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quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

O Recreio antes do Recreio: vestígios da presença indígena e o morro do Rangel

Por Renato de Souza Dória

É comum a afirmação de que antes do século XX a região onde está situado o bairro do Recreio dos Bandeirantes teria permanecido isolada por muitos anos. E a ocupação humana digna de nota teria começado apenas com as ações de empresas e investidores do ramo imobiliário. Estes são descritos como verdadeiros desbravadores de uma natureza intocada, cuja maior façanha foi a gradativa mercantilização da terra e formação de um mercado imobiliário neste recanto da terra carioca. Desta forma, nomes como J. Weslley Fynch, Banco de Crédito Móvel, Raul Goulart, Pasquale Mauro, Holofernes de Castro e Sérgio Castro acabaram sendo consolidados nas narrativas sobre a história do bairro.


Ponto em comum nas diferentes versões sobre a origem do nome do bairro Recreio dos Bandeirantes é a menção à presença de paulistas nas praias do Pontal de Sernambetiba nas primeiras décadas do século XX, seja fazendo excursões, seja alugando ou adquirindo casas de veraneio. Daí viria o nome Recreio dos Bandeirantes. Desta forma, sobre a ocupação humana na região, a situação não é diferente: ponto em comum é a menção à supostos proprietários e a uma série de transações imobiliárias.


Joseph Weslley Fynch adquiriu na década de 1920 uma gleba do desmembramento de uma antiga fazenda no Pontal de Sernambetiba, antes pertencente ao Banco de Crédito Móvel. Este, por sua vez, teria adquirido terras da mesma fazenda junto ao professor Raul Goulart. Ao que tudo indica, o imbróglio decorrente de nebulosas transações imobiliárias não ficou restrito apenas à Barra da Tijuca, estendeu-se até o Recreio dos Bandeirantes.

Gleba A, década de 1960.

Se a história recente (cerca de 100 anos) e nome do bairro do Recreio dos Bandeirantes está na produção e comercialização imobiliárias de meados do século XX na cidade do Rio de Janeiro, os nomes de localidades do bairro e proximidades fazem referência a um passado para além dos limites do século XX, da mercantilização desenfreada da terra e dos projetos de urbanização: Itapuã, Itaúna, Itapeba, Sernambetiba, Currupira, Caetés e Piábas são testemunhos da importância da presença dos povos originários na ocupação humana da região ao longo do tempo.


A expressividade do vocabulário do tronco linguístico tupi indica que mesmo tendo sofrido derrotas e perdido territórios desde o século XVI para os invasores portugueses, as populações originárias continuaram capazes de influenciar na formação da cultura da sociedade colonial da zona oeste carioca. Segundo relatos de moradores antigos, o bairro no passado teria o nome de Currupira ou Corrupira, influência forte da cultura indígena local que a colonização portuguesa não conseguiu apagar.


Já o morro do Rangel faz referência a Julião Rangel de Macedo, militar português que lutou durante o século XVI nas guerras de invasão e conquista dos territórios Tamoios situados na atual cidade do Rio de Janeiro. Junto de Jerônimo Fernandes, Julião Rangel foi um dos primeiros sesmeiros de toda a Baixada de Jacarepaguá, região onde no século XVI estava situada as famosas Aldeias de Guaraguassumirim e Takuarussutyba.


Por outro lado, a área do morro possui várias grutas e abrigos sobre as rochas, onde foram realizadas pesquisas arqueológicas desde a década de 1960. Lá foram encontrados vestígios das culturas Tamoio e dos povos construtores de sambaquis em grutas descobertas na década de 1970. Em 1975 a área do morro do Rangel foi declarada bem tombado do Estado da Guanabara, antiga denominação da cidade do Rio de Janeiro durante a ditadura civil-militar.

Gleba C, década de 1960.

O tombamento do morro do Rangel fez parte de um conjunto de ações de preservação inaugurados pelo antigo Estado da Guanabara, cuja proposta foi proteger determinados sítios naturais para a valorização das condições históricas, paisagísticas e ambientais da região, evitando a transformação completa da paisagem pela urbanização e avanço das construções imobiliárias.


