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sexta-feira, 23 de junho de 2017

As freguesias rurais do Rio Janeiro (II)


                                                                             



Em 22 de dezembro de 1892, encontra-se registrado nos Anais do Conselho Municipal a reclamação de alguns moradores da freguesia de Guratiba com a falta de “conserto do aterrado do Sacco” há mais de 40 anos. Em julho de 1896, moradores de Realengo enviavam um memorial pedindo a reparação do “povoado”. No memorial vários fatores eram apontados para demonstrar a crescente importância do lugar: uma população de “12 mil almas”, uma estação de trem da Central do Brasil, três escolas municipais, uma fábrica de cartucho em construção. Além de ficar há poucos minutos da Fábrica de Tecidos de Bangu e teria ainda em “breve um arsenal de Guerra e bem assim é de esperar grande aumento de edificações e accrescimo na população pelo grande numero que há de proprietários de terrenos foreiros e de particulares que se achão já retalhados e a maior parte vendidos.”

Já na administração de Pereira Passos, em 1903, o Intendente Francisco da Silva apresentava uma Indicação numa das sessões do Conselho Municipal, instando o Prefeito a promover “melhoramentos” em alguns povoados “então esquecidos” da zona suburbana, como ele já vinha fazendo em Jacarepaguá e Cascadura:

“Considerando que o digno Dr. Prefeito está disposto e tem resolvido dotar alguns pontos da zona suburbana com o importante e necessário melhoramento da iluminação.

Considerando que os povoados de Realengo, Campo Grande e Santa Cruz, pelo grande desenvolvimento que têm e pelo que contribuem para a receita municipal não podem e não devem ser esquecidos:

Indico que o Conselho Municipal solicite do Sr. Dr. Prefeito [Pereira Passos] a illuminação dos referidos povoados pelo systema que S. Ex. julgar mais conveniente e economico”.



O simples fato de uma autoridade política dizer estar interessada em promover um melhoramento num lugar da região suburbana e rural é garantia da implementação deste melhoramento? Obviamente que não. Como se pode testemunhar até hoje entre muitos políticos do cenário local e nacional, todos fazem questão em expressar boa-vontade em prometer a realização de inúmeras melhorias nas localidades por eles visitadas, especialmente em épocas de eleição. Mas em muitos casos, a consecução dessas melhorias não é levada a efeito, não passando do mero nível do discurso. Porém, no período em que estamos tratando, há alguns aspectos que precisam ser considerados. Conforme a atitude de Francisco Alves deixa sugerir, assim como a demanda acima de moradores das freguesias rurais e suburbanas, a região ao mesmo tempo que conhecia um notável crescimento demográfico, via com isso a sua importância política aumentar no cenário do Distrito Federal. Não tardaria para que líderes políticos da região explorasse a situação de carência da região em termos de serviços e infra-estrutura públicas para construir sua plataforma de atuação no legislativo da cidade. Muitos intendentes, por exemplo, para se verem reconhecidos como porta-vozes da população rural e suburbana, pautariam suas ações na “busca e conquista” de “melhoramentos” que eram até negados àqueles “povoados esquecidos” pelos poderes públicos. Isso de certa maneira geraria certos embaraços aos primeiros Prefeitos da cidade, os quais nitidamente concentravam os investimentos da municipalidade nas “zonas nobres” da cidade.

Um interessante exemplo foi a aprovação da emenda do Intendente Alvaro Albano ao Projeto n.28. Em sua primeira versão, ele estabelecia que “todos os terrenos em quaesquer das freguesias urbanas ou suburbanas, que não tiverem água, luz e esgotos, serão isentos do pagamento de emolumentos ou braçagem de qualquer natureza”. Por esta definição, apenas as freguesias não-urbanas de Inhaúma e Irajá seriam contempladas. Ao que Alvaro Albano apresentou e teve aprovada uma emenda estendendo tal “benefício” à Campo Grande, Guaratiba e Santa Cruz.

