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sexta-feira, 28 de março de 2014

IHBAJA participa de evento Cultural de Resistência Quilombola organizada por moradores da comunidade do Alto Camorim



No último domingo, 23 de março, ocorreu uma atividade de inestimável valor histórico e cultural no bairro do Camorim, na Baixada de Jacarepaguá: foi o Evento de Resistência Cultural Quilombola da Comunidade do Alto Camorim. Realizada pelos moradores da comunidade do Alto Camorim, teve o apoio da Rede Carioca de Agricultura Urbana, Instituto PACS (Políticas Alternativas para o Cone Sul) e da administração da Igreja São Gonçalo de Amarante, construída em 1625 e que cedeu o espaço para a realização da atividade. Outras organizações e entidades do movimento social de Jacarepaguá, que também colaboraram na organização do evento, estiveram presentes: a Associação Cultural do Camorim (ACUCA), o Jornal Abaixo Assinado de Jacarepaguá (JAAJ) e o Instituto Histórico da Baixada de Jacarepaguá (IHBAJA). Acadêmicos, moradores da região, visitantes da Baixada Fluminense, moradores de favelas de Jacarepaguá e da zona sul da cidade e militantes da Organização Popular-RJ também marcaram presença.



Um flagrante da abertura do evento: na foto, moradores do Alto Camorim, representantes da ACUCA,
da Rede Carioca de Agricultura Urbana, da Agrovargem e do Instituto PACS.
No evento, o destaque foi a presença de representantes de outras experiências de resistência na região de Jacarepaguá: uma comissão de moradores da Vila Autódromo, que relataram suas experiências recentes de luta contra as tentativas de remoção por parte da Prefeitura; e outra comissão da Associação de Agricultores de Vargem Grande (Agrovargem), que relataram suas experiências com os movimentos de agroecologia da cidade através da Rede Carioca de Agricultura Urbana e com a administração do Parque Estadual da Pedra Branca, devido às recentes controversas durante a elaboração do plano de manejo do parque.
 
O militante e pesquisador Renato Dória esteve presente no evento representando o Instituto Histórico da Baixada de Jacarepaguá e ofereceu a atividade "Nas Trilhas da Resistência", um bate-papo sobre a história de Jacarepaguá a partir das experiências de resistência protagonizadas por trabalhadores que viveram na região. É esta uma das formas que o IHBAJA busca contribuir com as lutas sociais e históricas que ocorreram e foram protagonizadas por moradores de Jacarepaguá. Na atividade, foi abordada desde a luta dos quilombolas da região até a luta dos lavradores do Sertão Carioca, época em que a região de Jacarepaguá fazia parte da zona rural carioca. A troca de experiências entre os presentes durante a atividade foi animadora, com destaque para a comissão de moradores da favela morro Santa Marta, que apresentaram aos presentes a experiencia de trilha histórica que realizam onde moram, uma das primeiras da zona sul.
 
Mais um flagrante da abertura da atividade. Desta vez, com representantes da comunidade do
Alto Camorim, do Jornal Abaixo Assinado de Jacarepáguá e do Instituto Histórico da Baixada de Jacarepaguá
 
   BREVE HISTÓRICO DA PRESENÇA QUILOMBOLA NO CAMORIM
 
Uma dos formas de se contar a história do bairro do Camorim é a partir da fundação, em 1622, do Engenho d'Água de São Gonçalo ou Engenho do Camorim, por Gonçalo Correia de Sá. Gonçalo foi um sesmeiro (senhor de terras) da região de Jacarepaguá durante o século XVII, onde mandou construir uma Igreja em 1625 nas terras do Engenho do Camorim. Filho de um dos primeiros Governadores Gerais da cidade do Rio de Janeiro, o general Salvador Correia de Sá, Gonçalo vem de uma família de militares que participou de inúmeras guerras empreendidas pelos portugueses no processo de conquista e ocupação do território americano contra as nações indígenas originárias e outras nações européias, como os franceses e holandeses. Entre os séculos XV e XVII, portugueses, espanhóis, franceses, holandeses e ingleses participaram da chamada Expansão Marítima, episódio que marcou profundamente a história dos povos dos continentes Africano e Americano, em decorrência das relações de dominação e escravização da gente destes territórios estabelecidas pelos europeus durante o processo de colonização.


