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quinta-feira, 19 de setembro de 2019



Por Leonardo Santos, pesquisador do IHBAJA



Nem sempre era a atuação de funcionários “comunistas” o que mais preocupava os agentes do SNI em relação à Colônia Juliano Moreira na época da ditadura empresarial-militar (1964-1985). Às vezes os principais alvos de inquéritos eram funcionários que, em que pese não serem adeptos do “credo de Moscou”, teriam – na visão desses agentes - um tipo de comportamento também “subversivo”, pois corrupto.


O caso envolvendo uma possível “fuga” de três “pacientes” é bem ilustrativo da linha de pensamento dos órgãos de informação da ditadura empresarial-militar.


No dia oito de março de 1974, por volta das 13 horas, Ney dos Santos, Moacir Pereira Soares e Carlos Roberto do Carmo Ribeiro, que se achavam recolhidos nos “quartos de contenção nº 5 e 7 do Pavilhão 10 do Núcleo Ulisses Viana”, teriam se evadido da Colônia Juliano Moreira, logo após "renderem" por meio do uso de perigosas armas os guardas lotados naquele momento.


O relato contido no Livro de Ocorrências dava conta do seguinte:


“Dos Guardas de serviço ao encarceramento do Pavilhão.

Levo ao seu conhecimento que às 13,00 horas, o Guarda Wilson foi solicitado para trazer o paciente Carlos Roberto do Carmo Ribeiro, porque se achava no quarto forte nº 7 para ser medicado, pois o mesmo achava-se em forte crise de agitação. Ao abrir a porta que dá acesso aos quartos fortes, foi surpreendido pelos pacientes Ney dos Santos, Moacir Pereira Soares e Carlos R. do Carmo Ribeiro, que armados de estoque obrigaram o Guarda a recuar, dando passagem para o corredor de onde subindo pela parede alcançaram o telhado, e pularam para fora do Pavilhão.”


A fuga deu-se por motivo dos pacientes Ney e Moacir, que se achavam no mesmo quarto forte, terem arrombado a porta e soltado o paciente Carlos R. do Carmo Ribeiro que se achava no quarto 7.”


Essa era ao menos a história contada por Wilson Barroso e Erano Custódio de Lima, os referidos guardas do “Quadro de funcionários do Ministério da Saúde”, lotados naquele momento, “numa escala de serviço de 24x72”. Mas a narrativa de Wilson e Erano não convenceu o oficial (Thorvald Dalsgaard) encarregado do inquérito instaurado para apurar a “fuga”. De cara, Thorvald afirmaria, logo depois de ouvir os dois guardas, que estes cuidaram apenas de “estoriar, com justificativas que lhes pareceram apropriadas, e que para nós, foram de um primarismo impar, face ao fato, o drama de ameaça que disseram ter sofrido por ocasião da fuga”.


Thorvald passava a elencar os “fatos” narrados por cada um dos guardas que, a seu ver, eram os mais estranhos:

“Impressionante foi a declarada rapidez desenvolvida pelos três fugitivos, que pela exposição feita pelos Guardas [...], ao afirmarem, que em fila, cada um dos pacientes evadidos, trepando na parede pelos buracos de ventilação, atingiram o telhado, após a retirada de quatro telhas, por onde evadiram-se, levando o cadeado e a chave do quarto 7”.


Além disso, o oficial se mostrou abismado com a declaração sobre a periculosidade das armas empunhadas pelos fugitivos: “eram três pequeninas pedras de concreto armado, que pelo seus tamanhos poderiam servir na prática de um jogo infantil conhecido por “NENTE”, e dois pedaços de ferro laminados, sem pontas, enrolados, medindo cada um cerca de trinta centímetros de comprimento por um e meio centimentro de largura”.


Outro fato estranhado pelo oficial foi a declaração de dois dos fugitivos, que disseram possuir as chaves do quarto de “contenção nº 7”, cuja por “porta foi por eles aberta, para dar fuga ao seu companheiro Carlos Roberto”.