Para um município com tantos gastos com funcionalismo público e com as próprias obras que avolumavam ano a ano (ruas, estradas, calçamento, iluminação, esgoto etc.) a arrecadação de impostos passava a ser crucial, constituindo ela mesma num dos pilares que sustentavam a máquina governamental. Uma emenda como a de Álvaro Albano certamente teria sido vista pelos representantes da administração Pereira Passos como extremamente prejudicial às finanças da municipalidade, pois ele ameaçava retirar da alça de sua mira tributária um enorme contingente da população da cidade. Para evitar tal risco ele passava a ser obrigada a promover melhoramentos. Para uma administração como a de Pereira Passos (e igual a inúmeras outras como a de Carlos Sampaio, Prado Júnior e outros), tão comprometidas com as reformas urbanas do centro e com as localidades que estavam sendo ocupadas pela elite carioca, como Copacabana e Botafogo, não era uma decisão simples. Mas a pressão das contas e dívidas sempre crescentes, diariamente lembradas pelos funcionários ligados ao setor de finanças da Prefeitura, devem ter levado o Prefeito a concluir que não havia outra alternativa.

Há que se destacar também que havia outro motivo para os poderes públicos investirem na região. Verena Andreatta sublinha que no modelo de cidade que se afirma no Ocidente a partir do século XIX, a constituição de serviços públicos urbanos será o instrumento principal de realização da mais-valia urbana, pois

“A possibilidade de incrementar esse valor nas proximidades da cidade e os altos benefícios que supõe a passagem do solo de valor rural a urbano têm sido fator determinante da contínua explosão da cidade sobre seu território limítrofe. Extensão cujo tamanho depende enormemente do poder de cada nova infra-estrutura para reduzir distâncias, aproximar o espaço adjacente ao centro em termos de tempo, mas também em termos de possibilidade de extensão dos novos serviços urbanos, inventados desde o início desse século a cada vinte ou trinta anos, de forma recorrente”.



Talvez essa seja uma razão suficiente para descaracterizar a atuação dos poderes públicos e de líderes políticos na região como práticas de beneficência. Os investimentos na ampliação de serviços públicos na região estava longe de responder aos princípios de uma hipotética dívida histórica e social com a área. Na verdade ela parecia se reportar a um plano geral da municipalidade na sua busca permanente em conseguir receitas, via impostos e tributos, por exemplo – uma forma possível de se extrair a mais-valia urbana apontada por Andreatta – para cumprir com o seu plano orçamentário. Tendo esse princípio como norte, o então Prefeito entrava em entendimentos com o Ministério da Viação em 1895 “a fim de abastecer de água potável” o “distrito de Guaratiba e a ‘povoação’ de Sepetiba, no curato de Santa Cruz”.

Mas a região parecia se tornar atraente não apenas para os poderes públicos. Vários investidores particulares também se lançariam com inúmeros projetos – muitos deles frustrados - de investimento em serviços públicos. Não é difícil imaginar a expectativa de lucros rápidos vislumbrada por Manoel Gomes Arruda tão logo ele tenha visto aprovado o Projeto n. 204, pelo qual lhe era concedido permissão “para explorar a illuminação publica e particular, pelo systema de gaz carvão ou outro no curato de Santa Cruz, Realengo, Campo Grande e Bangú.” Perspectiva semelhante teria levado a empresa Pereira Jr. & Cia. e Carlos Rossi a propor à Prefeitura, muito provavelmente em meados da primeira década do século XX, um contrato de conservação das estradas suburbanas. Contudo, em que pese o contexto favorável para investimentos na região, havia casos em que os proponentes verdadeiramente erravam a mão em seus projetos. Atentemos para o exemplo de Pedro Antonio Filho. Num projeto de sua autoria, apresentado ao Conselho Municipal em 1891, lê-se que ele simplesmente desejava realizar “por si ou por empreza que organizar diversos melhoramentos na zona comprehendida entre Engenho Novo e Santa Cruz, no distrito federal”. Na prática, o autor se responsabilizava em mudar a face de um território que abarcava mais de 60% da superfície do Distrito Federal. Constavam entre alguns dos “melhoramentos” por ele propostos: abrir ruas, estradas e caminhos; estabelecer núcleos coloniais; construir “sobre regras de da bôa higiene casas econômicas izoladas umas das outras”; “estabelecer immigrantes de preferência belgas, allemães ou nacionaes mediante contracto prévio, auxiliando-os para sua collocação”; “proceder a drenagens e plantações de vegetais especiais nos terrenos que forem insalubres nas proximidades dos núcleos coloniaes que estabelecer”; “construir um edifício em terreno sufficiente para manter uma eschola pratica e theorica de agronomia e veterinária, onde se dê educação professional, segundo as regras modernamente ensinadas na Europa”; “constuir escholas primarias nos núcleos coloniaes que estabelecer para servir aos filhos dos colonos da localidade”; “um mercado em Cascadura e outro no Engenho Novo para vendas a varejo e por atacado”; “armazéns em Cascadura, onde os lavradores sem pérca de tempo poderão abastecerem-se de todos mistteres concernentes a uso particular, como seja: gêneros, roupa, instrumentos de lavoura”; organização de uma “exposição agrícola, bem como de floricultura e avecultura etc cujo productos sejão julgados por um jury e premiado”.

