As obras de saneamento no Sertão
Carioca
das décadas de 30 e 40
Por Leonardo Soares dos Santos
Professor Adjunto II do SFC/UFF
Membro do IHJA
As obras realizadas pela Diretoria de
Saneamento da Baixada Fluminense (DSBF) nas Baixadas de Jacarepaguá e Sepetiba
foram outro importante acontecimento verificado na zona rural dessa época.
Junto com a “febre da laranja”, essas obras ajudaram a consolidar a imagem da
zona rural como uma região de “fronteira aberta”. Era do desejo de seus
principais mentores fazer da zona rural um “cinturão verde” capaz de promover o
abastecimento quase completo do Distrito Federal. Mas a importância daquelas
obras reside também no fato de ter feito da zona rural uma área de expansão não
apenas para a agricultura. Com os melhoramentos do DSFB, a região estava
definitivamente aberta para uma outra expansão, a dos negócios imobiliários.
Estes, por sua vez, eram cada vez mais regidos por uma nova modalidade – a
produção em massa de lotes urbanos.
O órgão da União originalmente encarregado dessas obras, a Comissão de
Saneamento, visava intervir apenas na área da Baixada Fluminense e tinha como
plano os seguintes objetivos: a) projetar, executar ou fiscalizar obras de
saneamento da Baixada Fluminense; b) produzir estudos sobre sua bacia hidrográfica;
c) elaborar um plano de desenvolvimento econômico para a região; d) executar o
levantamento de um cadastro imobiliário de toda região da Baixada Fluminense;
e) elaborar uma legislação especial para o saneamento e conservação das obras.
Os trabalhos gerais foram iniciados em julho de 1933. Logo depois a Comissão
foi transformada em um
Departamento com funções extensivas a todo o território
nacional. Com isso, as áreas próximas da Baixada Fluminense foram incorporadas
no roteiro de melhoramentos. A primeira delas foi a Baixada de Sepetiba. Essa
região, apesar da proximidade com a Baixada Fluminense, tinha problemas que lhe
eram bastante específicos: “as obras na Bacia de Sepetiba”, como bem destaca
Alberto Lamego, não tinham finalidades agrícolas, pois, havia “complexidades
urbanísticas visíveis”. Aqui o objetivo era prever a defesa do Núcleo Colonial
de Santa Cruz contra as enchentes da bacia do Guandu e erradicar os focos
permanentes de impaludismo. Segundo Leonardo J. Fernandes, “por trás desses
planos de obras” havia o interesse na valorização fundiária de uma área
equivalente a 2.167 Km² (2 trilhões e 167 milhões de ha). Seja como for, as
obras ali chegaram em 1935, com o desmatamento de toda vegetação no interior
dos rios e em suas margens. Dois fatos chamavam a atenção dos técnicos do DNOS:
o primeiro era a existência de focos permanentes de impaludismo e o segundo, a
convivência nessa mesma região de uma área “próspera e intensamente cultivada”
com “enormes áreas inaproveitadas”. Mais uma vez vinha à tona a imagem do
Sertão Carioca como região de contrastes. Em termos práticos, as obras teriam
provocado uma melhora nas condições de salubridade da região; muitos pântanos e
brejos foram saneados, tornando-se terras próprias para a agricultura. Para
isso, inúmeros canais e valas foram construídos ou dragados. Outra importante
consequência foi a valorização fundiária dessas áreas, chegando-se a ponto de
vários canais terem seus traçados modificados em função de loteamentos; o
próprio DSBF, promoveria a abertura de valas de drenagem em propriedades
particulares de modo a torná-las mais valorizadas.
Processo semelhante se verificaria na Baixada de Jacarepaguá, terceira
região a sofrer as intervenções do DSBF. As obras ali chegaram em 1937. Um grande
surto de malária levou o ministério da Educação e Saúde Pública e sua
Inspetoria de Engenharia Sanitária a se ocupar da região. Os estudos desses
órgãos constataram que os brejos e manguezais na orla das lagoas de Jacarepaguá
eram obstáculos ao curso das águas, constituindo-se num “veículo para o
impaludismo”. Uma das soluções propostas – e que foi aprovada - foi a
regularização dos rios da bacia contribuinte das lagoas da Tijuca, Camorim e
Marapendi. Devido á pressão exercida por Companhias Imobiliárias que atuavam na
restinga de Sernambetiba, chegou-se a cogitar no aterramento dessas lagoas.