A origem do nome do bairro do Recreio dos Bandeirantes está na mercantilização da terra e na produção imobiliária e consolidou-se em meados do século XX na cidade do Rio de Janeiro. Como alternativa mais barata em relação aos imóveis dos bairros da zona sul, os dois balneários da Baixada de Jacarepaguá, Barra da Tijuca e Recreio dos Bandeirantes, destacaram-se no mercado imobiliário urbano carioca por sua "beleza incomparável" e "excelência de seu plano urbanístico".


Agentes capitalistas e órgãos do estado atuaram na formação do mercado imobiliário e na elaboração e execução de projetos de urbanização, como o do urbanista José Otacílio Saboya Ribeiro de 1953, inspirado no modelo anglo-americano de Cidade Jardim. As vidas iniciais foram realizadas pela Recreio do Bandeirantes Imobiliária S.A. e no final da década de 1950 é assumido por Sérgio Castro, apoiado pelo senador e banqueiro Georgino Avellino, presidente do Banco do Distrito Federal.

Jornal Última Hora, 11/02/1955.

Os anúncios de vendas de lotes nas glebas A e B, do Plano Urbanístico e a execução das obras de urbanização a cargo da Recreio dos Bandeirantes Imobiliária S.A. eram comuns nos jornais cariocas mais populares durante a década de 1950, como neste Última Hora do ano de 1955. O projeto de abertura de loteamento foi registrado junto à Prefeitura do Distrito Federal no início do ano de 1954 e as vendas dos lotes da Gleba B, primeiros a serem comercializados, foram surpreendentes ao ponto de permitir a antecipação da conclusão das obras.


O plano urbanístico da Gleba B apresenta os lotes rodeando a Lagoinha das Taxas, a Pedra do Pontal tem destaque e dela partem as vias principais: as avenidas Gilka Machado (atual), Litorânea (atual Lúcio Costa) e a estrada Benvindo de Novaes (atual). Outras iniciativas de urbanização realizadas no Recreio já em 1955 foram resultados da pressão política da companhia imobiliária Recreio dos Bandeirantes S.A. para que o Departamento de Estradas e Rodagens do Distrito Federal asfaltasse as principais ruas das Glebas A e B, como a avenida Litorânea que ligava a Barra da Tijuca ao Recreio.

Jornal Última Hora, 28/04/1955.

Em 1955 as vendas dos lotes da Gleba A iniciaram após a venda dos lotes da Gleba B em menos de 190 dias. Neste anúncio publicado no jornal Última Hora vemos o plano de urbanização com o traçado das atuais avenidas principais: Gláucio Gil, Lúcio Costa (Litorânea), Genaro de Carvalho, Pedro Moura, Alfredo Balthazar da Silveira e Guignard. A atual rua Professor Hermes Lima é o traçado que acompanha o Canal das Taxas, que parte a oeste da lagoa de Marapendi. O apelo paisagístico dos terrenos são a Lagoa de Marapendi e a praia.


O anúncio mostra os dados de registro do loteamento junto à Prefeitura do Distrito Federal e no Registro Geral de Imóveis e a informação de que a empresa Recreio dos Bandeirantes S. A. detém o recorde mundial de vendas de terrenos. Diferentes garantias para evitar a desvalorização do investimento são oferecidas, assim como uma condução para levar os interessados até o local.


Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira, Biblioteca Nacional.


