As freguesias rurais do Rio Janeiro (III)
Analisando o primeiro
código de posturas da cidade do Rio de Janeiro, de 1838, podemos verificar que a zona
rural não existe. E, a bem da verdade, nem a zona urbana. O tipo de
nomenclatura era bem diferente do utilizado a partir do século XX. Ao
observamos como era feita a divisão territorial da cidade – que era na época,
uma “cidade colonial” -, somos tentados a estabelecer uma relação quase que
direta entre aquela e os esquemas de divisão e classificação forjados na Idade
Média. Se não vejamos: a definição das áreas e de seus limites, por exemplo,
era realizada em função de se saber se ela estava “dentro” ou “fóra” da cidade.
Neste sentido tais categorias faziam direta alusão a localização ou posição de
uma área em relação às muralhas da cidade medieval. Mas podemos objetar dizendo
que as muralhas nem sempre diziam respeito aos limites da cidade. Como o prova
a Idade Antiga. A cintura de muralhas encerrava nessa época não a cidade e sim
a urbs. A palavra cidade, por sua
vez, referia-se não só a esse núcleo original como também ao território rural
subordinado a essa urbs. A estreita relação entre cidade e campo na
Antiguidade é corroborada por Weber, que observa que quanto mais avança a Idade
Média mais se afirma a dicotomia entre cidade e campo: a existência de uma
praticamente excluindo a existência da outra. Fato dificilmente concebível, no
seu entender, na Antiguidade: “o direito pleno do antigo cidadão, diferente do
burguês medieval, se caracterizou em sua origem precisamente porque era
proprietário de um kleros, fundus (em Israel, chclek), isto é, de um lote de que vivia, assim como o cidadão
pleno da Antiguidade é um ‘cidadão lavrador’.” Mas, e então, o Rio de Janeiro
era nesse ínterim, Antigo ou Medieval? Um pouco dos dois.
A
cidade do Rio de Janeiro fazia parte, desde a chegada da família real
portuguesa em 1808, do Município da Corte. Este abarcava então a cidade
propriamente dita - dentro da qual se situavam as “freguesias urbanas” - e as “freguesias de fóra”. A primeira era
chamada também de “zona da cidade” e a segunda de “zona de campo”. Ou seja, o
município aqui é composto por uma área urbana e outra que diríamos rural, como
na Antiguidade; ao mesmo tempo, a noção de cidade empregada para diferenciar o
seu território do restante do Município é o mesmo da Idade Média – a área
urbana se localizando no núcleo original da cidade e os campos que ficando
“fóra”, do lado externo das “muralhas”. Só que ainda persiste uma pergunta: no
caso do Rio de Janeiro, que muralhas eram essas? Logicamente que se tratava de
uma muralha simbólica, mas não sem conseqüências concretas de extrema
relevância: tal muralha foi “construída” pelo então príncipe regente D. João
quando da vinda da família real ao Brasil quando resolveu instituir por meio do
alvará de 27 de junho daquele ano a cobrança da “Décima urbana” ou “Décima dos
Rendimentos dos Prédios Urbanos”. Por
essa determinação, as freguesias da Candelária, Sacramento, São José e Santa
Rita formavam em conjunto a “zona da cidade” sobre a qual incidia a Décima
urbana. Do outro lado, no “de fóra”, havia o restante do município, cujos
limites se eram estabelecidos em função dos limites da área de incidência da
“Décima urbana”. Assim, tínhamos o Engenho Velho, Irajá, Jacarepaguá, Campo
Grande, Inhaúma, Guaratiba, ilha do Governador, ilha de Paquetá e o curato de
Santa Cruz como as freguesias
não-urbanas. Isso se expressará na forma como o município é representado por
meio dos mapas até as primeiras décadas do século XX: neles só a zona da cidade
e, quando muito, seus arrabaldes são enfocados. As zonas suburbana e rural,
áreas “de fóra” da cidade, também ficam fora dos mapas. Anos mais tarde –
talvez em meados do século XIX – esta zona também seria chamada de “zona da légua
e das povoações”. A justaposição desses termos dava bem o tom da indefinição e
mistura entre usos rurais e urbanos nessa região. Mas não só nela, como também
“dentro” da própria cidade. Segundo Abreu, os usos e classes sociais se
amontoavam no antigo espaço colonial. Com o passar do tempo, foi havendo uma
diferenciação entre as próprias freguesias urbanas e entre as rurais. As
freguesias da Candelária e São José, por exemplo, transformaram-se
gradativamente em local de residência da camada dirigente. O região sul da
cidade (os atuais bairros de Botafogo, Catete e Glória) eram outra opção com
suas inúmeras chácaras que vinham sendo retalhadas a partir das primeiras
décadas do século. As demais classes, com pouco poder de mobilidade, como
trabalhadores livres e escravos de ganho, se apertavam cada vez mais nas outras
freguesias urbanas, especialmente as de Santa Rita e Santana. Alguns anos mais
tarde, as áreas de São Cristóvão e da Glória, antigos arrabaldes da corte,
passam a ser tão procurados pelas classes mais ricas para estabelecem
residências fixas que são transformadas em freguesias urbanas.
