escravidão somado ás
outras transformações sócio-econômicas, promoveriam importantes mudanças na
paisagem social da zona rural. E as representações sobre esse lugar não ficaram
imunes a essas mudanças. Os autores dos relatos sobre a região interpretavam as
transformações que estavam ocorrendo nessa época como indícios de “decadência” e
“abandono”. É como se terras antes em plena produção tivessem sido tomadas pela
esterilidade agrícola e por doenças como febre-amarela e malária. O Almanaque
Laemmert de 1900 informava que a circunscrição de Guaratiba, a outrora
“mais rica e florescente” do Distrito Federal, encontrava-se com seus cafezais
destruídos, seus vastos campos de criação em agonia, infestada por doenças. A
única coisa que talvez destoasse desse quadro de desalento era o
desenvolvimento da pequena lavoura. Dizemos talvez, pois o fato era apresentado
de maneira a comprovar a situação de franca decadência de uma área antes
dominada por famílias tradicionais, com suas grandes propriedades e imensos
cafezais. O relato de Noronha Santos, escrito no mesmo ano, é emblemático dessa
visão calcada na idéia da decadência. O que o autor procura fazer com isso, é impor
um marco divisório entre um antes, pleno e produtivo com grandes
propriedades que funcionavam com mão-de-obra escrava, e um depois,
quando o fim da escravidão impõe a tomada de novas estratégias por parte dos
grandes proprietários em relação às novas formas de trabalho. Mas escrevia Noronha
Santos que em Campo
Grande havia “algumas” lavouras nas fazendas do Barata, do
Monte Alegre, do Juriari e da Paciência, e pequenas plantações de cana em
diversos sítios, “próximos dos povoados e lugarejos”. Havia também importantes
fazendas de gado, “hoje abandonadas por falta de braços para o trabalho rural”.
Sobre Guaratiba, em que pese o desenvolvimento da pequena lavoura e outras
atividades como a extração de madeira (cedro, peroba, jequibá, canela,
jacarandá e pau-ferro), “sua decadência é sensível devido às secas que têm
consumido suas plantações e importantes cafezais”. Em Santa Cruz, junto a um
comércio incipiente havia uma pequena lavoura existente em terras “outrora tão
bem aproveitadas”.
Essa
representação que tomava a zona rural pelo viés da decadência, carregada pela
nostalgia de uma “época de ouro”, não nos permite compreender importantes
processos que a partir dessa época passavam a tomar forma na zona rural. Um
deles diz respeito à formação e expansão de uma agricultura baseada na pequena
produção. Se atentarmos para este processo com mais cuidado, veremos que a
disseminação da pequena lavoura se deveu menos à derrocada da ordem dos grandes
senhores de terra e mais a uma estratégia posta em prática por eles mesmos para
a obtenção de ganhos econômicos e, possivelmente simbólicos.
Uma espécie de economia de subsistência passa a dominar a zona rural a
partir do último quartel do século XIX foi possibilitada pela divisão das
grandes propriedades em chácaras e sítios que foram arrendadas ou aforadas aos
lavradores. Isto
cumpria aos olhos dos antigos senhores de terra, dois papéis muito importantes.
Primeiro, era preciso atrair uma nova mão-de-obra para as terras, a fim de que
através de seu trabalho, elas se mantivessem produtivas e rentáveis. Uma das
formas mais utilizada para tal fim foi a cessão da posse da terra através da
enfiteuse, uma instituição jurídica que remontava à Idade Média portuguesa. Por
meio dela o proprietário recebia uma pensão ou foro anual, ficando o adquirente
obrigado a conservar a terra produtivamente. Mas
havia nisso um segundo propósito. Ao ceder apenas o direito de posse,
pretendia-se conservar a extensão territorial da grande propriedade e o domínio
sobre ela. Mas o fundamental nisso tudo era a introdução na área do pequeno
lavrador, seja como foreiro, arrendatário ou parceiro. Ou seja, com eles, novas
relações sociais começavam a se consolidar na região. No início, esses agentes
eram vistos pelos grandes proprietários como solução para a valorização de suas
terras, “enquanto estas aguardam novos tempos, à espera do antigo fausto”. É de
suma importância que tenhamos isso em mente quando começarmos o estudo desses
“novos tempos”.
Anúncio de fins do século XIX do Jornal do Commercio.