Thorvald Dalsgaard especula até mesmo qual deveria ter sido a abordagem dos guardas:

“Incrédulo na violência que dizem ter sido empregada no momento da fuga, sou de opinião que o último dos evadidos poderia ser agarrado pelas pernas e, facilmente dominado pelos Guardas. Entretanto, nada disso aconteceu, pois além da passividade do Guarda Wilson Barroso, ainda uma outra razão nos causou espécie, foi a atitude do Guarda Erano Custodio de Lima que, estando há poucos metros do seu companheiro, a tudo assistindo, deixou de prestar-lhe o necessário auxílio.”


No decorrer do inquérito fica-se sabendo que um PM de “serviço no Portão” ainda teria dado quatro tiros "para o alto" de modo a intimidar os três pacientes, mas sem nenhum efeito. 


Mas o que teria ocorrido com os três pacientes? Qual o destino deles após a fuga? Somos informados que um motorista de nome Sebastião Inácio Rodrigues, da empresa de transporte Jan-Taxi, teria levado Carlos Roberto às 21:50 para a residência de Erano, o mesmo guarda “rendido” horas antes pelo mesmo. Sebastião teria apanhado Carlos em Senador Camará, indo com ele para a Praia Vermelha, Sepetiba e Campinho, sempre com o objetivo de parar numa “roda de macumba”. Ao chegar a residência de Erano, Carlos teria pedido para aquele “pagar a corrida”, de 207,20 cruzeiros. Erano prontamente o encaminhou à Colônia Juliano Moreira e pediu que o motorista cobrasse a conta ao diretor da instituição.


Moacir teria voltado à Colônia por volta das duas da madrugada do dia 10 de março, “voluntariamente”, por “não ter para onde ir””.


Dias depois, em 12 de março, o diretor da Colônia cel. Juarez Costa de Albuquerque se manifesta, e de maneira contundente contra os guardas Wilson e Erano:

“Acredito não ter sido em vão, às suspeitas que me causaram os Guardas Wilson Barroso e Erano Custodio de Lima, pela narrativa da tão espetacular fuga dos pacientes em questão. Não só pela apresentação do perigoso material empunhado, pela notória passividade dos responsáveis pela Guarda, pela rapidez apontada, pela hora ocorrida, como também a cantilena dos autores.”


E como se não bastasse todas essas suspeitas, o coronel faz questão de enfatizar a sua revolta com o fato do guarda Erano ter orientado o motorista do taxi a cobrar dele, coronel, a conta da corrida de Carlos Roberto. 


O motorista Sebastião ainda teria declarado que no momento em que discutia a forma de pagamento com Erano, este teria declarado:

“ESTÁ TUDO CERTO, O CORONEL JÁ TEM CONHECIMENTO DE TUDO, DIRIJAM-SE À COLÔNIA QUE O PAGAMENTO SERÁ EFETUADO.”


Logicamente que o fato do cel. Juarez citar essa declaração em caixa alta no seu relatório só mostra a sua indignação com a fala de Erano.


O inquérito termina sem chegar a qualquer conclusão. Ficamos sem saber qual a punição teria sido aplicada aos guardas, se é que houve. Carlos Roberto foi “medicado” assim que entregue pelo taxista e ficou deste então no quarto forte do Pavilhão 11.


Segundo o “depoimento” de Carlos tomado pelo próprio diretor da Colônia:

“a fuga já fazia parte de um plano organizado fora e dentro do Pavilhão. Esquivando-se, todavia, em fornecer nomes ou responsáveis, entretanto, seu objetivo seria o de desmoralizar a Administração. Que, ainda recolhidos no quarto de contenção, num acordo comum, após a evasão, seus objetivos seriam de princípio o ataque da cantina explorada por um outro paciente de nome Adão, cujo produto do furto seria repartido entre eles, ainda no interior da Colônia, no local conhecido por ‘Esqueleto’. Por razões desconhecidas, não se realizou o assalto desejado.”