* * *
Junto
com a crescente estratificação social que passa a ocorrer de forma mais
acelerada nas freguesias urbanas a partir da segunda metade do século XIX, podemos
ver as primeiras discussões em torno de projetos de modernização da área
central da cidade. E é por meio de algumas dessas discussões que também podemos
encontrar as primeiras manifestações no sentido de se estabelecer normas mais
eficazes para a regulação dos usos sócio-econômicos do espaço dessa cidade.
Como bem menciona Maurício Abreu, ao projetar tais modernizações, os grupos que
as encabeçam, e que fazem parte das classes e grupos sociais dominantes da
cidade, buscam fundamentalmente reproduzir e ampliar seus interesses e privilégios. A estrutura espacial age aqui
como importante mecanismo de dominação social. Não esquecendo do papel crucial
exercido pelo próprio Estado, tradicionalmente alinhado com os interesses
dominantes, apoiando-os por meio da “adoção de políticas, controles e
mecanismos reguladores altamente discriminatórios e elitistas”. Embora seja não
menos verdadeiro, como veremos adiante, que num momento ou outro haja conflitos
de projetos no seio das classes dominantes. Não é nosso interesse neste
trabalho rediscutir os contornos e tendências gerais desse processo, queremos
tão somente acompanhar como tal processo de exclusão sócio-espacial, na forma
da definição dos espaços dos usos “urbanos” ou “limpos” e dos usos “rurais” ou
“sujos”, repercute na divisão territorial da cidade.
Isso
já pode ser visto no Código de Posturas de 1889, editado pouco antes da
proclamação da República. Há ali uma clara tentativa em excluir do espaço da
cidade usos não adequados a um “ambiente civilizado”. Pelo artigo 6º da Seção
II, por exemplo, “fica prohibida o cultivo do agrião dentro do perímetro” das
freguesias urbanas.
É
interessante notar que além das categorias conhecidas como urbano e arrabalde,
esse Código de Posturas passa a incluir o de suburbano. Que se refere às áreas
para além dos arrabaldes. Entretanto ele é apenas mencionado junto a uma outra
categoria, a de povoação. Portanto, o Município da Corte fica dividido entre a
cidade (freguesias urbanas), arrabalde (a área fronteiriça à cidade e que se
encontra em vias de incorporação, como Copacabana, Gávea e Engenho Novo) e as
povoações do Subúrbio. Nota-se portanto, que todo o restante fica sendo
pertencente à “zona dos campos” ou área rural. Esta continua sendo definida por
exclusão. Entretanto, este procedimento ganhará uma nova coloração no contexto
das grandes obras de melhoramentos e saneamento da cidade. Como defende P.Bourdieu,
o estabelecimento de fronteiras ou limites implica também a imposição de
atributos e expectativas sobre as instituições, grupos ou pessoas objetos
dessas linhas demarcatórias. Em termos de espaço, a delimitação de uma linha
divisória também corresponde, em
determinado contexto, à imposição de certas características a um lugar,
de modo que ele tenha um perfil específico. Em termos práticos ele se expressa
na regularização do tipo de uso do solo, da disciplinamento das atividades
sócio-econômicos que nele se realizam etc. Mas ele se expressa também na
construção de imagens e símbolos que correspondem ao perfil que se busca impor
a essa região. No caso da área rural, sua identidade e imagem será definida em
contraposição e exclusão à da cidade.
