Por Leonardo Santos, pesquisador do IHBAJA
Nem sempre era a atuação de
funcionários “comunistas” o que mais preocupava os agentes do SNI em relação à
Colônia Juliano Moreira na época da ditadura empresarial-militar (1964-1985). Às vezes os principais alvos de inquéritos eram
funcionários que, em que pese não serem adeptos do “credo de Moscou”, teriam –
na visão desses agentes - um tipo de comportamento também “subversivo”, pois
corrupto.
O caso envolvendo uma possível “fuga”
de três “pacientes” é bem ilustrativo da linha de pensamento dos órgãos de
informação da ditadura empresarial-militar.
No dia oito de março de 1974, por
volta das 13 horas, Ney dos Santos, Moacir Pereira Soares e Carlos Roberto do
Carmo Ribeiro, que se achavam recolhidos nos “quartos de contenção nº 5 e 7 do
Pavilhão 10 do Núcleo Ulisses Viana”, teriam se evadido da Colônia Juliano
Moreira, logo após "renderem" por meio do uso de perigosas armas os guardas lotados
naquele momento.
O relato contido no Livro de
Ocorrências dava conta do seguinte:
“Dos Guardas de serviço ao encarceramento
do Pavilhão.
Levo ao seu conhecimento que às 13,00
horas, o Guarda Wilson foi solicitado para trazer o paciente Carlos Roberto do
Carmo Ribeiro, porque se achava no quarto forte nº 7 para ser medicado, pois o
mesmo achava-se em forte crise de agitação. Ao abrir a porta que dá acesso aos
quartos fortes, foi surpreendido pelos pacientes Ney dos Santos, Moacir Pereira
Soares e Carlos R. do Carmo Ribeiro, que armados de estoque obrigaram o Guarda
a recuar, dando passagem para o corredor de onde subindo pela parede alcançaram
o telhado, e pularam para fora do Pavilhão.”
A fuga deu-se por motivo dos
pacientes Ney e Moacir, que se achavam no mesmo quarto forte, terem arrombado a
porta e soltado o paciente Carlos R. do Carmo Ribeiro que se achava no quarto
7.”
Essa era ao menos a história contada
por Wilson Barroso e Erano Custódio de Lima, os referidos guardas do “Quadro de
funcionários do Ministério da Saúde”, lotados naquele momento, “numa escala de
serviço de 24x72”. Mas a narrativa de Wilson e Erano não convenceu o
oficial (Thorvald Dalsgaard) encarregado do inquérito instaurado para apurar a
“fuga”. De cara, Thorvald afirmaria, logo depois de ouvir os dois guardas, que
estes cuidaram apenas de “estoriar, com justificativas que lhes pareceram apropriadas,
e que para nós, foram de um primarismo impar, face ao fato, o drama de ameaça
que disseram ter sofrido por ocasião da fuga”.
Thorvald passava a elencar os “fatos”
narrados por cada um dos guardas que, a seu ver, eram os mais estranhos:
“Impressionante foi a declarada rapidez desenvolvida
pelos três fugitivos, que pela exposição feita pelos Guardas [...], ao
afirmarem, que em fila, cada um dos pacientes evadidos, trepando na parede
pelos buracos de ventilação, atingiram o telhado, após a retirada de quatro
telhas, por onde evadiram-se, levando o cadeado e a chave do quarto 7”.
Além disso, o oficial se mostrou
abismado com a declaração sobre a periculosidade das armas empunhadas pelos
fugitivos: “eram três pequeninas pedras de concreto armado, que pelo seus
tamanhos poderiam servir na prática de um jogo infantil conhecido por “NENTE”,
e dois pedaços de ferro laminados, sem pontas, enrolados, medindo cada um cerca
de trinta centímetros de comprimento por um e meio centimentro de largura”.
Outro fato estranhado pelo oficial
foi a declaração de dois dos fugitivos, que disseram possuir as chaves do
quarto de “contenção nº 7”, cuja por “porta foi por eles aberta, para dar fuga
ao seu companheiro Carlos Roberto”.
Thorvald Dalsgaard especula até mesmo
qual deveria ter sido a abordagem dos guardas:
“Incrédulo na violência que dizem ter sido empregada
no momento da fuga, sou de opinião que o último dos evadidos poderia ser
agarrado pelas pernas e, facilmente dominado pelos Guardas. Entretanto, nada
disso aconteceu, pois além da passividade do Guarda Wilson Barroso, ainda uma
outra razão nos causou espécie, foi a atitude do Guarda Erano Custodio de Lima
que, estando há poucos metros do seu companheiro, a tudo assistindo, deixou de
prestar-lhe o necessário auxílio.”
