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domingo, 3 de março de 2024

A História da ocupação de Gardênia Azul (Parte IV)


POR Leonardo Soares dos Santos, 

Professor de História/UFF, Pesquisador do IHBAJA e do IAP

 

Se não havia dúvidas sobre a inclinação do governo Lacerda pela desapropriação, o que ainda gerava preocupação era a modalidade desta: que tipo de desapropriação pretendia Lacerda realizar? E essa não era uma questão menor. Havia duas formas mais comuns, a desapropriação por utilidade pública e por interesse social. Havia (e ainda há) importantes diferenças entre as duas.

Na primeira, o processo de desapropriação não tem caráter de urgência. Já na segunda forma, a execução teria que se efetivada no prazo de dois anos. Havia uma outra diferença, mais crucial ainda: pela primeira, o executante não era obrigado a conservar os antigos moradores em suas posses. Ou seja, se o Estado quisesse, ele poderia despejar a população de Gardênia Azul para a realização de outro empreendimento. Pela segunda forma, o Estado se via obrigado a prover meios que assegurassem a permanência dos seus moradores no território.

Havia o receio de que por existir perto dali a construção do conjunto da Cidade de Deus, e diante das várias evidências de que Gardênia Azul foi estabelecida num terreno impróprio para ocupação (área alagadiça, antes um verdadeiro brejo, sempre sujeita a alagamentos), Lacerda se decidisse pela transferência dos moradores desta última para a localidade vizinha.

Daí que seus habitantes vissem com grande preocupação a declaração da área abarcada por Gardênia Azul como de “utilidade pública” (o que definia a área a ser objeto de desapropriação). Face a esse acontecimento, Angela Fontes, “a Associação passou a lutar em duas frentes: ao nível do privado, pela legalidade do loteamento feito pelo sr. Padilha, e, ao nível público, contra o interesse do estado em preservar a área para ocupação por uma classe de renda alta” (FONTES, 1984: 79-80).

Pouco tempo depois, as pressões fariam o efeito tão ambicionado. Em 10 de março de 1965, quase um ano depois do Golpe Militar, o governador Carlos Lacerda assinou o decreto de desapropriação da área do loteamento do Parque Gardênia Azul. Argumentava o mandatário que a decisão estava “baseada no fato que os proprietários da área desapropriada descumpriram obrigações com os promitentes compradores dos lotes deixando o ‘Parque Gardênia Azul’ sem urbanização e saneamento e sem condições de habitabilidade” (Diário Carioca, 13/03/1965). 


Diário Carioca, 13/03/1965.

 

Ficava ainda a Companhia Metropolitana de Habitação da Guanabara (COHAB) encarregada de executar a desapropriação e “instrução para mandar urbanizar toda a área”. 

A matéria do Diário Carioca ainda informava que “os compradores dos lotes desapropriados deverão assinar convênio com a COHAB para a execução das obras necessárias ao saneamento e à urbanização do Parque”. 

Antonio Silvino, um dos primeiros moradores de Gardênia Azul (ele dizia ter sido o “sexto”), em entrevista concedida a Angela Fontes na primeira metade dos anos 80, rememora o acontecimento:

Em 1965, o governador Carlos Lacerda queria desapropriar para utilidade pública, o que desapropriava a nós também. Nós resistimos. Mantivemos a posição firme em torno da desapropriação por interesse social, direitos de terceiros e adquirentes. Então, em 65, num dos últimos atos de Lacerda, a assinatura do decreto da desapropriação por interesse social. Muito bem! Mas o Lacerda saiu e ficou só assinatura” (FONTES, 1984: 80).

 

 



Correio da Manhã, 13/03/1965.

 

Em parte, as medidas oficializadas por Lacerda seriam cumpridas. Alguns desses compradores conseguiram regularizar a sua situação junto à COHAB. Porém, vários outros seguiriam lutando para regularizar sua situação 

Mas as obras e melhoramentos prometidos pelo executivo estadual demoraram muito a acontecer. Logo, a penúria perdurava. Nos últimos dias de 1965, matéria do Última Hora traçava um triste retrato das condições de vida na região: 

Também moradores do Bairro Gardênia Azul (Jacarepaguá) foram vítimas da conversa fiada de companhia loteadora. Como acontece com a maioria deles, na hora de vender, nhannhanzinhos, com tranquilidade bovina, prometiam: água, luz, gás, esgoto, arruamentos, o diabo. E nada disso foi feito. Claro. Hoje, cerca de cinco mil moradores comem o pão que o diabo amassou, pois estão no mato sem cachorro. Começa que vivem na mais completa escuridão. Não tem água. Nem telefone. Quanto à condução é a mais avacalhada possível: uma só linha de ônibus e cujos carros, no verão, trafegam com gente pendurada até em coma das rodas, pois vão até a Barra da Tijuca. E quem reside no Gardênia Azul que se dane. Que mofe duas e mais horas à espera que algum passageiro desça e dê uma vaguinha muito espremida. 

E mais: se alguém adoece durante a noite e tem necessidade de socorro urgente, pode ir encomendando o enterro ao papa-defunto porque vai morrer por absoluta falta de recursos! 

É incrível mas verdade. 

Por conseguinte, aos diretores do Dep. de Concessões (hoje com nome complicado pra burro), do Serviço de Aguas e de Energia Elétrica, pra fazerem qualquer coisa pelos moradores do Jardim Gardênia, que de conversa fiada já andam cheios, coitadinhos (Última Hora, 13/12/1965, p. 31). 

 

Diário de Notícias, 13/03/1965.