Mais do que isso, à área rural se reservará, quase sempre, tudo o que
representa “atraso” e “sujeira” na zona urbana. Veja-se, por exemplo, o artigo
1º da Seção XI, que proíbe o estabelecimento de “cortumes” na cidade e seus
arrabaldes. E o artigo 4º da Seção II – Título II, fica “prohibido ter nas ruas
da cidade, cavallos, muares, bois, vaccas, ou outros animaes atados às portas,
a argolas, postes, ou a outro ponto fixo.”
Na
Consolidação de Posturas de 1906, feita pelo governo Pereira Passos, a
tendência de exclusão dos usos rurais é até mais explícita, como no artigo
2956, no seu versículo 17, em que se lê: “A fórma de chalet ou outra qualquer
construção rural é banida da cidade [...] salvo quando as construções forem
recuadas mais de 10 metros
do alinhamento da rua ou quando não forem vistas nos logradouros públicos.”
Significativa é também a determinação do artigo 2.848, que trata do tratamento
de estercos. Os depósitos destinados a eles “só poderão ser construídos nas
freguesias da Gávea e do Engenho Novo (freguesias da cidade, é verdade, mas
ainda de pouca densidade urbana) e nas zonas suburbanas do Districto, contanto
que fiquem, no mínimo, nestas, 100 ms., e, naquellas, 250 dos últimos
agrupamentos de casas em linha, e sejam cercados de árvores que os dissimulem e
que retenham as emanações da esterqueira.” O artigo 2856, por sua vez, proíbe
“o plantio e cultivo de capinzaes, tanto de uso particular como de commércio, e
das hortas de commercio [...] no perímetro da cidade [...]”.
Entretanto,
a exclusão do rural, do espaço e das vistas de quem passava pela cidade, não é
algo se tenta apenas pelo ato de proibir de forma direta e explícita. Formas
indiretas também são acionadas. Os poderes públicos procuram se não exclui, ao
menos dificultar a persistência de práticas e símbolos rurais na cidade, e
nesse sentido imposição de impostos, taxas e multas age como importante
instrumento. Na própria Consolidação podemos encontrar alguns exemplos. Pela
Lei orçamentária n. 976, de 31 de dezembro de 1903, fica criado o “imposto
sobre todo o gado que transito pela zona urbana, sendo livre o transito por
fóra da dita zona”.
Uma
outra tendência verificada na Consolidação de Posturas do governo Pereira
Passos, e que difere daquele de 1889, diz respeito à própria maneira de
estabelecer a divisão territorial da cidade. E que consiste na quase completa
indistinção entre suburbano e rural. Pelo decreto n. 434 de 16 de junho de
1903, o território do Distrito Federal ficava dividido em 25 distritos: 18 eram
urbanos (“da cidade”): Candelária, Santa Rita, Sacramento, São José, Santo
Antônio, Santa Tereza, Glória, Lagoa, Gávea, Sant’Anna, Gambôa, Espírito Santo,
São Christovão, Engenho Velho, Andarahy, Tijuca, Engenho Novo e Meyer. As
restantes eram classificadas como “povoados da zona suburbana”, também chamada
– ainda – de “zona fóra da cidade”: Inhaúma, Irajá, Jacarepaguá, Campo Grande,
Guaratiba, Santa Cruz e Ilhas (do Governador e Paquetá). Havia também a
delimitação de uma “zona rural”, mas que era apenas uma pequena área do
distrito de Inhaúma. O curioso é que mesmo estando “fóra da cidade”, os
distritos de Inhaúma e Irajá são incluídos na mesma área, junto com a zona
urbana, onde é necessária concessão de licença da Prefeitura para o começo de
obras de construção, reconstrução, acréscimos e modificações de prédios. Ou
seja, os dois distritos encontram-se a poucos passos de serem incorporados
oficialmente pela zona urbana.