Fotos: https://rioquepassou.com.br/
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sexta-feira, 28 de março de 2014

IHBAJA participa de evento Cultural de Resistência Quilombola organizada por moradores da comunidade do Alto Camorim



No último domingo, 23 de março, ocorreu uma atividade de inestimável valor histórico e cultural no bairro do Camorim, na Baixada de Jacarepaguá: foi o Evento de Resistência Cultural Quilombola da Comunidade do Alto Camorim. Realizada pelos moradores da comunidade do Alto Camorim, teve o apoio da Rede Carioca de Agricultura Urbana, Instituto PACS (Políticas Alternativas para o Cone Sul) e da administração da Igreja São Gonçalo de Amarante, construída em 1625 e que cedeu o espaço para a realização da atividade. Outras organizações e entidades do movimento social de Jacarepaguá, que também colaboraram na organização do evento, estiveram presentes: a Associação Cultural do Camorim (ACUCA), o Jornal Abaixo Assinado de Jacarepaguá (JAAJ) e o Instituto Histórico da Baixada de Jacarepaguá (IHBAJA). Acadêmicos, moradores da região, visitantes da Baixada Fluminense, moradores de favelas de Jacarepaguá e da zona sul da cidade e militantes da Organização Popular-RJ também marcaram presença.



Um flagrante da abertura do evento: na foto, moradores do Alto Camorim, representantes da ACUCA,
da Rede Carioca de Agricultura Urbana, da Agrovargem e do Instituto PACS.
No evento, o destaque foi a presença de representantes de outras experiências de resistência na região de Jacarepaguá: uma comissão de moradores da Vila Autódromo, que relataram suas experiências recentes de luta contra as tentativas de remoção por parte da Prefeitura; e outra comissão da Associação de Agricultores de Vargem Grande (Agrovargem), que relataram suas experiências com os movimentos de agroecologia da cidade através da Rede Carioca de Agricultura Urbana e com a administração do Parque Estadual da Pedra Branca, devido às recentes controversas durante a elaboração do plano de manejo do parque.
 
O militante e pesquisador Renato Dória esteve presente no evento representando o Instituto Histórico da Baixada de Jacarepaguá e ofereceu a atividade "Nas Trilhas da Resistência", um bate-papo sobre a história de Jacarepaguá a partir das experiências de resistência protagonizadas por trabalhadores que viveram na região. É esta uma das formas que o IHBAJA busca contribuir com as lutas sociais e históricas que ocorreram e foram protagonizadas por moradores de Jacarepaguá. Na atividade, foi abordada desde a luta dos quilombolas da região até a luta dos lavradores do Sertão Carioca, época em que a região de Jacarepaguá fazia parte da zona rural carioca. A troca de experiências entre os presentes durante a atividade foi animadora, com destaque para a comissão de moradores da favela morro Santa Marta, que apresentaram aos presentes a experiencia de trilha histórica que realizam onde moram, uma das primeiras da zona sul.
 
Mais um flagrante da abertura da atividade. Desta vez, com representantes da comunidade do
Alto Camorim, do Jornal Abaixo Assinado de Jacarepáguá e do Instituto Histórico da Baixada de Jacarepaguá
 
   BREVE HISTÓRICO DA PRESENÇA QUILOMBOLA NO CAMORIM
 
Uma dos formas de se contar a história do bairro do Camorim é a partir da fundação, em 1622, do Engenho d'Água de São Gonçalo ou Engenho do Camorim, por Gonçalo Correia de Sá. Gonçalo foi um sesmeiro (senhor de terras) da região de Jacarepaguá durante o século XVII, onde mandou construir uma Igreja em 1625 nas terras do Engenho do Camorim. Filho de um dos primeiros Governadores Gerais da cidade do Rio de Janeiro, o general Salvador Correia de Sá, Gonçalo vem de uma família de militares que participou de inúmeras guerras empreendidas pelos portugueses no processo de conquista e ocupação do território americano contra as nações indígenas originárias e outras nações européias, como os franceses e holandeses. Entre os séculos XV e XVII, portugueses, espanhóis, franceses, holandeses e ingleses participaram da chamada Expansão Marítima, episódio que marcou profundamente a história dos povos dos continentes Africano e Americano, em decorrência das relações de dominação e escravização da gente destes territórios estabelecidas pelos europeus durante o processo de colonização.


