Nos
primeiros anos da década de 1970, a nossa Jacarepaguá já não era o bairro
bucólico de outrora. Havia até trechos, uma área aqui e acolá onde as
atividades rurais persistiam (Jardim Clarice, Curicica, as Vargens, Colônia
etc.). Isso tudo, somado a um ambiente ainda bastante tranqüilo em comparação a
outras localidades da cidade, emprestavam ao lugar um certo ar bucólico, que
atraía muita gente em busca de ambientes mais discretos e sossegados, mais
seguros para o desenvolvimento de algumas atividades, para a elaboração de
certos planos. Foi possivelmente isso que atraiu tanto os jovens Almir
Custódio de Lima, Ranúsia Alves Rodrigues, Vitorino Alves Moitinho e Ramires Maranhão do Vale a se aventurarem em
Jacarepaguá. Mas para seu infortúnio, muita gente tinha conhecimento
desses atrativos, inclusive agentes que atuavam na brutal repressão
desencadeada pela ditadura militar a partir da edição do Ato Institucional Nº5
em 1968. E assim caminharam para um doloroso e bárbaro fim.
Chovia
muito na noite do dia 27 de outubro de 1973, “um sábado”, quando bem em frente
à Praça Sentinela agentes do DOPS e da Polícia Civil “acharam” um fusca
vermelho ainda em chamas. Dentro dele os corpos totalmente carbonizados de 3
homens “sem identidade” e o corpo tombado de uma mulher de “calça cor vinho com
bolinhas brancas”, que “aparentava 25 anos”. A única pessoa naquela cena que
não teve o corpo queimado, morrendo com três tiros no rosto e um no peito.
Segundo reportagem da revista Veja (9/11/73), tudo não
passaria de uma briga entre “quadrilhas de traficantes de tóxicos”. E indagava
ainda: seria tudo isso “terror”? Algumas testemunhas diziam ter participado da
ação contra os “criminosos” de oito a nove carros. Perto das 22:00h,
imediatamente após o cerco ao fusca que estava “estacionado” em frente a então
escola Pedro Américo, um homem teria saído do Opala e dado início ao tiroteio
contra os “dois casais”. Um outro ainda teria se aproximado do carro e jogado
nele uma bomba. Os órgãos oficiais corroborariam a versão de uma guerra de
quadrilhas. Os jornais da época noticiavam que o DOPS/GB havia instaurado
uma ‘investigação policial’, cuja conclusão demoraria bastante, “inclusive pela
dificuldade de identificar oficialmente os terroristas cujos corpos foram
carbonizados”. Mesmo os “poucos casais de namorados” que estavam no muro da
escola para, segundo eles, se “protegerem da chuva (!)”, não conseguiram anotar
o número de uma placa sequer.
A jovem Ranúsia Alves Rodrigues, pernambucana e militante do PCBR. Uma das vítimas da chacina da Praça Sentinela.Foto tirada quando da sua prisão no Congresso Clandestino da UNE em 1968.
Décadas
depois, a farsa montada pela repressão caia por terra. Tudo havia sido
minuciosamente planejado pelo DOPS carioca. Ele sabia desde o início quem eram
os quatro. Todos membros do PCBR (Partido Comunista Revolucionário Brasileiro);
todos – exceto Vitorino, que era capixaba – eram originários de Pernambuco. O
quarteto vinha sendo monitorado desde o dia 08 daquele mês. Ranúsia foi preso
na manhã do dia 27. Prestou depoimento e tudo. Por certo, as confissões que
prestou não foram dadas em clima amistoso e acolhedor. E mais do que isso: os
agentes sabiam de quem se tratava e certamente foi usada como isca para a
captura dos seus três companheiros de luta. O documento do I Exército,
informação n. 2805, de 29 de outubro de 1973, narra em detalhes como foi feito
o cerco. Ele fala de farta documentação encontrada com Ranúsia e da morte dos 4
militantes, dando-lhes os nomes completos. O que não impediu que fossem enterrados
como indigentes no cemitério de Ricardo de Albuquerque.
E
terminava justificando o recurso á censura e confessando que a cena havia sido
toda ela montada após o crime, para produzir a maior confusão possível: “já que
há mais onze subversivos cujos passos permanecem vigiados na esperança de
registrar o encontro PCBR-ALN, esta Agência achou por bem não permitir a
divulgação de nota alguma para o público externo sobre o fato". Pois como
Ranúsia teria tentado sair do carro para fugir, se desde a manhã daquela dia
ela estava em poder do DOPS? E, numa hipótese absurda, por que ao tentar fugir
ela teria corrido em direção ao fusca alvo de intenso tiroteio e até bomba? E por
que uma equipe tão mais numerosa e melhor armada efetuou uma ação tão violenta,
sabendo-se que com os três homens não foi encontrada uma arma sequer?
E o
ex-policial do DOPS Cláudio Guerra encarregou-se, há poucos anos, de dissipar
qualquer dúvida. Ele confirmou em depoimento que os quatro integrantes do PCBR
foram, sim, chacinados. Sem nenhuma resistência. À sangue frio. E acrescenta que
o oficial que matou Ranúsia, “ria enquanto atirava”. Ele “ria alto.”
Por Leonardo Soares dos Santos, professor de História da UFF e
de Direitos Humanos na UFRJ, e pesquisador do IHBAJA.
de Direitos Humanos na UFRJ, e pesquisador do IHBAJA.