Desta forma, não podemos deixar de lembrar que sesmeiros portugueses, como Gonçalo Correia de Sá e seu pai Salvador Correia de Sá, conquistadores e povoadores da cidade do Rio de Janeiro, foram responsáveis pela morte e escravização de milhares de indígenas e de africanos de diversas etnias. E neste contexto que é construído o Engenho do Camorim, movido a energia hidráulica e com o emprego de mão-de-obra escravizada, uma das mais modernas tecnologias de transformação da cana em açúcar naquele período. Foi também um dos primeiros a serem construídos na região de Jacarepaguá durante o período de conquista e ocupação do Rio de Janeiro pelos portugueses.
 
Representante do IHBAJA oferecendo a atividade "Nas Trilhas da Resistência",
onde abordou o histórico da presença quilombola na região de Jacarepaguá. A foto flagra
a área interna da Igreja São Gonçalo de Amarante, construída em 1625.

Outra forma de se contar a história do bairro do Camorim remete ao início do século XVII, no ano de 1614, quando os primeiros africanos escravizados chegaram à cidade e muitos deles foram trabalhar sob o regime compulsório nas terras aforadas de Jacarepaguá. Onze anos depois da chegada deste primeiro contingente de africanos escravizados e apenas três anos após a fundação do Engenho do Camorim, surge, em 1625, um dos primeiros quilombos do Rio de Janeiro colonial: o Quilombo do Camorim. Isto demonstra que as lutas de resistência de africanos escravizados não tardou a brotar no Rio de Janeiro após a invasão portuguesa.


Até o século XIX os quilombos contribuíram significativamente para o processo de construção do território da cidade a partir da resistência à escravização. As tropas imperiais avançavam constantemente sobre os territórios ocupados pelos quilombos, buscando aprisionar novamente escravos fugidos. Disso decorria a mobilidade espacial e temporal dos quilombos e sua localização nas áreas rurais, brejos, encostas ou nos vazios urbanos. Disso decorria também o avanço do território português na direção do sertão do Rio de Janeiro. E dos quilombos mais duradouros destaca-se o de Palmares, surgido no coração do nordeste. Não sabemos quantos anos durou o Quilombo do Camorim, em Jacarepaguá, mas sabemos que esta não foi a única presença de resistência quilombola na região.

Outro flagrante da atividade oferecida pelo IHBAJA aos particpantes do evento: na foto registramos
a intervenção de um dos participantes, morador da favela morro Santa Marta, onde desenvolve atividade de trilha histórica sobre a ocupação do morro desde os primeiros ocupantes.
No período final da escravidão, quando ocorreu um movimento de desfazer as alforrias e restabelecer a escravidão para ex-escravos, durante a década de 1880 os habitantes do Quilombo de Camboinhas (ou Camorim), na freguesia rural de Jacarepaguá, por pouco não foram surpresos e presos pela polícia imperial. Além destes registros, há outros indícios da presença de população quilombola e forra em Jacarepaguá. Nas encostas entre a serra dos Três Rios e a da Covanca, está situada a serra dos Pretos Forros, local que no início do século XX já abrigava ex-escravos libertos no morro da Cachoeirinha, na vertente do Lins. E na vertente da região da Taquara do maciço da Pedra Branca existe uma trilha que chega até a Pedra e o morro do Quilombo. Mais uma vez, vemos fortes indícios da herança da resistência política e cultural dos africanos na região.


O QUILOMBO ONTEM E HOJE NA BAIXADA DE JACAREPAGUÁ

Quilombo foi uma denominação dos colonizadores portugueses para designar os territórios de resistência que os escravos fugidos chamavam de mocambos ou cerca. Mesmo não durando por muito tempo,  é inquestionável a resistência dos ex-escravos africanos, os quilombolas, durante a colonização portuguesa. Para alguns pesquisadores, entre fins do século XIX e início do século XX alguns quilombos se transformaram em favela: outro espaço criminalizado, desta vez pelo Estado Republicano. E ao longo do século XX, muitas favelas se desenvolveram em Jacarepaguá, dentre elas, a comunidade do Alto Camorim. E na atualidade observamos o resgate desta herança de resistência dos povos afrodescendentes em Jacarepaguá.