Desta forma, não podemos deixar de lembrar que sesmeiros portugueses, como Gonçalo Correia de Sá e seu pai Salvador Correia de Sá, conquistadores e povoadores da cidade do Rio de Janeiro, foram responsáveis pela morte e escravização de milhares de indígenas e de africanos de diversas etnias. E neste contexto que é construído o Engenho do Camorim, movido a energia hidráulica e com o emprego de mão-de-obra escravizada, uma das mais modernas tecnologias de transformação da cana em açúcar naquele período. Foi também um dos primeiros a serem construídos na região de Jacarepaguá durante o período de conquista e ocupação do Rio de Janeiro pelos portugueses.
 
Representante do IHBAJA oferecendo a atividade "Nas Trilhas da Resistência",
onde abordou o histórico da presença quilombola na região de Jacarepaguá. A foto flagra
a área interna da Igreja São Gonçalo de Amarante, construída em 1625.

Outra forma de se contar a história do bairro do Camorim remete ao início do século XVII, no ano de 1614, quando os primeiros africanos escravizados chegaram à cidade e muitos deles foram trabalhar sob o regime compulsório nas terras aforadas de Jacarepaguá. Onze anos depois da chegada deste primeiro contingente de africanos escravizados e apenas três anos após a fundação do Engenho do Camorim, surge, em 1625, um dos primeiros quilombos do Rio de Janeiro colonial: o Quilombo do Camorim. Isto demonstra que as lutas de resistência de africanos escravizados não tardou a brotar no Rio de Janeiro após a invasão portuguesa.


Até o século XIX os quilombos contribuíram significativamente para o processo de construção do território da cidade a partir da resistência à escravização. As tropas imperiais avançavam constantemente sobre os territórios ocupados pelos quilombos, buscando aprisionar novamente escravos fugidos. Disso decorria a mobilidade espacial e temporal dos quilombos e sua localização nas áreas rurais, brejos, encostas ou nos vazios urbanos. Disso decorria também o avanço do território português na direção do sertão do Rio de Janeiro. E dos quilombos mais duradouros destaca-se o de Palmares, surgido no coração do nordeste. Não sabemos quantos anos durou o Quilombo do Camorim, em Jacarepaguá, mas sabemos que esta não foi a única presença de resistência quilombola na região.

Outro flagrante da atividade oferecida pelo IHBAJA aos particpantes do evento: na foto registramos
a intervenção de um dos participantes, morador da favela morro Santa Marta, onde desenvolve atividade de trilha histórica sobre a ocupação do morro desde os primeiros ocupantes.
No período final da escravidão, quando ocorreu um movimento de desfazer as alforrias e restabelecer a escravidão para ex-escravos, durante a década de 1880 os habitantes do Quilombo de Camboinhas (ou Camorim), na freguesia rural de Jacarepaguá, por pouco não foram surpresos e presos pela polícia imperial. Além destes registros, há outros indícios da presença de população quilombola e forra em Jacarepaguá. Nas encostas entre a serra dos Três Rios e a da Covanca, está situada a serra dos Pretos Forros, local que no início do século XX já abrigava ex-escravos libertos no morro da Cachoeirinha, na vertente do Lins. E na vertente da região da Taquara do maciço da Pedra Branca existe uma trilha que chega até a Pedra e o morro do Quilombo. Mais uma vez, vemos fortes indícios da herança da resistência política e cultural dos africanos na região.


O QUILOMBO ONTEM E HOJE NA BAIXADA DE JACAREPAGUÁ

Quilombo foi uma denominação dos colonizadores portugueses para designar os territórios de resistência que os escravos fugidos chamavam de mocambos ou cerca. Mesmo não durando por muito tempo,  é inquestionável a resistência dos ex-escravos africanos, os quilombolas, durante a colonização portuguesa. Para alguns pesquisadores, entre fins do século XIX e início do século XX alguns quilombos se transformaram em favela: outro espaço criminalizado, desta vez pelo Estado Republicano. E ao longo do século XX, muitas favelas se desenvolveram em Jacarepaguá, dentre elas, a comunidade do Alto Camorim. E na atualidade observamos o resgate desta herança de resistência dos povos afrodescendentes em Jacarepaguá.