Quais as providências do diretor sobre a inusitada denúncia de Carlos, a respeito da cantina explorada por Adão? Não sabemos quais foram. Se é que tenham sido tomadas algum dia.


E Ney seguia sem paradeiro. Não há menção a ele nem nas falas dos outros dois “fugitivos”.


O caso que aparentemente seria prosaico, envolvendo uma simples fuga, acabou revelando situações intrigantes: pacientes que exploravam uma cantina, um paciente sem paradeiro, suposta cumplicidade de agentes de segurança...


Mas, como de costume, como ocorre com vários inquéritos no país até hoje, a investigação nada apura, nada resolve. E isso se veria em várias outras situações na própria Colônia. Situações muito mais graves, envolvendo até homicídios. Esse padrão inconclusivo dos órgãos investigativos é mais emblemático ainda. Nossa cidadania (esta sempre inconclusa também) que o diga.

Fonte: Relatórios do SNI sobre a Colônia Juliano Moreira. Acervo do ARQUIVO NACIONAL. Consulta completa do documento AQUI.

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quarta-feira, 11 de setembro de 2019

História da Colônia Juliano Moreira



Por Janis Cassilia (pesquisadora do IHBAJA)
Nos primeiros anos do século XX, a nova república brasileira lutava pela criação de um Brasil Moderno. No Rio de Janeiro foi a época das “Reformas de Pereira Passos” que embelezou a cidade, mas criou um abismo entre os mais ricos e mais pobres. Foi a época da Revolta da Chibata, da Revolta da Vacina e tantos outros movimentos que contestavam a desigualdade e exclusão social. 
Avenida Central (atual Rio Branco) em 1920



Na área da saúde, o novo governo queria dar uma solução à questão das doenças mentais, considerando o antigo Hospício da Praia Vermelha, inadequado e “depósito humano”. Começaram a surgir discursos pela criação de um hospital afastado do Centro em que os pacientes recebessem as terapias médicas necessárias. Jacarepaguá foi o lugar escolhido.


Em 1924, foi inaugurada nas terras do Antigo Engenho Novo, o novo hospital para tratamento de pacientes psiquiátricos masculinos. Criado com apenas um núcleo de Pavilhões, a “Colônia Psicopatas-Homens” possuía o que a medicina via como de mais moderno nos tratamentos das psicopatias. 


Havia oficinas de Praxiterapia, isto é, oficinas de colchões, hortaliças e oficinas mecânicas, que ajudaria no tratamento dos doentes e na manutenção do hospital. E o Tratamento Hetero-Familiar, onde o paciente considerado apto era acolhido por alguma família de servidores para sua a reinserção social. Para tanto, ao longo das décadas o governo federal realizou a doação de terrenos para a criação de uma vila de moradores. 

           Ao longo dos anos, a Colônia de Jacarepaguá, sofreu diversas melhorias, ampliações de sua estrutura e formas de atendimento. Passou a possuir 4 núcleos de pavilhões, a atender pacientes mulheres, crianças, tuberculosos e os considerados perigosos. A Vila de Moradores aumentou, recebeu escola, oficinas, cinema e rádio. Foi construído o Bloco Médico Álvaro Ramos, onde eram realizadas as psicocirurgias, como a Lobotomia e tratamentos como o Choque Elétrico e a Convulsoterapia por Cardiazol. 



           Até 1954, a Colônia, que já era nomeada Colônia Juliano Moreira, era considerada modelo de Hospital-Colônia pelo Serviço Nacional de Doenças Mentais, órgão do Governo Federal responsável pela execução das políticas públicas na área da Doença Mental. A colônia era a “garota propaganda” do Governo Populista de Getúlio Vargas, recebendo visita de autoridades políticas em diversas ocasiões.