Moradores do Alto Camorim e representantes da ACUCA concedem
depoimento sobre as lutas de resistência cultural da comunidade. Ao fundo a fachada da
Igreja São Gonçalo de Amarante, construída em 1625.
Desde 2004, há dez anos, moradores do Alto Camorim entraram com processo junto ao INCRA pleiteando o seu reconhecimento enquanto comunidade remanescente de quilombo. Além disso, foi pleiteado junto à Prefeitura um espaço para desenvolvimento de atividades para exercício da memória e da identidade cultural quilombola dos moradores da região. Uma das instituições a frente deste processo é a Associação Cultural do Camorim (ACUCA), instituição local que participou da organização do evento do último 23 de março.
 

Os moradores do Alto Camorim, que se reconhecem herdeiros da tradição quilombola em Jacarepaguá, possuem uma preocupação que é digna de registro: o avanço do mercado imobiliário na região. O bairro do Camorim é uma das regiões que mais cresce hoje em dia na cidade do Rio de Janeiro. Parte devido a quantidade de terras ainda sem edificações, o que evidencia na região a prática da valorização e da especulação fundiária; e parte devido ao fato de que a região vem recebendo melhorias na infraestrutura devido aos Jogos Olímpicos de 2016, o que resulta na procura por moradias, seja por operários em busca de trabalho; seja por uma classe média em busca de morar num "bairro verde", chamariz bastante utilizado pelas imobiliárias da região, como a RJZ Cyrella no empreendimento chamado Floris, que brota como erva daninha de dentro das florestas do Camorim.

Outro momento do evento cultural de resistência quilombola no Alto Camorim: atividade de
caminhada até o Núcleo Camorim do Parque Estadual da Pedra Branca. Durante o período colonial os escravos e
quilombolas foram responsáveis pela abertura de muitos caminhos pelas matas do Rio de Janeiro.
 

Assim, enquanto o pleito colocado pela ACUCA e demais moradores do Alto Camorim junto à Prefeitura, para ter no local um espaço para desenvolvimento de atividades de resgate da cultura e memória quilombola vem se arrastando há anos, por outro lado, a Prefeitura parece ter mais disposição em estender as mãos para as empresas do ramo imobiliário. Pois os moradores do Alto Camorim observam, cada vez mais, o avanço dos projetos imobiliários sobre áreas densas de floresta, que com o aval da Prefeitura através do PEU das Vargens, propõe redefinições e aumento do gabarito para as construções de imóveis na região.

E é aí que reside a importância da atividade realizada no dia 23/03 na comunidade do Alto Camorim: a denúncia desta prática perversa do poder público em relação aos que reivindicam a herança local da cultura afrodescendente e quilombola em Jacarepaguá e com isso, marcando uma posição política nitidamente de resistência. Fica evidente, assim como no caso de Vila Autódromo, que o peso político que grupos empresarias possuem sobre a direção das políticas públicas é bem maior do que o peso político dos trabalhadores e moradores de favelas.

Após a caminhada e chegar até o Núcleo do Camorim do Parque Estadual da Pedra Branca
os participantes do evento puderam conhecer a apreciar a queda d'água Véu da Noiva.
E o IHBAJA reconhece a importância do evento e da herança histórica da região do Camorim, que não está apenas presente no Patrimônio Material da região, como a Igrejinha do século XVII. Entendemos que o Patrimônio Histórico e Cultural de um povo está também na cultura imaterial, nas tradições, nos costumes e práticas culturais e sociais dos trabalhadores e no cotidiano dos moradores mais simples. E em Jacarepaguá, a herança dos povos afrodescendentes está presente naqueles que reconhecem e reivindicam a tradição e a identidade culturais quilombola na região.


Texto: Renato Dória - Instituto Histórico da Baixada de Jacarepaguá

Fotos: Aparecida Mercês