Em 22 de dezembro de 1892, encontra-se
registrado nos Anais do Conselho Municipal a reclamação de alguns
moradores da freguesia de Guratiba com a falta de “conserto do aterrado do
Sacco” há mais de 40 anos. Em julho de 1896, moradores de Realengo enviavam um
memorial pedindo a reparação do “povoado”. No memorial vários fatores eram
apontados para demonstrar a crescente importância do lugar: uma população de
“12 mil almas”, uma estação de trem da Central do Brasil, três escolas
municipais, uma fábrica de cartucho em construção. Além de ficar há poucos
minutos da Fábrica de Tecidos de Bangu e teria ainda em “breve um arsenal de
Guerra e bem assim é de esperar grande aumento de edificações e accrescimo na
população pelo grande numero que há de proprietários de terrenos foreiros e de
particulares que se achão já retalhados e a maior parte vendidos.”
Já na administração de Pereira Passos,
em 1903, o Intendente Francisco da Silva apresentava uma Indicação numa das
sessões do Conselho Municipal, instando o Prefeito a promover “melhoramentos”
em alguns povoados “então esquecidos” da zona suburbana, como ele já vinha
fazendo em Jacarepaguá e Cascadura:
“Considerando que o digno Dr. Prefeito está disposto e
tem resolvido dotar alguns pontos da zona suburbana com o importante e
necessário melhoramento da iluminação.
Considerando que os povoados de Realengo, Campo Grande
e Santa Cruz, pelo grande desenvolvimento que têm e pelo que contribuem para a
receita municipal não podem e não devem ser esquecidos:
Indico que o Conselho Municipal solicite do Sr. Dr.
Prefeito [Pereira Passos] a illuminação dos referidos povoados pelo systema que
S. Ex. julgar mais conveniente e economico”.
O simples fato de uma autoridade
política dizer estar interessada em promover um melhoramento num lugar da
região suburbana e rural é garantia da implementação deste melhoramento?
Obviamente que não. Como se pode testemunhar até hoje entre muitos políticos do
cenário local e nacional, todos fazem questão em expressar boa-vontade em
prometer a realização de inúmeras melhorias nas localidades por eles visitadas,
especialmente em épocas de eleição. Mas em muitos casos, a consecução dessas
melhorias não é levada a efeito, não passando do mero nível do discurso. Porém,
no período em que estamos tratando, há alguns aspectos que precisam ser
considerados. Conforme a atitude de Francisco Alves deixa sugerir, assim como a
demanda acima de moradores das freguesias rurais e suburbanas, a região ao
mesmo tempo que conhecia um notável crescimento demográfico, via com isso a sua
importância política aumentar no cenário do Distrito Federal. Não tardaria para
que líderes políticos da região explorasse a situação de carência da região em
termos de serviços e infra-estrutura públicas para construir sua plataforma de
atuação no legislativo da cidade. Muitos intendentes, por exemplo, para se
verem reconhecidos como porta-vozes da população rural e suburbana, pautariam
suas ações na “busca e conquista” de “melhoramentos” que eram até negados
àqueles “povoados esquecidos” pelos poderes públicos. Isso de certa maneira
geraria certos embaraços aos primeiros Prefeitos da cidade, os quais
nitidamente concentravam os investimentos da municipalidade nas “zonas nobres”
da cidade.
Um interessante exemplo foi a
aprovação da emenda do Intendente Alvaro Albano ao Projeto n.28. Em sua
primeira versão, ele estabelecia que “todos os terrenos em quaesquer das
freguesias urbanas ou suburbanas, que não tiverem água, luz e esgotos, serão
isentos do pagamento de emolumentos ou braçagem de qualquer natureza”. Por esta
definição, apenas as freguesias não-urbanas de Inhaúma e Irajá seriam
contempladas. Ao que Alvaro Albano apresentou e teve aprovada uma emenda
estendendo tal “benefício” à Campo Grande, Guaratiba e Santa Cruz.