Moradores do Alto Camorim e representantes da ACUCA concedem
depoimento sobre as lutas de resistência cultural da comunidade. Ao fundo a fachada da
Igreja São Gonçalo de Amarante, construída em 1625.
Desde 2004, há dez anos, moradores do Alto Camorim entraram com processo junto ao INCRA pleiteando o seu reconhecimento enquanto comunidade remanescente de quilombo. Além disso, foi pleiteado junto à Prefeitura um espaço para desenvolvimento de atividades para exercício da memória e da identidade cultural quilombola dos moradores da região. Uma das instituições a frente deste processo é a Associação Cultural do Camorim (ACUCA), instituição local que participou da organização do evento do último 23 de março.
 

Os moradores do Alto Camorim, que se reconhecem herdeiros da tradição quilombola em Jacarepaguá, possuem uma preocupação que é digna de registro: o avanço do mercado imobiliário na região. O bairro do Camorim é uma das regiões que mais cresce hoje em dia na cidade do Rio de Janeiro. Parte devido a quantidade de terras ainda sem edificações, o que evidencia na região a prática da valorização e da especulação fundiária; e parte devido ao fato de que a região vem recebendo melhorias na infraestrutura devido aos Jogos Olímpicos de 2016, o que resulta na procura por moradias, seja por operários em busca de trabalho; seja por uma classe média em busca de morar num "bairro verde", chamariz bastante utilizado pelas imobiliárias da região, como a RJZ Cyrella no empreendimento chamado Floris, que brota como erva daninha de dentro das florestas do Camorim.

Outro momento do evento cultural de resistência quilombola no Alto Camorim: atividade de
caminhada até o Núcleo Camorim do Parque Estadual da Pedra Branca. Durante o período colonial os escravos e
quilombolas foram responsáveis pela abertura de muitos caminhos pelas matas do Rio de Janeiro.
 

Assim, enquanto o pleito colocado pela ACUCA e demais moradores do Alto Camorim junto à Prefeitura, para ter no local um espaço para desenvolvimento de atividades de resgate da cultura e memória quilombola vem se arrastando há anos, por outro lado, a Prefeitura parece ter mais disposição em estender as mãos para as empresas do ramo imobiliário. Pois os moradores do Alto Camorim observam, cada vez mais, o avanço dos projetos imobiliários sobre áreas densas de floresta, que com o aval da Prefeitura através do PEU das Vargens, propõe redefinições e aumento do gabarito para as construções de imóveis na região.

E é aí que reside a importância da atividade realizada no dia 23/03 na comunidade do Alto Camorim: a denúncia desta prática perversa do poder público em relação aos que reivindicam a herança local da cultura afrodescendente e quilombola em Jacarepaguá e com isso, marcando uma posição política nitidamente de resistência. Fica evidente, assim como no caso de Vila Autódromo, que o peso político que grupos empresarias possuem sobre a direção das políticas públicas é bem maior do que o peso político dos trabalhadores e moradores de favelas.

Após a caminhada e chegar até o Núcleo do Camorim do Parque Estadual da Pedra Branca
os participantes do evento puderam conhecer a apreciar a queda d'água Véu da Noiva.
E o IHBAJA reconhece a importância do evento e da herança histórica da região do Camorim, que não está apenas presente no Patrimônio Material da região, como a Igrejinha do século XVII. Entendemos que o Patrimônio Histórico e Cultural de um povo está também na cultura imaterial, nas tradições, nos costumes e práticas culturais e sociais dos trabalhadores e no cotidiano dos moradores mais simples. E em Jacarepaguá, a herança dos povos afrodescendentes está presente naqueles que reconhecem e reivindicam a tradição e a identidade culturais quilombola na região.