Mesmo tendo sido recusada essa proposta, os interesses de agentes imobiliários
não foram de todo frustados, já que o próprio DSFB apresentava como principais
objetivos de seus trabalhos na Baixada de Jacarepaguá a extinção de “focos de
anofelinos” e, segundo palavras de um engenheiro do órgão, a “melhora da
estética deste recanto de turismo do Distrito Federal”; iniciativas que num
futuro próximo poderiam até mesmo facilitar a implantação de loteamentos na
região, embora essa não pereça ter sido a intenção dos agentes do DSFB. É como
se finalmente, o DSBF estivesse em fins dos anos 30 atendendo aos anseios de
sanitaristas da década de 10, embora já demonstrasse não ter certeza sobre o
fim mais adequado a ser dado a essas terras, se para a agricultura ou se para a
ocupação urbana. De qualquer forma, o primeiro tinha sido parcialmente
alcançado: em 1939, Hildebrando de Góes, diretor do DSBF, afirmava que inúmeros
brejos tinham sido extintos, ocasionando uma sensível diminuição dos focos de
malária. Contudo, esta só seria totalmente erradicada em 1957. Todavia, a
consecução bem-sucedida do segundo objetivo dava o ar da graça com bastante
mais antecedência, muito embora não da forma esperada. O almejado “melhoramento
estético” ocasionou um aumento da especulação imobiliária em áreas recuperadas
pelo DSBF. Já em 37, o mesmo Hildebrando de Góes, apresentava e lamentava os
dados sobre essa conseqüência: nas terras que margeavam a Lagoa da Tijuca, o
metro quadrado tinha conhecido uma valorização de 200%; em Vargem Grande, ela
era de 1.500%.
É importante frisar que a extraordinária valorização fundiária na região
não se deveu apenas às obras do DSBF. Também contribuíram para isso outras
obras de infra-estrutura do governo federal realizadas ao longo das décadas de
30 e 40, como a abertura das estradas do Joá e Menezes Cortes (atual
Grajaú-Jacarépaguá), a eletrificação da Central do Brasil, e a construção da
avenida Brasil. Sem esquecer que a extensão das linhas de bonde e,
principalmente, de ônibus, exerciam papel fundamental no processo de
incorporação urbana da zona rural. A expansão das vias de comunicação e a
melhoria das condições de salubridade passam a encorajar os empreendedores
imobiliários a retalhar seus terrenos não mais para arrendar ou vender a
pequenos lavradores. Assiste-se nesse momento à consolidação de um mercado
efetivo de compra e venda de terras que se destinava à construção de
loteamentos. O curioso é que ao contrário do que afirma Pechman e outros
pesquisadores, esse mercado de terras não ocasionará - ao menos de forma
completa – a incorporação urbana do Sertão Carioca. Não parece haver dúvidas de
que boa parte desses loteamentos conduziu à implantação de um mercado
imobiliário urbano. Os anúncios dos terrenos vão deixando de enfatizar a
existência de benfeitorias de recursos de uso agrícola, dedicando-se a atrair
compradores com a menção de “qualidades urbanas” como proximidade em relação a
vias de comunicação (estradas, avenidas, linhas de trem, bonde etc) e
existência de serviços de luz, água encanada, esgoto e telefone. Mas esses
loteamentos não eram exclusivamente urbanos. Alguns loteamentos eram
constituídos de lotes rurais, outros buscavam conciliar as duas funções (urbana
e rural) através dos lotes para veraneio. Vejamos esses anúncios, de Campo
Grande e Senador Câmara respectivamente:
-
“No DF, 4 milhões de m², em zona servida por trem elétrico, bonde a
porta; projeto de loteamento para 600 lotes: não aceito intermediário”.
-
“Casas, terrenos e Sítios – uma estação depois de Bangu, água encanada,
luz, telefone, bom comercio, trens de meia e meia hora, 10 minutos da Central;
600 casas a serem construídas em 40 dias, por 55 mil; financiado pelo IAPC;(...)
mais de 100 lotes em ruas construídas, a 2 minutos da estação a partir de 6
mil...”