 

Seria já no Governo Negrão de Lima que o desafio de transformas a “assinatura” de Lacerda em algo efetivo, ou seja, a realização de obras públicas e a garantia da propriedade da terra por parte de seus moradores.

 

Referência bibliográfica:

FONTES, Angela Maria Mesquita. Gardênia Azul: o trabalho feminino na reprodução do espaço urbano. Rio de Janeiro: Dissertação de mestrado, UFRJ/COPPE, 1984.



Continua.......


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quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

A História da ocupação de Gardênia Azul (Parte III)

  A História da ocupação de Gardênia Azul (Parte III)

Leonardo Soares dos santos

Professor de História/UFF

Pesquisador do IHBAJA e do IAP


 Contudo, se a linha adotada pelo governo Lacerda junto às favelas localizadas na zona sul era muito coerente com as estratégias políticas por ele elaboradas, como pensar a questão específica de Gardênia Azul? Como o governo podia lidar com os crescentes problemas da população em termos de precariedade das condições de habitação? Ela não era caracterizada como uma favela passível de ser removida, principalmente por não estar localizada numa área considerada “nobre”. Ao contrário, visto em si, o projeto de ocupação de Gardênia Azul era um exemplo animador para os objetivos de Carlos Lacerda, que esperava urbanizar o quanto antes a Baixada de Jacarepaguá, plano que ele tinha em mente desde os anos 1940, quando era vereador. Tratava-se no fundo de um bairro que contribuiria para a afirmação do caráter crescentemente urbano da região. Daí que a remoção não fosse algo cogitado. A fixação daqueles moradores na localidade era sim o que interessava. Mas, ao mesmo tempo, faltava quase tudo: água, luz, telefone, transporte, esgoto, escolas, postos de saúde.


Carlos Lacerda. Fonte:https://www.camara.leg.br/deputados/130732/biografia.



Mas havia um outro complicador: oficialmente, o loteamento Gardênia Azul era um empreendimento privado, cuja melhoria urbana era de responsabilidade pelo responsável por aquele projeto, o Sr. José Padilha. Portanto não era fácil que os poderes públicos assumissem as tarefas de urbanização da localidade. Isso ficou nítido um ano antes, pois mesmo o governo produzindo um relatório bastante negativo sobre o loteamento, ficava impossibilitado de tomar medidas mais efetivas, já que se tratava de uma área de propriedade particular.

Porém, como vimos nos acontecimentos de 1963, com a ocupação de terras em Urussanga, boa parte dos moradores buscava construir algumas alternativas a esse impasse. Naquele ano, a estratégia consistiu em ocupar terras, pressionando seja o governo federal (de João Goulart) ou o governo Estadual (de Carlos Lacerda) a desapropriar a área. No entanto, a repressão foi intensa, impossibilitando a realização daquele objetivo.

Após esse insucesso, outra alternativa passou a ganhar o horizonte: a possibilidade de desapropriação da própria área de Gardênia Azul. Para isso, era fundamental que se comprovasse que o antigo proprietário não tenha cumprido com o prometido no ato da venda dos lotes. Significativo que alguns movimentos tenham sido realizados nesse sentido. De fundamental importância foi a pressão desses moradores junto às autoridades públicas por meio de denúncias crescentes sobre as péssimas condições de moradia do lugar.

O contexto político pós-golpe tornava tudo mais difícil. Muitas das desapropriações efetuadas pelo governo João Goulart foram anuladas, por exemplo. A desapropriação de terras para fins de reforma agrária acabou se tornando um símbolo da esquerda subversiva e radicalizada – esse foi o discurso difundido pelos setores conservadores que contribuíram para a vitória do movimento golpista que instaurou o regime militar no país. Contudo, o fechamento do regime não foi capaz de paralisar o segmento mobilizado e organizado dos moradores de Gardênia Azul. Mesmo com toda a dificuldade imposta pela nova e dura conjuntura política, eles e elas seguiram exercendo pressão sobre as autoridades políticas da cidade. Em outubro de 1964, “o deputado estadual Rossini Lopes encaminhou requerimento à CPI que apura irregularidades nos loteamentos, encarecendo investigar a respeito da venda de lotes no bairro “Gardênia Azul’, em Jacarepaguá, de propriedade do sr. José Nunes Padilha Coimbra (Diário de Notícias, 13/10/1964, p. 3).”

A insistência das denúncias sobre a precariedade do local e as irregularidades do loteamento tinham todo o sentido. Em que pese o contexto político mais amplo, o interesse pela desapropriação podia ser facilmente acolhido pela administração Carlos Lacerda. Mesmo porque, a desapropriação em questão aqui não era aquela voltada para reforma agrária, mas para o assentamento de população urbana na periferia da cidade. Cabe relembrar que o instituto da desapropriação fazia parte da política habitacional do governo estadual no tocante às favelas, pois era o que viabilizava áreas destinadas para sediar conjuntos habitacionais voltados para as populações transferidas daquelas. Assim, com esse objetivo, o governo promoveu a desapropriação de áreas para a instalação de Vila Kennedy (Senador Camará), Vila Aliança (Bangu), Cidade Alta (Cordovil), Vila Nova Holanda (Ramos) e Cidade de Deus (Jacarepaguá). Segundo ainda Rose Compans, o governo Carlos Lacerda construiu ao todo 10 conjuntos habitacionais, perfazendo um total de 8.869 unidades habitacionais neles distribuídos (COMPANS, 2011, p. 5). E, ainda segundo a autora, três desses conjuntos - Vila Kennedy, Vila Aliança e Vila Esperança – acabaram abrigando “moradores de 32 favelas parcial ou totalmente erradicadas” (Idem).