No decorrer do inquérito fica-se
sabendo que um PM de “serviço no Portão” ainda teria dado quatro tiros "para o alto" de modo a intimidar os três pacientes, mas sem nenhum efeito.
Mas o que teria ocorrido com os três
pacientes? Qual o destino deles após a fuga? Somos informados que um motorista
de nome Sebastião Inácio Rodrigues, da empresa de transporte Jan-Taxi, teria
levado Carlos Roberto às 21:50 para a residência de Erano, o mesmo guarda
“rendido” horas antes pelo mesmo. Sebastião teria apanhado Carlos em Senador
Camará, indo com ele para a Praia Vermelha, Sepetiba e Campinho, sempre com o
objetivo de parar numa “roda de macumba”. Ao chegar a residência de Erano,
Carlos teria pedido para aquele “pagar a corrida”, de 207,20 cruzeiros. Erano
prontamente o encaminhou à Colônia Juliano Moreira e pediu que o motorista cobrasse
a conta ao diretor da instituição.
Moacir teria voltado à Colônia por
volta das duas da madrugada do dia 10 de março, “voluntariamente”, por “não ter
para onde ir””.
Dias depois, em 12 de março, o
diretor da Colônia cel. Juarez Costa de Albuquerque se manifesta, e de maneira
contundente contra os guardas Wilson e Erano:
“Acredito não ter sido em vão, às suspeitas que me
causaram os Guardas Wilson Barroso e Erano Custodio de Lima, pela narrativa da
tão espetacular fuga dos pacientes em questão. Não só pela apresentação do
perigoso material empunhado, pela notória passividade dos responsáveis pela
Guarda, pela rapidez apontada, pela hora ocorrida, como também a cantilena dos
autores.”
E como se não bastasse todas essas
suspeitas, o coronel faz questão de enfatizar a sua revolta com o fato do
guarda Erano ter orientado o motorista do taxi a cobrar dele, coronel, a conta
da corrida de Carlos Roberto.
O motorista Sebastião ainda teria
declarado que no momento em que discutia a forma de pagamento com Erano, este
teria declarado:
“ESTÁ TUDO CERTO, O CORONEL JÁ TEM
CONHECIMENTO DE TUDO, DIRIJAM-SE À COLÔNIA QUE O PAGAMENTO SERÁ EFETUADO.”
Logicamente que o fato do cel. Juarez
citar essa declaração em caixa alta no seu relatório só mostra a sua indignação
com a fala de Erano.
O inquérito termina sem chegar a
qualquer conclusão. Ficamos sem saber qual a punição teria sido aplicada aos guardas,
se é que houve. Carlos Roberto foi “medicado” assim que entregue pelo taxista e
ficou deste então no quarto forte do Pavilhão 11.
Segundo o “depoimento” de Carlos
tomado pelo próprio diretor da Colônia:
“a fuga já fazia parte de um plano organizado fora e
dentro do Pavilhão. Esquivando-se, todavia, em fornecer nomes ou responsáveis,
entretanto, seu objetivo seria o de desmoralizar a Administração. Que, ainda
recolhidos no quarto de contenção, num acordo comum, após a evasão, seus
objetivos seriam de princípio o ataque da cantina explorada por um outro
paciente de nome Adão, cujo produto do furto seria repartido entre eles, ainda
no interior da Colônia, no local conhecido por ‘Esqueleto’. Por razões
desconhecidas, não se realizou o assalto desejado.”
Quais as providências do diretor sobre a inusitada
denúncia de Carlos, a respeito da cantina explorada por Adão? Não sabemos quais
foram. Se é que tenham sido tomadas algum dia.
E Ney seguia sem paradeiro. Não há
menção a ele nem nas falas dos outros dois “fugitivos”.
O caso que aparentemente seria
prosaico, envolvendo uma simples fuga, acabou revelando situações intrigantes:
pacientes que exploravam uma cantina, um paciente sem paradeiro, suposta
cumplicidade de agentes de segurança...
Mas, como de costume, como ocorre com
vários inquéritos no país até hoje, a investigação nada apura, nada resolve. E
isso se veria em várias outras situações na própria Colônia. Situações muito
mais graves, envolvendo até homicídios. Esse padrão inconclusivo dos órgãos investigativos
é mais emblemático ainda. Nossa cidadania (esta sempre inconclusa também) que o
diga.
Fonte: Relatórios do SNI sobre a Colônia Juliano Moreira. Acervo do ARQUIVO NACIONAL. Consulta completa do documento AQUI.