Com a Ditadura Civil-Militar, a situação da Colônia mudou. Ela passou a sofrer com a superlotação, o choque elétrico passou a ser administrado como forma de punição, o número de servidores, cuidadores, médicos e enfermeiros era insuficiente para atender a população de internos. Faltava verba, médicos, comida e roupas. Em contrapartida, a antiga vila de moradores cresceu criando um verdadeiro bairro dentro de Jacarepaguá. A Colônia era um bairro com uma vida própria ao mesmo tempo que havia se tornado o novo “depósito humano” de doentes. 
Bispo do Rosário, artista internado na Colônia.

Nesse cenário, a reforma psiquiátrica ganhou força dentro da instituição. A luta dos servidores por melhorias e pela reformulação das políticas de saúde mental renderam frutos apesar da repressão durante a ditadura. A reforma possibilitou o fim da internação compulsória e a criação do Hospital Dia. Com o tempo, as antigas instalações que ainda funcionavam foram desativadas e em 1996 o hospital foi municipalizado, passando a se chamar Instituto Municipal de Atendimento à Saúde Mental Juliano Moreira (IMASJM).



Centro Histórico da Colônia Juliano Moreira em abandono

Portão principal do IMASJM
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sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Mais um boletim do Instituto Histórico da Baixada de Jacarepaguá (IHBAJA). Clique AQUI.


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domingo, 3 de junho de 2018



Leonardo Soares dos Santos
Pesquisador do IHBAJA e professor de História


Além dos casos de corrupção e má-gestão nas repartições públicas, o regime militar procurava monitorar nelas o que seus agentes chamavam de “focos subversivos”. Nada escapava desse tipo de crivo: todo funcionário público era um “subversivo” em potencial. E a Colônia Juliano Moreira não fugia a essa regra.

Mesmo porque os militares identificaram desde a década de 60 a existência junto ao Partido Comunista Brasileiro a existência de um “setor médico” vermelho. Tal setor reuniria exatamente militantes (médicos, enfermeiros, nutricionistas, funcionários administrativos) com atuação na área da saúde, principalmente do setor público. Eles estariam espalhados pelos diversos departamentos e repartições que compunham o sistema público de Saúde.

O Documento de Informação nº 39 (22/05/73) do SNI exemplifica bem a grande preocupação dos agentes da Ditadura. Nesse documento intitulado “Comunistas do Ministério da Saúde atualmente na Divisão Nacional de Saúde Mental – DINSAM”, o autor do relatório lista em poucas páginas os nomes e a trajetória dos principais nomes de “agitadores subversivos” atuantes nesse setor. Ele vasculhava a presença de comunistas nos vários órgãos subordinados à DINSAM como o Hospital Pinel, Centro Psiquiátrico Pedro II e no Manicômio Judiciário Heitor Carrilho e a Colônia Juliano Moreira.

Nesta última o autor do relatório apontava um a um os principais comunistas. O primeiro citado era Célio Assis do Carmo, acusado pelo autor de ter ligações com Washington Loyello, este considerado um “psiquiatra comunista, inteligentíssimo, doutrinador de algumas gerações [...], comunista dos mais importantes no Setor dos Médicos do Partido na Guanabara”.

O segundo nome era o de Raphael Quintanilha Júnior, médico da Colônia, “comprometido com políticos esquerdistas do governo passado (leia-se: governo de João Goulart)”, figurava nos arquivos do SNI como “membro do Conselho Deliberativo da Diretoria anterior da Associação Medica do Estado da Guanabara”, era integrante da “chapa comunista” desta entidade.