E o mais relevante para a situação dos moradores de Gardênia Azul: o governo parecia disposto a efetuar a desapropriação de áreas já ocupadas, desde que não estivesse localizada na zona sul, para a fixação de população de baixa renda e, quem sabe, atrair moradores de favelas extintas.

A reportagem do Diário de Notícias do início de 1964, ainda antes do Golpe Militar, é ilustrativa. Com o sugestivo título “Desapropriações para exterminar favelas cariocas” o jornal destacava o plano do governo estadual para “construir, ainda este ano, seis mil casas populares numa área de 700 mil metros quadrados da rua Edgar Werneck, em Jacarepaguá”. As “autoridades estaduais” estariam ainda examinando “a desapropriação de mais duas áreas de terras para a instalação de novos núcleos residenciais, frisando que, quando este programa estiver concluído, o Rio não terá mais favelas nem cariocas vivendo em condições precárias” (04/02/1964, p. 7). Demonstrando apoio irrestrito aos objetivos do plano do governo, o texto ainda sublinhava que “tanto quanto possível”, o executivo procurava “deslocar parte da superpopulação da zona sul para as regiões pouco habitadas”, por meio dos conjuntos residenciais (Idem).

Mas se na zona sul o governo procurava expulsar as populações das favelas, na zona rural e subúrbios a ênfase era exatamente oposta. A administração Lacerda não hesitaria em fazer uso de instrumentos urbanísticos para fixar tais populações na região. Daí que o jornal assim explique o papel das desapropriações na “solução” do “problema” das favelas

O Plano de Urbanização [do governo Carlos Lacerda] começou há pouco mais de dois anos. Durante esse período, o governo construiu casas e transferiu favelas. Por outro lado, atento à “ganância” de proprietários de terras, a atual administração intervém sempre que se torna necessário evitar o despejo de centenas de pessoas (Idem).

 

A matéria finalizava mencionando um exemplo que tinha muitas semelhanças com o caso de Gardênia Azul. Tratava-se da Mangueira, “onde, por decreto, foi feita a desapropriação de toda a área, transformando-a de utilidade pública”. O que demonstrava a inclinação do governo Carlos Lacerda em utilizar a desapropriação como uma saída política para determinados conflitos, e em benefício dos moradores – desde que não habitassem na zona sul. O caso da Mangueira indicava também que a desapropriação, seguida de uma política de urbanização poderia ser benéfica para o capital ligado ao setor da construção civil. Nesse sentido, a reportagem acrescentava que na “Mangueira, a primeira etapa do plano de urbanização está pronta, [...] já tem rua calçada, esgoto e água. Agora esta sendo estudado um programa de loteamento de toda a área para construção de casas de alvenaria” (Idem).  

Não parece sem sentido pensar que Carlos Lacerda visse a desapropriação de Gardênia Azul com bons olhos. É possível que ele passasse a ver a localidade como mais uma área a receber moradores despejados de favelas erradicadas na zona sul.

Outro ponto que não pode ser negligenciado no debate sobre essa conjuntura dos anos 1964 e 1965, a parte final do governo Carlos Lacerda, é o grande desgaste que este sofreu pela radicalidade e violência da sua política remocionistaGonçalves lembra ainda que até mesmo as agências financiadoras da política habitacional lacerdista teceriam críticas a sua estratégia de remoção violenta.

Mas é também possível que a desapropriação visada por Lacerda pudesse ser ruim também para os seus humildes moradores. É possível que o governador tivesse planos de expulsar todos dali. E essa possibilidade não era infundada. 

E isso passou a assombrar os moradores de Gardênia Azul nos primeiros meses de 1965.



Continua......

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terça-feira, 2 de janeiro de 2024

 A História da ocupação de Gardênia Azul (Parte II)

Leonardo Soares dos santos

Professor de História/UFF

Pesquisador do IHBAJA e do IAP


A vida propriamente dita no Parque Gardênia Azul não era das mais fáceis no início dos anos 60. 


Em sessão da Assembleia Legislativa da Guanabara, o deputado Valdemar Viana (Partido Republicano Trabalhista) apresentou requerimento por “informações indagando porque o proprietário do loteamento ‘Gardênia Azul’, em Jacarepaguá, não respeita a lei 6.000” (Tribuna da Imprensa, 26/01/1961, p. 4).





http://urbecarioca.com.br/um-passeio-pelos-cantos-e-encantos-historicos-de-jacarepagua-parte-1-de-marcelo-copelli/


As queixas dos moradores se multiplicavam. No início de 1962, uma comissão de moradores visitaria a redação do jornal O Globo, “solicitando que divulgássemos os memoriais em que pedem providências ao Governador Carlos Lacerda para irregularidades que afirmam existir” no local. Segundo o “memorial com dezenas de assinaturas, residem 866 famílias, que estão privadas de água, luz, escolas e outras tantas necessidades, pelo que desejam que a administração do Estado constate diretamente tais irregularidades para as necessárias providências” (O Globo, 15/01/1962, p. 14).


O semanário comunista Novos Rumos noticiava no início de agosto de 1962, em matéria intitulada “Moradores do Parque Gardênia Azul vítimas da especulação imobiliária” que eram 600 famílias, “totalizando cerca de três mil pessoas”, tinham se organizado em torno da “Associação Pró-Melhoramentos do Bairro Gardênia Azul” para a defesa de seus interesses. Era, segundo o jornal, o início da “luta contra os danos, que lhes vêm causando comerciantes e corretores de imóveis”.