Texto: Renato Dória - Instituto Histórico da Baixada de Jacarepaguá

Fotos: Aparecida Mercês
 
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sábado, 22 de setembro de 2012



Campo Grande, Guaratiba, Jacarepaguá, Irajá, Inhaúma, Tijuca, Engenho Novo, Santo Antônio e Santa Cruz – eram estes os nomes das freguesias que em conjunto formavam a zona rural da cidade do Rio de Janeiro, instituída pelo Ato Adicional de 12 de agosto de 1834. O historiador Ilmar Mattos em seu O Tempo Saquarema nos informa que eram chamadas de freguesias “de fora”, em contraste com as freguesias “de dentro”, pois, mais próximas dos centros de decisão da corte, a saber, as “instituições e instalações que tornavam possível a reprodução dos interesses dominantes”: o Paço, o Senado, a Câmara dos Deputados e a Câmara Municipal. Um pouco antes, no século XVIII, tinha sido a zona rural carioca grande produtora de açúcar. Os engenhos dos carmelitas e dos beneditinos eram as principais unidades produtoras. Só em Jacarepaguá, eram 11 os engenhos da “Veneranda Ordem de São Bento”. O século XIX traz uma aparente “decadência” econômica, ou como ele também prefere designar – um “estado de letargia produtiva”. Em vez de grandes unidades – fazendas e engenhos – serão as chácaras e sítios os responsáveis pelo novo tipo de produção. Esta nem de longe se aproximava da do século anterior, tanto que será a produção doméstica ou de subsistência a ocupar o papel de maior relevância econômica. A chamada produção comercial estará restrita a poucas fazendas, localizadas principalmente nas freguesias de Irajá e Jacarepaguá. Fora dessas regiões, a cultura do café, por exemplo, teria sido efêmera e tão somente de “fundo de quintal”. Por outro lado, chácaras e sítios de Jacarepaguá “plantavam para o gasto” (mercado interno), mas também se dedicavam a uma produção de larga escala, “com colheitas de centenas de milhares de arrobas”, voltada para o abastecimento de um mercado mais amplo. A cultura do café teria se disseminado nas encostas de morros propícias ao cultivo, as “soalheiras” (vertentes ensolaradas e bem drenadas), deixando de lado as “noruegas” (vertentes úmidas e sombrias) e as baixadas de Sepetiba e Jacarépaguá.


A região da Baixada de Jacarepaguá no Mappa do Município Neutro.



     Muitos historiadores entendiam que a partir da década de 1890 a região conheceria uma grande crise. Até aquele momento, a Zona Rural tinha-se mantido como uma área de “grande valor populacional e comercial”. Prova disso era Jacarepaguá, a freguesia de maior população escrava da Corte. Segundo o recenseamento de 1838, entre seus 7.302 habitantes, 4.491 eram escravos. O fim da escravidão somado ás outras transformações sócio-econômicas, promoveriam importantes mudanças na paisagem social da zona rural. E as representações sobre esse lugar não ficaram imunes a essas mudanças. Os autores dos relatos sobre a região interpretavam as transformações que estavam ocorrendo nessa época como indícios de “decadência” e “abandono”. É como se terras antes em plena produção tivessem sido tomadas pela esterilidade agrícola e por doenças como febre-amarela e malária. O Almanaque Laemmert de 1900 informava que a circunscrição de Guaratiba, a outrora “mais rica e florescente” do Distrito Federal, encontrava-se com seus cafezais destruídos, seus vastos campos de criação em agonia, infestada por doenças. A única coisa que talvez destoasse desse quadro de desalento era o desenvolvimento da pequena lavoura. Dizemos talvez, pois o fato era apresentado de maneira a comprovar a situação de franca decadência de uma área antes dominada por famílias tradicionais, com suas grandes propriedades e imensos cafezais. O relato de Noronha Santos, escrito no mesmo ano, é emblemático dessa visão calcada na idéia da decadência. O que o autor procura fazer com isso, é impor um marco divisório entre um antes, pleno e produtivo com grandes propriedades que funcionavam com mão-de-obra escrava, e um depois, quando o fim da escravidão impõe a tomada de novas estratégias por parte dos grandes proprietários em relação às novas formas de trabalho. Mas escrevia Noronha Santos que em Campo Grande havia “algumas” lavouras nas fazendas do Barata, do Monte Alegre, do Juriari e da Paciência, e pequenas plantações de cana em diversos sítios, “próximos dos povoados e lugarejos”. Havia também importantes fazendas de gado, “hoje abandonadas por falta de braços para o trabalho rural”. Sobre Guaratiba, em que pese o desenvolvimento da pequena lavoura e outras atividades como a extração de madeira (cedro, peroba, jequibá, canela, jacarandá e pau-ferro), “sua decadência é sensível devido às secas que têm consumido suas plantações e importantes cafezais”. Em Santa Cruz, junto a um comércio incipiente havia uma pequena lavoura existente em terras “outrora tão bem aproveitadas”.