Estamos lidando com um mercado de terras que poderíamos chamar de híbrido, ainda longe de ter uma forma puramente urbana. Contudo, fosse urbano, rural ou de veraneio, os loteamentos pareciam ser um negócio altamente rentável. Os lucros proporcionados por tal tipo de negócio faziam com que muitos se oferecessem para a compra de grandes propriedades na região, como nos mostra esse anúncio de Campo Grande:
“Compra-se sitio, até 300.000
m², que tenha nascente, com queda d’água, não distando
do Rio mais de 2 horas e em lugar de recursos e saudável. Com ou sem
benfeitorias. Dá-se preferência para Campo Grande.”
Outros preferiam tão somente se oferecer como corretores de
imóveis para a simples intermediação desses negócios: “Sítio – Campo Grande –
Querendo vender seu sítios, chácara ou área de terra, exclusivamente neste
local, encarregando-me sem o menor aborrecimento (...) qualquer dia qualquer
hora.”
Outro fator que passa ganhar
ênfase nos anúncios de venda de terras a partir de meados da década de 40 é a
possibilidade de serem usados como ativo financeiro. Com a onda inflacionária
que passa a tomar conta do país, os rendimentos que se podiam ter com a
especulação de terras eram bem maiores do que com a produção agrícola. E mesmo
quando se tratava de lotes urbanos, os anunciantes não deixavam de destacá-los.
Desejosa de vender lotes em Jacarepaguá, “recanto tradicional dos nobres da
Corte, tradicional solar dos barões da Taquara, Visconde de Asseca e Camarista
Mor Thedim de Sequeira”, a Companhia de Extenção Territorial, dizia oferecer o
“melhor week-end para o carioca”, servido com água, luz, telefone, ônibus e
bondes; localizado num lugar que “dentro em breve será ligado à cidade pela
estrada Três Rios-Grajaú”. E para quem ainda não estivesse convencido das
vantagens dessa “oportunidade única” o anunciante argumentava que: “A aquisição
de uma propriedade nesse futuroso bairro, a par das delícias de uma vida alegre
no campo, proporcionará a aplicação segura de capital, compensada por uma
valorização certa..”
Quatro anos depois, vemos a mesma companhia, “que há 26 anos, vem
colaborando para o progresso do RJ”, anunciar a venda de lotes do Parque Campo
Lindo em Campo Grande,
“em condições tais, de preço e facilidade de pagamento, que só seus amplos
recursos e vasta experiência podiam permitir”. A companhia a apresentava como
uma “bomba atômica nos negócios de terrenos”. Afirmando ter vendido todos os dois
mil lotes do primeiro loteamento, a companhia lançava agora o segundo
loteamento, “nas mesmas condições excepcionais que garantiram o sucesso
anterior”. Os lotes “de 15x15” e as chácaras “de 2.000 m² a 10.000m²”,
segundo ela, eram “planos e prontos para edificar e cultivar”, ficavam a 15
minutos de Campo Grande e eram servidos por nada menos do que oitenta trens
elétricos diários, o que garantia aos terrenos do Parque Campo Lindo um
“desenvolvimento rápido e valorização certa”. Até porque, como arrematava
sugestivamente a Companhia: “Só vende terras que valem ouro”.
Também podemos notar nos anúncios dos
anos 40 a
introdução de algumas inovações nas formas de propaganda dos empreendedores
imobiliários. Estes investirão largamente na utilização de uma linguagem muito
semelhante à dos primeiros textos de divulgação do Sertão Carioca como o de
Magalhães Correia. É a representação da zona rural como um recanto paradisíaco
que dará cor às estratégias de venda dos grandes loteamentos dirigidos para a classe
média. Tal objetivo faz com que os classificados de imóveis tenham entre seus
termos mais recorrentes, referências do tipo “clima privilegiado”, “clima de
sanatório”, “vista deslumbrante”, “recanto aprazível e sossegado”. Mas se com
Magalhães Corrêa essas figuras de linguagem, ao realçar as belezas da região,
vinham acompanhadas de exortações em favor da preservação do Sertão Carioca,
com os loteadores elas funcionavam no sentido da aceleração de sua incorporação
ao mercado imobiliário.
É nesse momento também - e há nisso uma grande contribuição por parte
das obras do DSBF – que as referências sobre a zona rural como o lugar da
doença cairia em desuso. O
que não aconteceria com a referência que a tomava como um lugar abandonado por
parte dos poderes públicos. Estes vinham promovendo o saneamento, mas a
agricultura, a infra-estrutura, os serviços públicos e as questões envolvendo
conflitos de terra na região pareciam não merecer a mesma atenção.