O terceiro citado era Antonio Henrique Menezes, advogado, “encarregado de assuntos jurídicos” da Colônia. Pesava contra Antonio as piores “acusações”: teria sido diretor de um jornal sindical, onde em artigo publicado na edição de fevereiro de 1964, “manifestou claramente, as suas ideias de desrespeito às autoridades do País, inclusive às militares, concluindo assim o seu artigo ‘O BRIZOLA ESTÁ CERTO’”. Em 1967 respondeu a um Inquérito Policial Militar por ter instigado “a paralização do Serviço Público, convidando os funcionários para a realização de greves” e por ter feito “publicamente propaganda de ódio de classes, procurando indispor os funcionários civis contra os militares”.

Outro “delito” teria sido a participação em correntes e grupos políticos junto ao movimento estudantil, como quando integrou a aliança entre a União Renovadora (UR) e a Aliança Democrática Universitária (ADU) tendo em vista as eleições para o Diretório Acadêmico Ruy Barbosa na Faculdade de Direito Cândido Mendes. Lembra o agente que a UR foi a ala do PCB “dentro da Faculdade”.

Mas a atitude que mais chamou a atenção do autor do relatório fora a tentativa de Antonio de requerer uma certidão negativa de antecedentes políticos-sociais “para fins de prova ao Ministério da Saúde”. O agente do SNI via nessa atitude mais um ardil do comunista: “muito astucioso, tendo concluído que a Revolução de 64 não permitiu a realização das suas ambições políticas, de parceria com Brizolas e demais comuno-corruptos, pretende agora, anular as suas ações condenáveis, antes da Revolução, e ainda por algum tempo depois da Revolução de 1964, até quando a ‘Comunidade de Informações’ conseguiu tirar a sua ‘fotografia colorida’”.


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terça-feira, 8 de maio de 2018




"Pesquisador do IHBAJA e professor da UFF e UFRJ, Leonardo Soares, lança o livro "Um Sertão entre muitas certezas: a luta pela terra na zona rural da cidade do Rio de Janeiro (1945-1964)".
O livro é fruto de sua dissertação de mestrado, defendida na UFF. O tema deste trabalho é o movimento de luta pela terra por pequenos lavradores do Sertão Carioca durante os anos de 1945 a 1964.
Sertão Carioca era o antigo nome da atual Zona Oeste, num tempo em que ela era basicamente rural."


LINK DA MATÉRIA:https://jornalzo.com.br/noticias/sua-cidade/1517-pesquisador-leonardo-soares-lanca-livro-sobre-a-zona-oeste-rural
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terça-feira, 1 de maio de 2018

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domingo, 29 de abril de 2018


UM SERTÃO ENTRE MUITAS SERTEZAS



Livro do historiador Leonardo Santos, do   IHBAJA, também pode ser adquirido no formato e-book.

Veja no link: https://agbook.com.br/book/248814--Um_Sertao_entre_muitas_certezas




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terça-feira, 24 de abril de 2018


Livro sobre o Sertão Carioca







Pesquisador do IHBAJA Leonardo Soares lança o livro "Um Sertão entre muitas certezas: a luta pela terra na zona rural da cidade do Rio de Janeiro (1945-1964)".

O tema deste trabalho é o movimento de luta pela terra por pequenos lavradores do Sertão Carioca durante os anos de 1945 a 1964. Observaremos, entre outras coisas, como esses agentes fizeram com que suas reivindicações, denúncias e iniciativas de protesto chegassem à imprensa e ao campo político carioca daquela época.

O livro pode ser adquirido no site da AGBOOK:  https://agbook.com.br/book/248814--Um_Sertao_entre_muitas_certezas
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sábado, 14 de abril de 2018