O jornal detalhava a fundo várias denúncias dos moradores. Segundo o Novos Rumos, os moradores teriam sido vítimas de um “conto”, que foi o que consistiu, segundo o jornal, as promessas oferecidas pela empresa aos compradores dos lotes:

Afirmando aos interessados que a área do atual Parque Gardênia Azul constava do “plano de reloteamento em processo na prefeitura do Distrito Federal, de acordo com planta aprovada sob o numero 18 328, em 24 de julho de 1955” a firma José Padilha Nunes Coimbra vendeu ali dezenas de lotes de terreno para a construção de residência. As operações de vendas e contratos foram feitas por intermédio do corretor Denize Michel Emanuel, estabelecido em escritório na Praça Mauá, 7, quinto andar (Novos Rumos, 3 a 9 de agosto de 1962, p. 7).


Após a compra, segundo o que afirma o jornal comunista, os compradores se deparariam com uma situação totalmente destoante do que havia sido anunciada: 


Acontece entretanto que toda a imensa área não consta de plano algum de urbanização do Estado: ao contrário do que asseguravam os vendedores dos imóveis. Assim as famílias que compraram os terrenos, ou não construíram suas casas ou as construíram e estão morando numa zona sem iluminação, sem rede de esgotos e sem água, uma vez que tais melhoramentos, indispensáveis ao preenchimento de condições mínimas de habitabilidade, não tiveram sua instalação providenciada pelo governo do Estado. Os compradores dos terrenos não escondem sua revolta contra o engodo de que foram vítimas. Muitos deles chegaram mesmo a suspender o pagamento das prestações dos lotes (Idem).


Ainda segundo o periódico, dois quadros políticos ligados ao PCB, o deputado estadual Hércules Corrêa e o jornalista Marco Antonio Coelho, teriam participado de um debate com os moradores da localidade “em assembléia popular”, “para a qual foram convidados”, com o intuito de discutir “problemas referentes à carestia e à necessidade das reformas de base. Junto a questões típicas da militância partidária, o jornal asseverava que os representantes comunistas “ficaram a par da ‘desenvoltura’ com que agiram os especuladores de imóveis contra os moradores da região”, e, garantia o Novos Rumos, ambos “prometeram incorpora-se à sua luta” (Idem). Com esse propósito, Hercules Correa teria solicitado em requerimento apresentado em sessão da Assembleia Legislativa, no dia 17 de julho (o debate ocorreu em 1º de julho), informações ao poder executivo do Estado sobre o Parque Gardênia Azul.


1 – A quem pertencem os lotes agrícolas de números 1 a 11 e de 33 a

49, situados em Jacarepaguá?

2 – A antiga prefeitura do Distrito Federal, hoje governo do Estado da

Guanabara, ao aprovar a planta dos citados lotes (processos número

18.328 de 24 de julho de 1955) que permissão legal deu ao

proprietário dos mesmos?

3 – Quais as providências legais que dispõe o poder executivo para

legalizar a situação dos que residem na área dos citados lotes? (Idem)


Significativo que logo depois desse pronunciamento, a administração estadual se apressasse para apresentar propostas de intervenção na localidade. Até para que o Gardênia Azul não se tornasse facilmente numa espécie de base política dos grupos de esquerda.


Tendo isso em mente, em outubro daquele ano, o governador Carlos Lacerda anunciava a execução de obras de urbanização e saneamento na “favela” Gardênia Azul (A Noite, 03/10/1962, p. 2). O anúncio era um indicador de que as demandas dos moradores encontravam algum eco na esfera governamental estadual. Curiosamente, o reconhecimento de que havia algo de errado nas condições de moradia da localidade era o fato de imprensa e poder público começarem a nomear Gardênia Azul não como um “loteamento” e sim como “favela”. 


Mais do que isso, o anúncio estava relacionado a um importante aspecto conjuntural. O governo Carlos Lacerda iniciava uma campanha agressiva de "remoções de favelas e buscava complementar tal iniciativa investindo na construção de conjuntos habitacionais. Para tanto, ele começou a procurar vultosas fontes de financiamento junto aos órgãos exteriores, especialmente estadunidenses, já que a possibilidade de financiamento por vias internas encontrava-se bloqueado devido às disputas políticas com o governo presidencial de João Goulart, herdeiro do varguismo e adversário político e ideológico do representante udenista. 


Por essa razão, Gardênia Azul poderia cumprir até mesmo um papel nessa nova estratégia de Lacerda, da mesma forma como os conjuntos habitacionais de Vila Kennedy e da Cidade de Deus. Talvez Lacerda enxergasse o local como o destino de pessoas expulsas do Leblon ou Humaitá. O Jornal do Commércio (07/10/1962, p. 7) dava maiores detalhes, que nos ajudam a visualizar melhor o cerne da proposta do governo. A decisão pela intervenção urbanística do governo Lacerda teria como base o “relatório apresentado pela Administração Regional de Jacarepaguá, contendo uma série de sugestões relacionadas com o saneamento e urbanização da favela Gardênia, local que naquele momento abrigava 2.300 pessoas. Segundo o jornal, o administrador Mário Campelo afirmava no relatório “serem ‘péssimas e inferiores ao mínimo tolerável de desconforto’ as condições de vida daquela favela”. O administrador ainda se mostrava pessimista quanto à realização de melhorias por parte do autor do loteamento. Além de explicar as razões de tal pessimismo, ele apresentava ainda uma denúncia quanto à legalidade do empreendimento:


[O administrador Mário Campelo] Ressalta que o proprietário da área ocupada pela favela Gardênia Azul nada faria para executar as obras de urbanização porque: a) venderá os lotes a preços baixíssimos, cujas prestações variam em torno de Cr$ 60 a Cr$ 100 por mês e por terem alguns lotes sido também invadidos; e b) o projeto de loteamento não chegou a ser aprovado” (Idem).