Mesmo diante de tão “patrióticos intuitos” – como classificou o próprio autor do projeto -, não foi difícil para Miguel Guimarães, o Intendente responsável em avaliar a sua viabilidade, justificar a sua decisão pelo indeferimento do pedido:

“A zona onde o suplicante pretende fazer melhoramentos por meio dos extremos favores que sollicita, é tão vasta que esta sua qualidade será sufficiente para que não lhe fosse concedido o que se pede, pois importaria para esta Intendência a alienação de grande parte de sua fonte de renda – Mais, o pedido do suplicante fére direitos adquiridos”.



Outro tipo de projeto importante apresentado por particulares versava sobre a construção de grandes conjuntos de “habitações populares”, abarcando uma área tão grande que podiam ser considerados verdadeiras cidades. De certa forma, eles eram uma visão antecipada em algumas décadas do que viria a se constituir posteriormente os grandes loteamentos residenciais implantados a partir da década de 1940. Destaque para a proposta de construção de um grande bairro abarcando as freguesias de Irajá e Jacarepaguá e outro abarcando estas mais a freguesia de Inhaúma. Gerson Brasil cita o exemplo da Cia. Cidade da Gávea, que na “época do Encilhamento” projetou a construção de um balneário na Praia da Restinga (Barra da Tijuca), “ao qual se chegaria por um boulevard”.

Um fato que parece indiscutível, mesmo que muitos desses projetos não tenham saído do papel – como foi o caso desses três projetos citados, é que eles apontam sobre a existência de uma outra leitura possível sobre a região ocupada pelas freguesias (depois distritos) rurais. Leitura esta que tendia a desdizer as imagens tradicionalmente associadas à região, que eram sintetizadas pelas idéias de “decadência” e “abandono”, idéias estas que reforçavam a imagem de um espaço “esquecido” pelos poderes públicos. Num caminho inverso, tais projetos e empreendimentos apontavam para um tipo de visão que também tomava a região como uma verdadeira área de fronteira aberta, isto é, uma região em expansão, na medida em que se constituía aos olhos de muitos agentes, especialmente os do ramo do capital industrial, financeiros e de serviços, como um espaço verdadeiramente propício a investimentos de capital.

O editorial da Gazeta Suburbana, publicado em 8 de setembro de 1910, procura veicular exatamente essa idéia:

“[...] Com o progressivo augmento da população do Distrito Federal, com o grande desenvolvimento do nosso comércio, os subúrbios, outrora abandonados e desprezados, tornaram-se ultimamente procurados e conhecidos.

Tudo tem augmentado nos subúrbios: a população, o commercio, a industria. Tão grande é o desenvolvimento actual da zona suburbana que, quase todos os jornaes diários, viram-se na necessidade de, no noticiário geral, acrescentar um suplemento consagrado unicamente aos subúrbios [...]”.

Leonardo Soares
Professor de História e Pesquisador do IHBAJA