Leonardo Soares, professor de História e Pesquisador do IHBAJA



SNI era a abreviação do Serviço Nacional de Informação, órgão criado durante o Regime Militar que se abateu sobre o Brasil durante o período 1964-1985. Ele era responsável pelo levantamento de informações sobre pessoas, grupos, empresas, entidades de classe, movimentos sociais, principalmente aquelas vistas como inimigas em potencial ou em ato do regime então vigente.
Por muito tempo o SNI foi associado quase que exclusivamente ao monitoramento de militantes da luta armada. O que não deixa de corresponder a um aspecto decisivo e preponderante desse processo. Mas o governo militar também procurou investigar outros agentes, em especial os pertencentes ao serviço público em conluio com agentes privados. E nesse caso o interesse recaia não apenas pelos aspectos políticos da militância do servidor, mas também por suposto envolvimento em corrupção. O relatório elaborado por agentes do SNI sobre a situação da Colônia Juliano Moreira em meados da década de 70 é bastante ilustrativo.
Por meio do ofício nº 419/S1, o agente do SNI Edmundo Adolpho Gurgel prestava contas da “Operação Cuca” ao diretor do órgão. A “Operação Cuca” fazia uma referência quase infantil sobre o objeto de sua atuação: o hospital psiquiátrico localizado em Jacarepaguá, a Colônia Juliano Moreira. No relatório 01/75 datado de 18 de Fevereiro de 1975 o agente apontava as principais “irregularidades” ali existentes.
Após um sucinto histórico da Colônia, na época contando com 1.300 funcionários e 5.200 internos, o relatório listava tais irregularidades. Já de início o autor atribuía o “caos na administração daquela entidade” ao fato de ter tido sete dirigentes desde 1973. Para facilitar a explicação, ele organizou o texto em tópicos. No item “Alimentação”, o agente informa que é comum “faltar comida para os internos”. Em dezembro de 1974, “os doentes deixaram de tomar café, durante mais de uma semana, por falta de açúcar.” Mas acrescentava que a Comissão de Habilitação e Licitação da Divisão de Saúde Mental – órgão ao qual a Colônia estava subordinada – cogitava de “entregar” o preparo de refeições ao Grupo Ricardo Amaral, famoso empresário das “noites cariocas”.
No quesito “Vestuário” lemos que “é frequente a troca de roupas individuais e de roupa de cama por bebida alcóolica, maconha, dinheiro e outros materiais, com os marginais que infestam a área.” Quanto aos “Medicamentos” fica-se sabendo que as duas principais “drogas” utilizadas (Luminal e Gardenal) são mal controladas e ocorre “ainda, com muita frequência, faltar remédio para o chamado ‘tratamento de manutenção’”.  Sobre as “Habitações”, o autor lembra que além das casas construídas para funcionários, um grande numero de novas foram construídas irregularmente.
Sobre as “Instalações e Prédios”, o agente informa que alguns deles “estão em completo abandono, sendo utilizados como moradia”. Os saques são uma constante, assim como as portas arrombadas: “Há casos em que os marginais e assaltantes penetram nas despensas e somente misturam os gêneros, a título de brincadeira.” Até o pessoal ocupado da segurança sofria com as péssimas condições físicas do lugar: “os mesmos permanecem, até meia-noite, sentados do lado de fora da portaria. Após este horário, abandonam o posto, indo para suas casas, que estão no interior da CJM. São quase diários assaltos e depredações dentro do nosocômio.”
No que toca aos serviços públicos como transporte  e água, o relatório aponta que uma linha de ônibus faz “uma linha regular”, que tem acesso livre ao interior da Colônia, “dia e noite”, sem qualquer fiscalização.  Sobre a água, argumenta que é muito a comum a falta dela na CJM, “ficando os doentes em péssimas condições de asseio e conforto”. O agente também alerta no item “Maconha e bebidas alcóolicas” para o grande fornecimento desses produtos no lugar: “os marginais invadem o lugar e fornecem maconha aos internos, existindo até ponto, hora e senha para a sua distribuição”. O agente acrescenta ainda o problema da “Permanência desnecessária de doente”. Segundo o resultado de uma pesquisa, dos 4.623 internos à época, 1.299 já estariam em condições de “alta imediata”.
Adolpho Gurgel finaliza o relatório argumentando que a causa primordial de todas essas mazelas se relacionava ao domínio do grupo político que dominava a Divisão de Saúde Mental e por tabela a CJM, e que tinha na figura de Oswaldo Coura o seu principal artífice, a quem estava subordinado o então diretor da CJM Fedra Petrucci.