A
indefinição em relação a classificação das áreas do território, especialmente
as de “fóra da cidade”, é tão grande, que o próprio governo comenta no texto da
Consolidação de Posturas que “estão ainda por ser definitiva e claramente demarcadas
as zonas urbana, suburbana e rural do Distrito Federal.”
Mas
é verdade também que a indefinição entre os limites da zona urbana e
suburbana/rural não era totalmente sem sentido. Havia algumas razões para isso.
Uma delas é demográfica: se a média do crescimento populacional dos subúrbios
era em torno de 3%, de 1840 até 1870, ocorre um grande boom no último cartel do
século XX: em 1880 o crescimento salta para 38%
e de 1890 a
1900 a
média é de incríveis 50%. Em 1906,
a taxa de crescimento – em comparação com 1900 - conhece
uma queda (31,7%), mesmo assim é praticamente o dobro da taxa registrada no
mesmo ano pela zona urbana (15,6%).
No
entanto, nem tudo é integração e “progresso”. Boa parte da “zona rural” é vista
sob o signo do abandono, não só dos poderes públicos como da antiga classe de
grandes proprietários. Os relatos sobre a zona rural – então abarcada pelas
freguesias de Irajá, de Campo Grande, de Guaratiba, de Jacarepaguá, de Santa
Cruz e da Ilha do Governador - em finais do século XIX reafirmavam unanimemente
a noção de uma região “decadente” e “abandonada”. O Almanaque Laemmert de 1900 informava que a circunscrição de
Guaratiba, a outrora “mais rica e florescente” do Distrito Federal,
encontrava-se com seus cafezais destruídos, seus vastos campos de criação em
agonia, infestada por doenças. O relato do historiador Noronha Santos, escrito
no mesmo ano, é emblemático dessa visão calcada na idéia da decadência.
Escrevia ele que em Guaratiba, não obstante o desenvolvimento da pequena lavoura
e outras atividades como a extração de madeira, “sua decadência é sensível
devido às secas que têm consumido suas plantações e importantes cafezais”. Em Santa Cruz, junto a um comércio
incipiente haveria uma pequena lavoura existente em terras “outrora tão bem
aproveitadas”. Tal visão também se manifestava nas sessões do
legislativo municipal. Em 1895, o Intendente Carlos Magalhães apresenta, “como
representante da lavoura”, um projeto de emenda que sirva “de incentivo à pobre
e abandonada lavoura do Distrito Federal”. Um ano depois, Júlio Carmo realçava
um cenário bem mais desolador:
“A
lavoura do Distrito Federal outr’ora tão prospera, devendo notar-se que só o
distrito de Guaratiba chegava a exportar quase cem mil arrobas de café, está
perfeitamente decadente, pouca ou nenhuma existe e a maior parte da população
rural vive da devastação das matas e do plantio das bananeiras.
[...]
O
Conselho proporciona ao lavrador meios de conduzir os productos de sua terra? A
verdade é esta: o Conselho nega escolas, nega estradas de ferro, e exige que os
proprietários das terras paguem impostos de terras que nada produzem.”
Em
certas ocasiões, especialmente na imprensa e no legislativo carioca, pode-se
encontrar até mesmo referências a essa “zona rural” como sertão, no mesmo sentido conferido no século XIX e início do XX. Sertão tem aqui a idéia de uma distância
em relação ao poder público e aos projetos modernizadores. E além do pouco
incentivo a agricultura, um dos elementos mais destacados como possíveis
indicadores dessa “distância” e “abandono” eram as condições sanitárias e
índices de casos de doenças.