Não obstante a falta de confiança na realização de mudanças efetivas na situação do Gardênia Azul, Mário Campelo apresentava algumas “sugestões” a serem ponderadas:


1) O proprietário deve realizar obras de urbanização; 2) essas obras devem ser fixadas em função do resultado financeiro da venda dos lotes vagos e do reinício do pagamento dos lotes vendidos, paralisado há tempo; 3) deve ser aprovado um projeto de loteamento, modificando o atual, para que os moradores tenham seus títulos de propriedade e, com eles, garantia para efetuar os pagamentos das prestações; 4) o Governo providenciaria também, a curto prazo, para que água e luz cheguem até às portas do loteamento (Idem).


As sugestões seriam consideradas pelo governo. Nota-se que em nenhum momento se aventa a possibilidade de desapropriação. Mesmo que o relatório aponte a possibilidade de irregularidades, nas soluções apontadas pelo administrador regional, o governo teria que estabelecer ações conjuntas com o proprietário. Este seguiria recebendo os pagamentos pelos lotes e ficaria responsável pelas obras de urbanização, sendo que serviços como água e luz ficariam a cargo do governo. Na proposta de Campelo, abria-se até mesmo a possibilidade de refazer o projeto de loteamento. Ou seja, em que pese a gravidade da situação dos moradores, a administração regional seguia considerando o proprietário como um parceiro e não como um antagonista.


Na verdade, o governo Lacerda tinha a intenção de atuar como um intermediário do conflito entre moradores e proprietário (José Padilha). Ainda segundo o relatório, deveria haver “a assinatura de um acordo entre o proprietário e os moradores, com a interveniência da Fundação Leão XIII, pelo qual se fará o controle da receita e a execução das obras fixadas no termo de obrigações, e pelo qual pagará o proprietário à Fundação Leão XIII o valor de seu trabalho” (Idem).


Continua.........

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domingo, 30 de julho de 2023

A História da ocupação de Gardênia Azul: anos 1950



Por Leonardo Soares dos Santos

Professor de História e membro do IHBAJA


O território da Gardênia Azul faz parte do que já foi um dia o Engenho D’Água de Jacarepaguá. Ele pertenceu a diferentes donos ao longo de mais ou menos três séculos - todos eles pertencentes à família Correia de Sá. No século XIX, o então proprietário das terras, o sexto Visconde de Asseca José Maria Correia de Sá, que passava por sérios problemas financeiros, decidiu vender a propriedade ao Comendador Francisco Pinto da Fonseca (pai do Barão da Taquara).


Em meados dos anos 1950, ele constava como sendo de propriedade de José Padilha Coimbra, empresário rico e com bens espalhados por toda a cidade.




https://www.guiajpa.com.br/gardenia-azul/


Em 1953, ele resolve lotear sua fazenda, criando o Parque Gardênia Azul (planta que cultivava à larga em sua propriedade). Tão logo foi aprovado, o projeto do loteamento Gardênia Azul começou a ser anunciado nas páginas dos jornais em 1954.


Tão logo foi aprovado, o projeto do loteamento Gardênia Azul começou a ser anunciado nas páginas dos jornais em 1954. 



Anúncio de venda de lotes no Parque Gardênia Azul na Gazeta de Notícias, 4/12/1954, p. 5.



Carolina Zuccarelli Soares apresenta um importante aspecto da história de ocupação do território em sua dissertação sobre “as diferentes estratégias de  escolarização utilizadas por famílias de segmentos populares na Gardênia Azul”, lembrando que nos primeiros anos, “o pedreiro Severo Silveira Maciel construiu grande parte das casas na região tornando-se, posteriormente, líder comunitário” (p. 53) 


Num verbete sobre o bairro que corre por diversos sites na internet é comum encontrarmos a versão de que a implantação do seu “núcleo” - ou seja, a concretização do loteamento - teria se dado nos anos 60. Mas a história não foi bem essa. A ocupação do território já havia sido iniciada poucos anos depois da aprovação do projeto nos anos 50. Mas, é certo que tudo era muito difícil nos primeiros anos de consolidação do bairro. Sintomática era a forma como o bairro de Gardênia Azul era retratado nas poucas vezes que estampavam alguma nota nas páginas da imprensa carioca. O território aparecia muito associado a um local perigoso, violento, vicioso e refúgio de criminosos.


Em oito de agosto de 1955, o Diário da Noite estampava na página 10 a notícia de um sério conflito entre vizinhos no “Parque Gardênia Azul”, ocasionando um “ferimento penetrante no occipto-frontal” de Carlos Chagas Alvaro, na época com 25 anos. Segundo a reportagem, Carlos morava na “quadra 13, lote 10”. A contenda com os seus vizinhos Antonio Ribeiro de Oliveira e Domingos Lopes de Oliveira, teria sido motivada por “uns centímetros de terra”. Assim, no “auge da discussão, os dois, empunhando foice e enxada, respectivamente, o agrediram, após o que Antonio conseguiu fugir, sendo o outro detido pela guarnição da Patrulha 5”.