Mas a terra e, principalmente, o que havia
nela (benfeitorias, ferramentas, plantações, etc.), proporcionaram ganhos aos
seus proprietários através de outras formas. Enquanto muitos proprietários
preferiram manter suas terras para fins de cultivo com a simples cessão da
posse, outros preferiram inseri-las no circuito comercial de compra, venda e
aluguel de terrenos e benfeitorias. Este mercado se desenvolveu nas freguesias
de Irajá, Inhaúma, Tijuca, Engenho Novo e Santo Antônio. O desenvolvimento
dessa forma de valorização daria ensejo, segundo Pechman, ao surgimento de um
“mercado de terras” no subúrbio da cidade. Negócio que, segundo ele, mostrou
ser proveitoso a partir da década de 1840. A proliferação de anúncios de venda e
aluguel de terrenos e benfeitorias nas páginas de classificados dos jornais no
início daquela década seria um seguro indício. Mas os próprios anúncios nos
mostram o quanto é problemático afirmarmos sobre a existência, ao menos naquela
época, de um mercado de terras. Vejamos então alguns deles:
- “Arrenda-se um sítio na Penha, distante 3 léguas da
cidade, com muito boa casa de vivenda, excelente água, grande cafezal, muito capim,
podendo tirar diariamente 12 talhas, muito arvoredo frutífero e porto de mar
muito perto...”
- “Vendem-se terras pertencentes à Ilma. Sra. D. Jerônima
Duque Estrada Meyer, no Engenho Novo, um sítio com arvoredos frutíferos, um
apequena casa de palha e parte das terras ainda em capoeirão...”
-
“Vendem-se as benfeitorias de um sítio em terras do
Engenho Novo do Campinho, distrito de Inhaúma, contendo boa casa de vivenda,
plantações de café, enxertos de laranja de todas as qualidades, mandiocas e
bananeiras, tudo em quantidade...”
Dos três anúncios, só no segundo a terra aparece como o objeto de
transação. O primeiro se refere a um arrendamento, ou seja, o que se negocia é
o direito de uso sobre a terra e não a terra em si. No terceiro, o que se
põe a venda são as benfeitorias. Isso passará a mudar a partir de 1870 com a
extensão das linhas de trem e de bonde em direção aos subúrbios, de um lado, e
a abertura de ruas, do outro. Neste momento, parte da zona rural – compreendida
pelas freguesias referidas acima – passará a ver a transformação de suas
fazendas em lotes urbanos. Numa área que vai até o limite entre a freguesia de
Inhaúma e Jacarepaguá, verifica-se uma diminuição do tamanho dos terrenos
postos à venda e uma nova lógica na repartição da terra. Cabe lembrar que os
lotes vendidos localizavam-se em áreas arruadas e faziam parte de um conjunto
de outros lotes, “caracterizando, sem sombra de dúvidas, um processo de
constituição de uma malha urbana”. Esta só se consolidaria a partir da década
de 1890, quando si inicia a urbanização dos bairros do subúrbio como Engenho
Novo e Méier. Data dessa época o grande número de pedidos encaminhados à
Diretoria de Obras e Viação para abertura, nivelamento e calçamento de ruas,
prolongamento e aceitação de logradouros, e licenças para construir. A intensidade desse processo fará com que,
iniciado o século XIX, as freguesias de Inhaúma, Irajá, Engenho Novo, Tijuca e
Santo Antônio passem a constituir uma “franja urbano-rural”, onde é intensa a
mistura de usos dos dois tipos. Mesmo as freguesias que ainda eminentemente
rurais (onde a maior parte das propriedades se destinava à atividade agrícola)
entrarão no novo século tendo que conviver com o aprofundamento de um processo
de urbanização, que se dá seja através do retalhamento das terras, seja pela
expansão de obras urbanas com a extensão de linhas de trem, bonde e abertura de
ruas e avenidas. Mas por se tratar de um processo marcadamente lento, os usos
urbanos terão de conviver forçosamente com os usos rurais, ainda amplamente
dominantes.
O século XIX terminava mas a região tinha bons motivos para não ser
considerada decadente. Em primeiro lugar, há um significativo mercado girando
em torno do uso sobre a terra (sob a forma principalmente do arrendamento), e o
desenvolvimento de um “mercado de terras”, bem mais tímido é verdade. Mas tanto
um como outro ajudavam a expandir uma agricultura baseada em pequenas unidades
de produção e lançar as primeiras sementes de uma malha urbana no subúrbio do
Rio, e que nas freguesias mais próximas do centro da cidade já se encontrava
consolidada desde a década de 1890. Em segundo, o fato dos antigos
proprietários terem retalhado seus terrenos pode muito bem não ter sido um
sintoma de decadência. Na verdade, o discurso sobre a “decadência” dizia mais
respeito a um olhar saudoso da época das grandes plantações movidas pelo
trabalho escravo do que a processos que efetivamente ocorriam na região. Infelizmente alguns pesquisadores
incorporariam isso em suas análises.
Leonardo Soares dos Santos
Membro do IHJA
Professor Adjunto II do Curso de História do Polo da UFF/Campos
Coordenador do NEPETS
Professor Colaborador da USS