     Essa representação que tomava a zona rural pelo viés da decadência, carregada pela nostalgia de uma “época de ouro”, não nos permite compreender importantes processos que a partir dessa época passavam a tomar forma na zona rural. Um deles diz respeito à formação e expansão de uma agricultura baseada na pequena produção. Se atentarmos para este processo com mais cuidado, veremos que a disseminação da pequena lavoura se deveu menos à derrocada da ordem dos grandes senhores de terra e mais a uma estratégia posta em prática por eles mesmos para a obtenção de ganhos econômicos e, possivelmente simbólicos.

     Uma espécie de economia de subsistência passa a dominar a zona rural a partir do último quartel do século XIX foi possibilitada pela divisão das grandes propriedades em chácaras e sítios que foram arrendadas ou aforadas aos lavradores.   Isto cumpria aos olhos dos antigos senhores de terra, dois papéis muito importantes. Primeiro, era preciso atrair uma nova mão-de-obra para as terras, a fim de que através de seu trabalho, elas se mantivessem produtivas e rentáveis. Uma das formas mais utilizada para tal fim foi a cessão da posse da terra através da enfiteuse, uma instituição jurídica que remontava à Idade Média portuguesa. Por meio dela o proprietário recebia uma pensão ou foro anual, ficando o adquirente obrigado a conservar a terra produtivamente. Mas havia nisso um segundo propósito. Ao ceder apenas o direito de posse, pretendia-se conservar a extensão territorial da grande propriedade e o domínio sobre ela. Mas o fundamental nisso tudo era a introdução na área do pequeno lavrador, seja como foreiro, arrendatário ou parceiro. Ou seja, com eles, novas relações sociais começavam a se consolidar na região. No início, esses agentes eram vistos pelos grandes proprietários como solução para a valorização de suas terras, “enquanto estas aguardam novos tempos, à espera do antigo fausto”. É de suma importância que tenhamos isso em mente quando começarmos o estudo desses “novos tempos”.

Anúncio de fins do século XIX do Jornal do Commercio.

     Mas a terra e, principalmente, o que havia nela (benfeitorias, ferramentas, plantações, etc.), proporcionaram ganhos aos seus proprietários através de outras formas. Enquanto muitos proprietários preferiram manter suas terras para fins de cultivo com a simples cessão da posse, outros preferiram inseri-las no circuito comercial de compra, venda e aluguel de terrenos e benfeitorias. Este mercado se desenvolveu nas freguesias de Irajá, Inhaúma, Tijuca, Engenho Novo e Santo Antônio. O desenvolvimento dessa forma de valorização daria ensejo, segundo Pechman, ao surgimento de um “mercado de terras” no subúrbio da cidade. Negócio que, segundo ele, mostrou ser proveitoso a partir da década de 1840. A proliferação de anúncios de venda e aluguel de terrenos e benfeitorias nas páginas de classificados dos jornais no início daquela década seria um seguro indício. Mas os próprios anúncios nos mostram o quanto é problemático afirmarmos sobre a existência, ao menos naquela época, de um mercado de terras. Vejamos então alguns deles:

-     Arrenda-se um sítio na Penha, distante 3 léguas da cidade, com muito boa casa de vivenda, excelente água, grande cafezal, muito capim, podendo tirar diariamente 12 talhas, muito arvoredo frutífero e porto de mar muito perto...
      