Ainda no final da década de 50 pululavam pelo noticiário carioca dando conta da ocorrência desses fatos. Em cinco abril de 1958, o Última Hora noticiava a morte a foiçadas de “Cachaça”, apelido do operário Jocelino Gomes de Sousa. Eis o que relatava a reportagem “Abatido a Foice no Parque Gardênia Azul”:


Seriam pouco mais de zero hora de sexta-feira quando o operário Rubem Silva (Rua “D”, sem número, Parque Gardênia Azul) ouviu forte discussão entre duas vozes masculinas e a seguir um baque surdo de algo caído. Mas como fôsse tarde e o lugar abandonado de policiais, foi dormir. Pouco depois era acordado pelo Comissário Nogueira Guedes, do 26º Distrito, que investigava o assassinato de Jocelino Gomes de Sousa, vulgo “Cachaça”, operário, casado, morador à Estrada da Água, 45. Segundo ficou apurado a vítima havia sido assassinada possivelmente a golpes de foice, pois apresentava dois profundos ferimentos na cabeça e pescoço. Ninguém que pudesse dar informações pelas redondezas, afora a testemunha já citada. O corpo fóra achado pelo motorista de praça Maurício Cesar de Andrade (Conselheiro Rubens de Melo, 581, Jacarepaguá), quando voltava da residência de um freguês. Foi pedido o auxílio da perícia e da Polícia Técnica, tendo comparecido por esta última, o Detetive Nielsen Kauffman. O autor do homicídio é inteiramente desconhecido (p. 8)



Mas para o que nos interessa aqui, muito mais importante do que analisar a associação que a imprensa faz da região como um espaço perigoso, é observar que muitas das pessoas citadas nas reportagens já moravam na região. A briga envolvendo Antonio Ribeiro e seus vizinhos em 1955, o assassinato de Jocelino em 1958, as testemunhas arroladas - todos eles moravam em Gardenia Azul, num determinado lote, inserido numa quadra e rua. O loteamento já estava sendo ocupado desde então. Porém, era uma ocupação precária em seu conjunto. As condições de vida na região eram difíceis.


Diante de tantos problemas observados, um fato novo começa a ganhar corpo na cobertura jornalística sobre o bairro. Desde o início dos anos 60, vários jornais passam a noticiar declarações de personalidades políticas em favor de melhorias no Gardênia Azul. Em maio de 1960, por exemplo, o então deputado federal pelo PSB Breno da Silveira teria ido “cobrar do Governador as promessas feitas ao povo carioca”, entre os pedidos constava a demanda por “água e luz para o bairro Gardênia Azul, hoje transformado pelo abandono, num antro de viciados em maconha e outros vícios”, complementava o Última Hora (30/5/1960, p. 2).


Após os primeiros anos de consolidação, a luta pela melhoria das condições de moradia seria o grande desafio dos anos 1960. E o crescente interesse de lideranças políticas sobre o assunto foi um importante sinal. 


Trataremos disso no próximo artigo.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


“Gardênia Azul”. Disponível em: https://www.guiajpa.com.br/gardenia-azul/. Acessado em: 28/07/2023.


SOARES, Carolina Zuccarelli. Segregação urbana, geografia de oportunidades e desigualdades educacionais no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Tese (mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, 2009.


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sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023


Organizações camponesas em Jacarepaguá:

o caso da Caixa Auxiliadora dos anos 1920


Por Leonardo Soares dos Santos

Professor de História e membro do IHBAJA



Não foram poucas as organizações camponesas que brotaram na Baixada de Jacarepaguá entre os anos de 1940 e 1960. Associações de Lavradores, Associações Rurais, e até mesmo Ligas Camponesas deram as caras na região, reunindo as demandas e aspirações de posseiros e pequenos lavradores. Por meio delas tais agentes buscaram fazer frente às tentativas de despejos encetadas por grandes companhias imobiliárias, bancos e pretensos proprietários individuais. Esse processo atingiu seu clímax na virada da década de 50 para 60. Imensos loteamentos varreram a região, destruindo terras antes voltadas para a produção agrícola.

 

Mesmo antes, em meados da década de 20, alguns lavradores buscaram constituir entidades para a defesa de seus interesses. Foi o caso das caixas beneficentes. Magalhães Corrêa, naturalista que se dedicou a desbravar a região do Sertão Carioca (a zona rural do município do Rio de Janeiro) menciona a existência de uma certa Caixa Auxiliadora Beneficente dos Lavradores de Jacarepaguá e Guaratiba (CORRÊA, 1936. p. 186). 


Como contava o naturalista, tal associação teria sido criada por Maurício de Lacerda, vereador carioca, e notória liderança anarquista da cidade. A Caixa tinha como principal finalidade contribuir com os lavradores na sua disputa contra grandes proprietários da região. Os lavradores estavam sendo ameaçados de despejo. Aqui se revelava uma questão que atuaria grandemente na mobilização dos pequenos lavradores da região pelas décadas seguintes: a questão fundiária seria mais premente do que as questões estritamente econômicas.


Podemos encontrar vários registros de suas atividades na imprensa carioca de esquerda. O Trabalho e Capital (“Actividade Proletaria”, 18/02/1928, p. 1) dava conta de uma assembleia ocorrida em fevereiro de 1928. Entre os assuntos tratados constava a prestação de contas da entidade pela tesouraria, “que acusou saldo recolhido no Banco Ultramarino”. Na “ordem do dia” figurava a eleição da “nova Directoria e inauguração do retrato do Sr. Mauricio de Lacerda em sua sede social”. 


Após a eleição da nova diretoria, Manoel Carvalhaes (reeleito presidente da Caixa), Maurício de Lacerda e J. Cruz discursaram. O primeiro rendeu elogios ao segundo, patrono da entidade, afirmando que enquanto a Caixa Auxiliadora “tiver os abnegados sócios que tem e o patrono que a assiste, poderá prestar grandes serviços aos proletários do campo”. 


Já Lacerda lembrou que se “hontem a luta era contra um banco, que disputava a terra aos lavradores, hoje deve se secundar na resistencia ao fisco, que arranca dessa terra, assim conquistada, o producto do trabalho camponez”. E também concitava os “lavradores a formar associações de classe para essa luta contra os tributos, defendendo-se de quem lhe suga o suor”.  