Para um município com tantos gastos
com funcionalismo público e com as próprias obras que avolumavam ano a ano
(ruas, estradas, calçamento, iluminação, esgoto etc.) a arrecadação de impostos
passava a ser crucial, constituindo ela mesma num dos pilares que sustentavam a
máquina governamental. Uma emenda como a de Álvaro Albano certamente teria sido
vista pelos representantes da administração Pereira Passos como extremamente
prejudicial às finanças da municipalidade, pois ele ameaçava retirar da alça de
sua mira tributária um enorme contingente da população da cidade. Para evitar
tal risco ele passava a ser obrigada a promover melhoramentos. Para uma
administração como a de Pereira Passos (e igual a inúmeras outras como a de
Carlos Sampaio, Prado Júnior e outros), tão comprometidas com as reformas
urbanas do centro e com as localidades que estavam sendo ocupadas pela elite
carioca, como Copacabana e Botafogo, não era uma decisão simples. Mas a pressão
das contas e dívidas sempre crescentes, diariamente lembradas pelos
funcionários ligados ao setor de finanças da Prefeitura, devem ter levado o
Prefeito a concluir que não havia outra alternativa.
Há que se destacar também que havia
outro motivo para os poderes públicos investirem na região. Verena Andreatta
sublinha que no modelo de cidade que se afirma no Ocidente a partir do século
XIX, a constituição de serviços públicos urbanos será o instrumento principal
de realização da mais-valia urbana, pois
“A possibilidade de incrementar esse valor nas
proximidades da cidade e os altos benefícios que supõe a passagem do solo de
valor rural a urbano têm sido fator determinante da contínua explosão da cidade
sobre seu território limítrofe. Extensão cujo tamanho depende enormemente do
poder de cada nova infra-estrutura para reduzir distâncias, aproximar o espaço
adjacente ao centro em termos de tempo, mas também em termos de possibilidade
de extensão dos novos serviços urbanos, inventados desde o início desse século
a cada vinte ou trinta anos, de forma recorrente”.
Talvez essa seja uma razão suficiente
para descaracterizar a atuação dos poderes públicos e de líderes políticos na
região como práticas de beneficência. Os investimentos na ampliação de serviços
públicos na região estava longe de responder aos princípios de uma hipotética
dívida histórica e social com a área. Na verdade ela parecia
se reportar a um plano geral da municipalidade na sua busca permanente
em conseguir receitas, via impostos e tributos, por exemplo – uma forma
possível de se extrair a mais-valia urbana apontada por Andreatta – para
cumprir com o seu plano orçamentário. Tendo esse princípio como norte, o então
Prefeito entrava em entendimentos com o Ministério da Viação em 1895 “a fim de
abastecer de água potável” o “distrito de Guaratiba e a ‘povoação’ de Sepetiba,
no curato de Santa Cruz”.
Mas a região parecia se tornar
atraente não apenas para os poderes públicos. Vários investidores particulares
também se lançariam com inúmeros projetos – muitos deles frustrados - de
investimento em serviços públicos. Não é difícil imaginar a expectativa de
lucros rápidos vislumbrada por Manoel Gomes Arruda tão logo ele tenha visto
aprovado o Projeto n. 204, pelo qual lhe era concedido permissão “para explorar
a illuminação publica e particular, pelo systema de gaz carvão ou outro no
curato de Santa Cruz, Realengo, Campo Grande e Bangú.” Perspectiva semelhante
teria levado a empresa Pereira Jr. & Cia. e Carlos Rossi a propor à
Prefeitura, muito provavelmente em meados da primeira década do século XX, um
contrato de conservação das estradas suburbanas. Contudo, em que pese o
contexto favorável para investimentos na região, havia casos em que os
proponentes verdadeiramente erravam a mão em seus projetos. Atentemos para o
exemplo de Pedro Antonio Filho. Num projeto de sua autoria, apresentado ao
Conselho Municipal em 1891, lê-se que ele simplesmente desejava realizar “por
si ou por empreza que organizar diversos melhoramentos na zona comprehendida
entre Engenho Novo e Santa Cruz, no distrito federal”. Na prática, o autor se
responsabilizava em mudar a face de um território que abarcava mais de 60% da
superfície do Distrito Federal. Constavam entre alguns dos “melhoramentos” por
ele propostos: abrir ruas, estradas e caminhos; estabelecer núcleos coloniais;
construir “sobre regras de da bôa higiene casas econômicas izoladas umas das
outras”; “estabelecer immigrantes de preferência belgas, allemães ou nacionaes
mediante contracto prévio, auxiliando-os para sua collocação”; “proceder a
drenagens e plantações de vegetais especiais nos terrenos que forem insalubres
nas proximidades dos núcleos coloniaes que estabelecer”; “construir um edifício
em terreno sufficiente para manter uma eschola pratica e theorica de agronomia
e veterinária, onde se dê educação professional, segundo as regras modernamente
ensinadas na Europa”; “constuir escholas primarias nos núcleos coloniaes que
estabelecer para servir aos filhos dos colonos da localidade”; “um mercado em
Cascadura e outro no Engenho Novo para vendas a varejo e por atacado”;
“armazéns em Cascadura, onde os lavradores sem pérca de tempo poderão
abastecerem-se de todos mistteres concernentes a uso particular, como seja:
gêneros, roupa, instrumentos de lavoura”; organização de uma “exposição
agrícola, bem como de floricultura e avecultura etc cujo productos sejão
julgados por um jury e premiado”.
