No início da década de 1960, o
Partido Comunista Brasileiro já havia adotado um rumo de total conciliação com
os setores da burguesia nacional, seja do meio urbano quanto do meio rural. Mas
ainda havia algumas forças conservadoras cuja aliança ou parceria era tida como
inviável para o PCB. Uma delas era a UDN, especialmente a sua liderança maior –
Carlos Lacerda. Era esta a figura a ser combatida, talvez o principal
adversário político do PCB no âmbito do estado da Guanabara. A ele seriam
dirigidos a partir do início da década de 60 os principais e mais intensos
ataques, mais até do que ao “império ianque”. Lacerda seria responsabilizado
por todos os infortúnios vividos pela população carioca e o Novos Rumos (novo nome do jornal do PCB)
tentava demonstrá-lo seja através de editoriais e reportagens ou de pequenas
“homenagens”, como a que foi concedida na forma de uma música de autoria de
Sarandy, leitor assíduo do jornal:
Nas
eleições
quanto
potoca,
mil
ilusões
pro
carioca
Hoje
está vendo
o
tempo perdeu,
e
está sofrendo
quem
te elegeu
A
água sumiu
o
“bicho” rendeu, o povo sentiu
e
se arrependeu
Ao
progresso
sois
um estorvo,
filho
da Esso
maldito
Corvo
Ódio
da farda
é
tua sina
o
rio da guarda
virou
piscina
ódios
internos
ódios
antigos
crias
infernos
mata-mendigos (Novos Rumos, 06-12/09/63, p.6.)
As notícias sobre
violências e crimes cometidos por grileiros contra lavradores cariocas seriam
usadas pela imprensa comunista como um instrumento de afirmação do seu
antagonismo em relação a Lacerda. Todos os problemas e desventuras sofridas
pelo lavrador do Sertão Carioca eram, no final das contas, colocados da conta
do “corvo da rua do Lavradio” (Esta era a rua onde se localiza até hoje o Tribuna
da Imprensa, na época de propriedade de Lacerda), que agiria mancomunado
com as companhias imobiliárias no crescente processo de especulação das terras
da zona rural do Estado da Guanabara.
Exemplo disso foi a destruição das hortas de cem lavradores em
Jacarépaguá por parte de policiais da vigilância sanitária. Sob o título
“Polícia de Lacerda protege a ‘saúde da light”, o Novos Rumos desvendava os verdadeiros motivos “da invasão
destruidora, com tôda a sua truculência de tipo fascista” da polícia. Alegava
Lacerda que a destruição das hortas tinha se dado em função de preocupações com
a higiene e a saúde da população, já que as hortas seriam regadas com águas de
um riacho contaminado. Na verdade, revelava o Novos Rumos, as terras
pertenceriam à Rio Light S.A., que estaria disposta a expulsar os lavradores
para poder alugar os lotes agrícolas a uma companhia imobiliária:
“É simplesmente o
aumento do lucro imobiliário que o sr. Lacerda favoreceu, ao iniciar, na
prática, a expulsão dos lavradores das terras da ‘Light’, destruindo suas
plantações sem a menor indenização e sem qualquer informação aos lavradores sôbre
seu futuro(...).
Talvez agora se torne
mais compreensível porque tão grande número de escritórios eleitorais do sr.
Lacerda localizava-se nos térreos de edifícios em construção”( Novos Rumos, 10-16/02/61, p. 6.).
Nessa mesma área seriam instalados
anos mais tarde o Hospital Cardoso Fontes e a Fábrica de Papelão (hoje
desativada e prestes a se tornar um shopping).
CHARGE DE LACERDA DO ÚLTIMA HORA. ACERVO: ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. |
Meses depois a polícia de Lacerda voltaria a “assinar ponto no sertão
guanabarino”. Tal como em Jacarépaguá, aquele mobilizaria a polícia em Campo
Grande para atender aos “negros propósitos” dos “tubarões de terra” numa nova
“empreitada sinistra”:
“Cenas difíceis de se supor que
ocorressem em longínquos rincões do interior, onde o coronelismo e o latifúndio
impõem sua vontade, acontecem a menos de hora e meia de ônibus do centro do
RJ.(...) com o conhecimento e a aprovação tácita do governador – (...) o
aparelho policial se presta a violentar primários direitos de cidadãos pacatos,
de quais não se conhece outra atitude que não o do trabalho, penoso e diuturno”
(Novos Rumos, 11-17/08/61, pp. 1 e 6.).
Segundo
noticiava o Luta Democrática às
vésperas do golpe de 64, uma “reforma agrária” estava prestes a ser “decretada”
em Vargem Pequena (Jacarepaguá), mas não pelos seus 1.220 “posseiros” e sim
“pelos velhos e conhecidos grileiros da região, antes abandonada e
desvalorizada.” Por meio dessa “reforma agrária”(!) os “posseiros” estavam
“sendo violentamente ameaçados de serem expulsos de suas terras” e ainda
“perdendo suas benfeitorias”. Para sua implementação recorria-se aos serviços
de capangas armados, “incumbidos de invadir as terras, abrindo fogo, a todo
custo, como se aquilo fosse terra de ninguém”. E segundo jornal, tudo isso
contaria com o beneplácito do poder público:
“Todas
as queixas levadas às autoridades policiais, pedindo garantias, são recusadas
ou postas na ‘geladeira’, porque o assunto é da alçadas da Justiça ... salvo se
houver bala!
Já se
verificaram casos em que os lavradores que vão pedir garantias ficam presos
para averiguações.” (Luta Democrática,
24/03/1964. p. 7).
Longe de serem vistos como um fenômeno
distante e inexplicável, só apreendido pela matemática dos censos, os
loteamentos eram considerados como sendo de autoria de “grileiros”, “ladrões de
terras” e “aventureiros”, cujas práticas acarretavam inúmeros “malefícios ao
abastecimento da cidade” e à “vida de humildes lavradores” e suas famílias. Ou
seja, a expansão dos loteamentos sobre o Sertão Carioca se deu paralelamente à
formação de uma importante arena de disputas em torno de valores e significados
referentes a noções de direito e justiça. A existência de tal arena acabou
sendo desconsiderada quando alguns estudiosos preferiram designar esse processo
como “expansão do vetor urbano pela área rural” ou como Fânia Fridman preferia
afirmar como “loteamentos promovidos em sua maior parte pelo setor
imobiliário”. Mas na época em que esse processo se deu, ele era qualificado por
alguns órgãos de imprensa como “repelentes assaltos de terras” praticados por
“malfeitores encasacados”, ou, como contra-argumentavam as loteadoras, como a
“chance sem igual de uma vida alegre” com “aplicação de capital seguro”, em
terras “devidamente registradas e legalizadas”. E além de produzir novas ruas e
casas, tal expansão concorreu para o surgimento de novas idéias, representações
e certezas: dentre elas, foi-se consolidando a de que os infortúnios vividos
pelos habitantes da região atendiam a interesses de um determinado grupo:
enquanto a diminuição da produção agrícola acontecia, levando ao declínio das
condições de vida dos lavradores e à falta de gêneros para o abastecimento da
cidade, havia homens que faziam fortunas com ela.