J. Cruz em sua fala procurou mostrar “o valor da solidariedade, dizendo que a Caixa que deu as terras a todos dará agora as garantias a cada um dos seus direitos”.


E finalizava o jornal: “Terminando esse discurso, que foi longo, expressivo, arrancando aplausos nas passagens principalmente em que pedia a união o espírito de organização, encerrou-se a sessão, às 15 horas e 45 minutos”.



Referência bibliográfica:


Corrêa, Armando Magalhães. O sertão carioca. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1936. (Originalmente escrito durante durante o ano de 1933).




A CAIXA AUXILIADORA DE JACAREPAGUÁ E GUARATIBA NOS JORNAIS





MAURICIO LACERDA


Crítica, 01/02/1928, p. 3
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quinta-feira, 21 de abril de 2022

O Meio Ambiente em Jacarepaguá não tem o que comemorar

 “Os pescadores queixam-se do óleo que a lancha deixa à superfície das águas e o barulho da mesma, afugentando os peixes, sem que se tenha obtido uma providência da Capitania dos Portos e da Diretoria da Pesca.”

(Armando Magalhães Corrêa)


O trecho acima é do livro “O Sertão Carioca”, do naturalista e pesquisador do Museu Nacional Magalhães Corrêa. Essa publicação reúne uma série de estudos leigos de botânica, geomorfologia e hidrografia sobre a Baixada de Jacarepaguá. Este fragmento do livro mostra a poluição nas lagoas da Barra da Tijuca provocada pelo lançamento de óleo dos barcos de turistas. O que parece apenas mais uma notícia da acelerada degradação ambiental da nossa região, torna-se ainda mais alarmante quando levamos em consideração que a publicação foi escrita em 1936, bem antes do boom imobiliário da Barra.

Em 2009, as Nações Unidas declararam que o Dia Internacional da Mãe Terra será comemorado no dia 22 de abril de cada ano. Infelizmente, não temos o que comemorar na Baixada de Jacarepaguá. Localizada na região litorânea oeste da cidade do Rio de Janeiro, essa região possui uma área de 160 km² que está situada numa extensa planície sedimentar circundada por dois maciços (Tijuca e Pedra Branca). Na sua base localiza-se a faixa de praia do litoral atlântico. O conjunto lagunar da região é composto pelas lagoas de Marapendi, Tijuca, Camorim, Jacarepaguá e Lagoinha das Taxas. O conjunto possui uma área total de 13,24 km².

A partir dos anos 1970, os corpos hídricos da baixada em questão vêm sofrendo profundas mudanças nas suas características, promovidas pela ação humana. O principal problema é o lançamento de esgoto bruto, sobretudo doméstico, nas águas dos rios que deságuam nas lagoas. Mesmo com a inauguração do emissário submarino, em abril de 2007, o complexo hidrográfico recebe 3,5 mil litros de dejetos por segundo. A grande quantidade de sedimentos e matéria orgânica provoca obstruções que diminuem a correnteza e dificultam muito a renovação da água. A poluição aumenta a quantidade de nitrogênio e de fósforo nas águas, contribuindo para a proliferação das cianobactérias e de microrganismos procarióticos que são capazes de produzir uma toxina que ataca o fígado e o sistema nervoso central.

O livro “O Sertão Carioca” relata a existência de uma riquíssima fauna nas lagoas da região.  Garças, socós, maçaricos, marrequinhas, irerês, frangos d’água, tainhas, lambaris, robalos, acarás, bagres e traíras povoavam esse importante ecossistema. Infelizmente, hoje muitos só podem ser contemplados nos desenhos feitos por Magalhães Corrêa. 
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quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

O Recreio antes do Recreio: vestígios da presença indígena e o morro do Rangel

Por Renato de Souza Dória

É comum a afirmação de que antes do século XX a região onde está situado o bairro do Recreio dos Bandeirantes teria permanecido isolada por muitos anos. E a ocupação humana digna de nota teria começado apenas com as ações de empresas e investidores do ramo imobiliário. Estes são descritos como verdadeiros desbravadores de uma natureza intocada, cuja maior façanha foi a gradativa mercantilização da terra e formação de um mercado imobiliário neste recanto da terra carioca. Desta forma, nomes como J. Weslley Fynch, Banco de Crédito Móvel, Raul Goulart, Pasquale Mauro, Holofernes de Castro e Sérgio Castro acabaram sendo consolidados nas narrativas sobre a história do bairro.


Ponto em comum nas diferentes versões sobre a origem do nome do bairro Recreio dos Bandeirantes é a menção à presença de paulistas nas praias do Pontal de Sernambetiba nas primeiras décadas do século XX, seja fazendo excursões, seja alugando ou adquirindo casas de veraneio. Daí viria o nome Recreio dos Bandeirantes. Desta forma, sobre a ocupação humana na região, a situação não é diferente: ponto em comum é a menção à supostos proprietários e a uma série de transações imobiliárias.


Joseph Weslley Fynch adquiriu na década de 1920 uma gleba do desmembramento de uma antiga fazenda no Pontal de Sernambetiba, antes pertencente ao Banco de Crédito Móvel. Este, por sua vez, teria adquirido terras da mesma fazenda junto ao professor Raul Goulart. Ao que tudo indica, o imbróglio decorrente de nebulosas transações imobiliárias não ficou restrito apenas à Barra da Tijuca, estendeu-se até o Recreio dos Bandeirantes.

Gleba A, década de 1960.