-     Vendem-se terras pertencentes à Ilma. Sra. D. Jerônima Duque Estrada Meyer, no Engenho Novo, um sítio com arvoredos frutíferos, um apequena casa de palha e parte das terras ainda em capoeirão...

-     Vendem-se as benfeitorias de um sítio em terras do Engenho Novo do Campinho, distrito de Inhaúma, contendo boa casa de vivenda, plantações de café, enxertos de laranja de todas as qualidades, mandiocas e bananeiras, tudo em quantidade...
    

     Dos três anúncios, só no segundo a terra aparece como o objeto de transação. O primeiro se refere a um arrendamento, ou seja, o que se negocia é o direito de uso sobre a terra e não a terra em si. No terceiro, o que se põe a venda são as benfeitorias. Isso passará a mudar a partir de 1870 com a extensão das linhas de trem e de bonde em direção aos subúrbios, de um lado, e a abertura de ruas, do outro. Neste momento, parte da zona rural – compreendida pelas freguesias referidas acima – passará a ver a transformação de suas fazendas em lotes urbanos. Numa área que vai até o limite entre a freguesia de Inhaúma e Jacarepaguá, verifica-se uma diminuição do tamanho dos terrenos postos à venda e uma nova lógica na repartição da terra. Cabe lembrar que os lotes vendidos localizavam-se em áreas arruadas e faziam parte de um conjunto de outros lotes, “caracterizando, sem sombra de dúvidas, um processo de constituição de uma malha urbana”. Esta só se consolidaria a partir da década de 1890, quando si inicia a urbanização dos bairros do subúrbio como Engenho Novo e Méier. Data dessa época o grande número de pedidos encaminhados à Diretoria de Obras e Viação para abertura, nivelamento e calçamento de ruas, prolongamento e aceitação de logradouros, e licenças para construir. A intensidade desse processo fará com que, iniciado o século XIX, as freguesias de Inhaúma, Irajá, Engenho Novo, Tijuca e Santo Antônio passem a constituir uma “franja urbano-rural”, onde é intensa a mistura de usos dos dois tipos. Mesmo as freguesias que ainda eminentemente rurais (onde a maior parte das propriedades se destinava à atividade agrícola) entrarão no novo século tendo que conviver com o aprofundamento de um processo de urbanização, que se dá seja através do retalhamento das terras, seja pela expansão de obras urbanas com a extensão de linhas de trem, bonde e abertura de ruas e avenidas. Mas por se tratar de um processo marcadamente lento, os usos urbanos terão de conviver forçosamente com os usos rurais, ainda amplamente dominantes.

Outro anúncio do JC.


     O século XIX terminava mas a região tinha bons motivos para não ser considerada decadente. Em primeiro lugar, há um significativo mercado girando em torno do uso sobre a terra (sob a forma principalmente do arrendamento), e o desenvolvimento de um “mercado de terras”, bem mais tímido é verdade. Mas tanto um como outro ajudavam a expandir uma agricultura baseada em pequenas unidades de produção e lançar as primeiras sementes de uma malha urbana no subúrbio do Rio, e que nas freguesias mais próximas do centro da cidade já se encontrava consolidada desde a década de 1890. Em segundo, o fato dos antigos proprietários terem retalhado seus terrenos pode muito bem não ter sido um sintoma de decadência. Na verdade, o discurso sobre a “decadência” dizia mais respeito a um olhar saudoso da época das grandes plantações movidas pelo trabalho escravo do que a processos que efetivamente ocorriam na região.  Infelizmente alguns pesquisadores incorporariam isso em suas análises. 

Leonardo Soares dos Santos
Membro do IHJA
Professor Adjunto II do Curso de História do Polo da UFF/Campos
Coordenador do NEPETS
Professor  Colaborador da USS

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