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quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Instituto Histórico da Baixada de Jacarepaguá recebe o Prêmio Miriam Mendonça de Cultura


O ano de 2017 foi marcado por muitas conquistas para o grupo do Instituto Histórico da Baixada de Jacarepaguá. No início do ano foi lançado o primeiro Boletim Informativo do IHBAJA, uma publicação semestral com textos sobre a História da região e notícias das atividades realizadas pelos seus membros-militantes. 

Ainda no primeiro semestre o grupo promoveu, juntamente com associações quilombolas da região, duas caminhadas eco-histórica em comunidades remanescentes de Quilombos: Alto Camorim e Cafundá Astrogilda. Na segunda metade do ano o IHBAJA participou da Semana Integrada do Ciep Dr. Ulisses Guimarães. Nesse evento, os seus integrantes ofereceram oficinas, palestras e uma atividade de campo no Quilombo do Camorim. 

O segundo semestre também ficou marcado pela publicação do segundo Boletim Informativo do IHBAJA e pelo lançamento da vídeo-reportagem histórica “Quilombo do Camorim: Uma história de resistência”, produzido pelo IHBAJA em parceria com o Núcleo Piratininga de Comunicação – NPC e o Jornal Abaixo Assinado de Jacarepaguá - JAAJ.

A “coroação” do ano aconteceu no dia 9 de dezembro, quando o IHBAJA foi agraciado com o Prêmio Miriam Mendonça de Cultura. Esse evento é organizado a cada dois anos pelo Conselho Popular de Cultura de Jacarepaguá e pela FAM – Rio e já está na sua terceira edição. A premiação objetiva reconhecer pessoas, instituições ou grupos que divulgam a cultura popular na região da Baixada de Jacarepaguá. O nome da premiação é uma homenagem a artesã, ativista cultural e militante política Miriam Mendonça. O IHBAJA foi premiado pelo seu trabalho de pesquisa e divulgação do patrimônio material e imaterial da Baixada de Jacarepaguá. O grupo sente-se extremamente honrado e agradece a indicação feita pela comissão organizadora.







Texto: Val Costa
Imagens: Maria Beraldina

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terça-feira, 5 de setembro de 2017

O CASO DO IPASE: 50 minutos para ocupação e os problemas das moradias populares em Jacarepaguá.



Por Janis Cassilia
Pesquisadora do IHBAJA

20 de abril de 1963, sábado, 23:40 da noite. Mais de cem veículos estacionam em frente ao Conjunto Habitacional Juscelino Kubitscheck, mais conhecido como o IPASE de Jacarepaguá. Em questões de minutos uma multidão, descarrega seus pertences, adentram os blocos e tomam posse de 125 apartamentos. A polícia é chamada, mas ao chegar às 00:30 de domingo (21 de abril) não encontra mais nenhum veículo sendo descarregado. Somente apartamentos ocupados por famílias numerosas (na maior parte por crianças pequenas) e em cujas portas estava escrito em giz “OCUPADO”. Os invasores ameaçam resistir caso os policiais forcem a desocupação. O administrador do conjunto chamou a invasão de premeditada e organizada. Os novos moradores dão crédito apenas a si mesmos. Não falam em líderes ou um movimento político específico. Falam em movimento coletivo, de pobres injustiçados por uma autarquia de quem são contribuintes. Exigiram seus direitos a ocupar os apartamentos. Dizem que há dois anos têm seus pedidos indeferidos. Denunciam a preferência pelos pistolões políticos, os aluguéis dos apartamentos a terceiros que nada tem a ver com o funcionalismo público. A autarquia lhes negou justiça. Resolveram eles mesmos consegui-la.