Se a história recente (cerca de 100 anos) e nome do bairro do Recreio dos Bandeirantes está na produção e comercialização imobiliárias de meados do século XX na cidade do Rio de Janeiro, os nomes de localidades do bairro e proximidades fazem referência a um passado para além dos limites do século XX, da mercantilização desenfreada da terra e dos projetos de urbanização: Itapuã, Itaúna, Itapeba, Sernambetiba, Currupira, Caetés e Piábas são testemunhos da importância da presença dos povos originários na ocupação humana da região ao longo do tempo.


A expressividade do vocabulário do tronco linguístico tupi indica que mesmo tendo sofrido derrotas e perdido territórios desde o século XVI para os invasores portugueses, as populações originárias continuaram capazes de influenciar na formação da cultura da sociedade colonial da zona oeste carioca. Segundo relatos de moradores antigos, o bairro no passado teria o nome de Currupira ou Corrupira, influência forte da cultura indígena local que a colonização portuguesa não conseguiu apagar.


Já o morro do Rangel faz referência a Julião Rangel de Macedo, militar português que lutou durante o século XVI nas guerras de invasão e conquista dos territórios Tamoios situados na atual cidade do Rio de Janeiro. Junto de Jerônimo Fernandes, Julião Rangel foi um dos primeiros sesmeiros de toda a Baixada de Jacarepaguá, região onde no século XVI estava situada as famosas Aldeias de Guaraguassumirim e Takuarussutyba.


Por outro lado, a área do morro possui várias grutas e abrigos sobre as rochas, onde foram realizadas pesquisas arqueológicas desde a década de 1960. Lá foram encontrados vestígios das culturas Tamoio e dos povos construtores de sambaquis em grutas descobertas na década de 1970. Em 1975 a área do morro do Rangel foi declarada bem tombado do Estado da Guanabara, antiga denominação da cidade do Rio de Janeiro durante a ditadura civil-militar.

Gleba C, década de 1960.

O tombamento do morro do Rangel fez parte de um conjunto de ações de preservação inaugurados pelo antigo Estado da Guanabara, cuja proposta foi proteger determinados sítios naturais para a valorização das condições históricas, paisagísticas e ambientais da região, evitando a transformação completa da paisagem pela urbanização e avanço das construções imobiliárias.


A origem do nome do bairro do Recreio dos Bandeirantes está na mercantilização da terra e na produção imobiliária e consolidou-se em meados do século XX na cidade do Rio de Janeiro. Como alternativa mais barata em relação aos imóveis dos bairros da zona sul, os dois balneários da Baixada de Jacarepaguá, Barra da Tijuca e Recreio dos Bandeirantes, destacaram-se no mercado imobiliário urbano carioca por sua "beleza incomparável" e "excelência de seu plano urbanístico".


Agentes capitalistas e órgãos do estado atuaram na formação do mercado imobiliário e na elaboração e execução de projetos de urbanização, como o do urbanista José Otacílio Saboya Ribeiro de 1953, inspirado no modelo anglo-americano de Cidade Jardim. As vidas iniciais foram realizadas pela Recreio do Bandeirantes Imobiliária S.A. e no final da década de 1950 é assumido por Sérgio Castro, apoiado pelo senador e banqueiro Georgino Avellino, presidente do Banco do Distrito Federal.

Jornal Última Hora, 11/02/1955.

Os anúncios de vendas de lotes nas glebas A e B, do Plano Urbanístico e a execução das obras de urbanização a cargo da Recreio dos Bandeirantes Imobiliária S.A. eram comuns nos jornais cariocas mais populares durante a década de 1950, como neste Última Hora do ano de 1955. O projeto de abertura de loteamento foi registrado junto à Prefeitura do Distrito Federal no início do ano de 1954 e as vendas dos lotes da Gleba B, primeiros a serem comercializados, foram surpreendentes ao ponto de permitir a antecipação da conclusão das obras.


O plano urbanístico da Gleba B apresenta os lotes rodeando a Lagoinha das Taxas, a Pedra do Pontal tem destaque e dela partem as vias principais: as avenidas Gilka Machado (atual), Litorânea (atual Lúcio Costa) e a estrada Benvindo de Novaes (atual). Outras iniciativas de urbanização realizadas no Recreio já em 1955 foram resultados da pressão política da companhia imobiliária Recreio dos Bandeirantes S.A. para que o Departamento de Estradas e Rodagens do Distrito Federal asfaltasse as principais ruas das Glebas A e B, como a avenida Litorânea que ligava a Barra da Tijuca ao Recreio.

Jornal Última Hora, 28/04/1955.

Em 1955 as vendas dos lotes da Gleba A iniciaram após a venda dos lotes da Gleba B em menos de 190 dias. Neste anúncio publicado no jornal Última Hora vemos o plano de urbanização com o traçado das atuais avenidas principais: Gláucio Gil, Lúcio Costa (Litorânea), Genaro de Carvalho, Pedro Moura, Alfredo Balthazar da Silveira e Guignard. A atual rua Professor Hermes Lima é o traçado que acompanha o Canal das Taxas, que parte a oeste da lagoa de Marapendi. O apelo paisagístico dos terrenos são a Lagoa de Marapendi e a praia.


O anúncio mostra os dados de registro do loteamento junto à Prefeitura do Distrito Federal e no Registro Geral de Imóveis e a informação de que a empresa Recreio dos Bandeirantes S. A. detém o recorde mundial de vendas de terrenos. Diferentes garantias para evitar a desvalorização do investimento são oferecidas, assim como uma condução para levar os interessados até o local.


Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira, Biblioteca Nacional.


Fotos: https://rioquepassou.com.br/
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