Mesmo diante de tão “patrióticos
intuitos” – como classificou o próprio autor do projeto -, não foi difícil para
Miguel Guimarães, o Intendente responsável em avaliar a sua viabilidade,
justificar a sua decisão pelo indeferimento do pedido:
“A zona onde o suplicante pretende fazer melhoramentos
por meio dos extremos favores que sollicita, é tão vasta que esta sua qualidade
será sufficiente para que não lhe fosse concedido o que se pede, pois
importaria para esta Intendência a alienação de grande parte de sua fonte de
renda – Mais, o pedido do suplicante fére direitos adquiridos”.
Outro tipo de projeto importante
apresentado por particulares versava sobre a construção de grandes conjuntos de
“habitações populares”, abarcando uma área tão grande que podiam ser
considerados verdadeiras cidades. De certa forma, eles eram uma visão
antecipada em algumas décadas do que viria a se constituir posteriormente os
grandes loteamentos residenciais implantados a partir da década de 1940.
Destaque para a proposta de construção de um grande bairro abarcando as
freguesias de Irajá e Jacarepaguá e outro abarcando estas mais a freguesia de
Inhaúma. Gerson Brasil cita o exemplo da Cia. Cidade da Gávea, que na “época do
Encilhamento” projetou a construção de um balneário na Praia da Restinga (Barra
da Tijuca), “ao qual se chegaria por um boulevard”.
Um fato que parece indiscutível, mesmo
que muitos desses projetos não tenham saído do papel – como foi o caso desses
três projetos citados, é que eles apontam sobre a existência de uma outra
leitura possível sobre a região ocupada pelas freguesias (depois distritos)
rurais. Leitura esta que tendia a desdizer as imagens tradicionalmente
associadas à região, que eram sintetizadas pelas idéias de “decadência” e
“abandono”, idéias estas que reforçavam a imagem de um espaço “esquecido” pelos
poderes públicos. Num caminho inverso, tais projetos e empreendimentos apontavam
para um tipo de visão que também tomava a região como uma verdadeira área de fronteira aberta, isto é, uma região em
expansão, na medida em que se constituía aos olhos de muitos agentes,
especialmente os do ramo do capital industrial, financeiros e de serviços, como
um espaço verdadeiramente propício a investimentos de capital.
O editorial da Gazeta Suburbana, publicado em 8 de setembro de 1910, procura
veicular exatamente essa idéia:
“[...] Com o progressivo augmento da população do
Distrito Federal, com o grande desenvolvimento do nosso comércio, os subúrbios,
outrora abandonados e desprezados, tornaram-se ultimamente procurados e
conhecidos.
Tudo tem augmentado nos subúrbios: a população, o
commercio, a industria. Tão grande é o desenvolvimento actual da zona suburbana
que, quase todos os jornaes diários, viram-se na necessidade de, no noticiário
geral, acrescentar um suplemento consagrado unicamente aos subúrbios [...]”.
Leonardo Soares
Professor de História e Pesquisador do IHBAJA