Não é de hoje que as terras da região de Jacarepaguá (em
especial as da Barra da Tijuca) são escandalosamente roubadas, em plena luz do
dia, sob as barbas dos poderes públicos. Na verdade, a história dessa área
revela um processo incessante de esbulhos, falcatruas cartorárias e atentados
contra a vida humana, por conta das inúmeras disputas envolvendo a posse e a
proriedade da terra. E isso desde os tempos dos clãs dos Assecas e dos Sás, e
com a intermediação nada sagrada de algumas ordens religiosas (estas também
grandes senhoras e possuidoras de terras).
E a coisa só piorou no período imperial e – pasmém –
republicano. E no século XX a questão ganhou contornos mais dramáticos. Já que
se nas épocas anteriores, a violência só atingia apenas as famílias diretamente
envolvidas nas disputas, a partir de meados do século XX a sanha das loteadoras
passa a visar a expulsão de centenas de famílias de uma mesma área e de forma
indiscriminada.
Na antiga zona rural da cidade do Rio a expansão urbana fez
inúmeras vítimas. De Santa Cruz a Jacarepaguá, vários casos de dor e sofrimento
de famílias de pequenos lavradores dão testemunho do processo criminoso de
expoliação que varreu a agricultura carioca. Na área de Vargem Grande e Vargem
Pequena os lavradores eram obrigados a aceitar “um contrato com cláusulas
medievais” do Banco de Crédito Móvel. O Radical noticiava em agosto de
1950, que as Companhias Tijucamar, Barra da Tijuca AS e Lagoamar AS agiam na
Restinga de Jacarepaguá (atual Barra da Tijuca) para “negociar” terras que não
lhe pertenciam. Por conta disso, “posseiros trintenários eram desalojados a
mosquetão e a sevícias” por “capangas armados até os dentes”.
Sem esquecer da Fazenda Santo Antônio de Curicica (Jacarepaguá).
Os primeiros embates entre lavradores e pretensos proprietários a chamar a
atenção da imprensa datam do início da década de 50. Em 1952, por exemplo, os
senhores Júlio César Fonseca e Gustavo de Carvalho (pretensos proprietários)
conseguiram uma ordem de despejo contra cerca de 120 famílias que, assim
diziam, trabalhavam ali há mais de 30 anos. Outra exigência foi encaminhada ao
prefeito no sentido de que esse designasse uma comissão composta de três
engenheiros para proceder ao “levantamento da área”. A luta desses lavradores
era bem mais antiga: há 17 anos pelo menos, muitos deles vinham depositando as taxas de arrendamento em juízo.
Em 1947, a Cooperativa de Agricultores de Jacarepaguá e a Liga Camponesa de
Vargem Grande já mobilizavam esforços para tratar da “ameaça de expulsão” de 46
lavradores na Fazenda Curicica.
Mas nesse
momento, as salas dos tribunais já não eram suficientes para comportar por
inteiro os embates entre os lavradores, que se diziam responsáveis pelo
abastecimento de 40 toneladas diárias de legumes, frutas e verduras aos
mercados do DF, e os “grileiros” Júlio César Fonseca, Luiz Saddy, o Banco de
Crédito Móvel, a Cia. Bandeirantes e o Banco de Crédito Territorial, acusados
de se valerem “de documentação falsa e de outros meios escusos” para
satisfazerem seus intentos - afirmava o’ Radical em 1954. “A luta pela
posse da terra está mais acêsa e mais violenta em Jacarepaguá” – noticiava com
certo entusiasmo o jornal comunista Imprensa Popular em julho de 1954.
Lendo as declarações de alguns lavradores, é possível perceber que as disputas
em torno da posse da terra já não tinham o recato e comedimento exigidos por
uma disputa jurídica. Ao contrário, os últimos acontecimentos davam força à
idéia da história de Curicica como tendo sido feita “de sangue, violências e
desumanidades”. O aumento da violência era atribuído por lavradores e imprensa
à aplicação de uma tática agressiva por parte dos pretensos proprietários.
Segundo nos conta o Imprensa Popular, em meados dos anos 50 “o grileiro
César Augusto da Fonseca conseguiu trampolinescamente(sic) ampliar uma área de
535 mil para quase 5 milhões de m² a poder de tapeações, crimes e tocaias”.
Agora há que se perguntar: vendo o que hoje está sendo feito
pelos poderes públicos e as empresas (e empreiteiras) que financiam suas
candidaturas, no sentido de despejar e destruir a vida de moradores de
“ocupações” que estão no “meio de caminho” dos grandes eventos: alguma coisa
mudou? Ou a história que teima se repetir?
Leonardo Soares é pesquisador do IHBAJA e professor da UFF.