Conjunto Habitacional do IPASE, Praça Seca, Rio de Janeiro. Imagens Google Earth.


Inaugurado em 1956, o Conjunto Habitacional Juscelino Kubistchek, o popular IPASE, foi um projeto habitacional financiado pelo Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado (IPASE) como parte de um projeto governamental para a solução de moradias populares dentro de padrões aceitáveis de higiene e saúde pública. Tal ideia vem desde o final do século XIX e ganhou força no século XX. Após 1964, o problema das moradias populares ganhou impulso com investimentos na área. Foram os casos dos conjuntos habitacionais de Olaria e Realengo. Os projetos, elogiados à época pelas soluções de engenharia e arquitetura, foram manchetes em revistas estrangeiras. Através dos IAPs e os CAPs (Caixas e Instituto de Aposentadorias e Pensões), o governo inaugurou a época das COHABs (Conjunto de Habitação Popular Brasileira).




Manchete do Jornal  Correio da Manhã de 21 de abril de 1963. 
Fonte: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/

A invasão do IPASE em Jacarepaguá expôs o problema deste sistema de moradias. Em tese, elas seriam destinadas aos servidores com menores salários, mas acabavam com aqueles mais favorecidos, os chamados “pistolões”, que alugavam essas residências por valores considerados altos. Na fila de espera, as famílias de baixa renda e com inúmeros dependentes viam o conjunto abandonado e habitado por homens solteiros, “bicheiros” e pessoas sem qualquer vínculo com o IPASE. Eles eram na sua maioria, funcionários de baixos níveis das repartições e órgãos, pais e mães de famílias com em média 5 ou 6 filhos. Ao entrarem nos apartamentos encontraram os prédios deteriorados, com infestações de ratos e baratas. Realizaram ligações clandestinas de energia e reivindicaram para si um direito que lhes havia sido negado.


 Manchete do Jornal Última Hora, segunda-feira, 22 de abril de 1963. Fonte: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/



O diretor do IPASE foi ao local ouvir os invasores. Numa postura de conciliação, os administradores do conjunto, junto com a diretoria do órgão decidiram mantê-los nos respectivos apartamentos ocupados. Eles passaram então da condição de “invasores” a “novos moradores”. Condição sempre contestada pelas autoridades quando havia ocorrência de irregularidades. Em 1969, a Light decidiu cortar as luzes de todos os apartamentos por falta de pagamentos do IPASE. O administrador do conjunto culpava os “novos moradores-invasores”, pois os mesmos “não pagam aluguel nem as luzes”. Os moradores culpavam o IPASE pela não cobrança. Esta foi apenas uma de uma série de conflitos existentes entre os dois grupos. Denúncias de assaltos, homicídios, atropelamentos e rachas foram algumas das que chegaram à público. De um lado os funcionários dos correios e o restante dos moradores reclamando da fraca infraestrutura, péssimo sistema de coletas de lixo e a má conservação dos edifícios, culpando a administração ineficiente e o abandono do IPASE. Do outro o administrador do condomínio reclamando da permanência dos mesmos e o IPASE não repassando verbas. Nos seis anos de diferença entre o episódio de chegada dos assegurados e suas famílias até o fim da década de 1960, a visão sobre o conjunto foi se modificando. O IPASE passou a figurar nas páginas dos jornais de arquitetura elogiada para reduto da pobreza. Ao mesmo tempo, os novos moradores mobilizaram-se pelo espaço. Atuaram em diretorias políticas, em Jornadas Femininas, na construção de um colégio, torneios de futebol, bailes e festas públicas. Sozinhos ou em conjunto com a administração do local. Os moradores do Conjunto Habitacional Juscelino Kubistchek na década de 60 atuaram de forma política em um sistema que os marginalizava. Reivindicaram não apenas sua moradia, mas a cidadania.


Vista aérea em 2D do IPASE na Praça Seca, Rio de Janeiro. Imagens Google Earth.


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