A História da ocupação de Gardênia Azul (Parte III)
Leonardo Soares dos santos
Professor de História/UFF
Pesquisador do IHBAJA e do IAP
Mas havia
um outro complicador: oficialmente, o loteamento Gardênia Azul era um
empreendimento privado, cuja melhoria urbana era de responsabilidade pelo
responsável por aquele projeto, o Sr. José Padilha. Portanto não era fácil que
os poderes públicos assumissem as tarefas de urbanização da localidade. Isso
ficou nítido um ano antes, pois mesmo o governo produzindo um relatório bastante
negativo sobre o loteamento, ficava impossibilitado de tomar medidas mais
efetivas, já que se tratava de uma área de propriedade particular.
Porém,
como vimos nos acontecimentos de 1963, com a ocupação de terras em Urussanga,
boa parte dos moradores buscava construir algumas alternativas a esse impasse.
Naquele ano, a estratégia consistiu em ocupar terras, pressionando seja o
governo federal (de João Goulart) ou o governo Estadual (de Carlos Lacerda) a
desapropriar a área. No entanto, a repressão foi intensa, impossibilitando a
realização daquele objetivo.
Após esse
insucesso, outra alternativa passou a ganhar o horizonte: a possibilidade de
desapropriação da própria área de Gardênia Azul. Para isso, era fundamental que
se comprovasse que o antigo proprietário não tenha cumprido com o prometido no
ato da venda dos lotes. Significativo que alguns movimentos tenham sido
realizados nesse sentido. De fundamental importância foi a pressão desses
moradores junto às autoridades públicas por meio de denúncias crescentes sobre
as péssimas condições de moradia do lugar.
O
contexto político pós-golpe tornava tudo mais difícil. Muitas das
desapropriações efetuadas pelo governo João Goulart foram anuladas, por exemplo.
A desapropriação de terras para fins de reforma agrária acabou se tornando um
símbolo da esquerda subversiva e radicalizada – esse foi o discurso difundido
pelos setores conservadores que contribuíram para a vitória do movimento
golpista que instaurou o regime militar no país. Contudo, o fechamento do
regime não foi capaz de paralisar o segmento mobilizado e organizado dos
moradores de Gardênia Azul. Mesmo com toda a dificuldade imposta pela nova e
dura conjuntura política, eles e elas seguiram exercendo pressão sobre as
autoridades políticas da cidade. Em outubro de 1964, “o deputado estadual
Rossini Lopes encaminhou requerimento à CPI que apura irregularidades nos
loteamentos, encarecendo investigar a respeito da venda de lotes no bairro
“Gardênia Azul’, em Jacarepaguá, de propriedade do sr. José Nunes Padilha
Coimbra (Diário de Notícias, 13/10/1964, p. 3).”
A
insistência das denúncias sobre a precariedade do local e as irregularidades do
loteamento tinham todo o sentido. Em que pese o contexto político mais amplo, o
interesse pela desapropriação podia ser facilmente acolhido pela administração
Carlos Lacerda. Mesmo porque, a desapropriação em questão aqui não era aquela
voltada para reforma agrária, mas para o assentamento de população urbana na
periferia da cidade. Cabe relembrar que o instituto da desapropriação fazia
parte da política habitacional do governo estadual no tocante às favelas, pois
era o que viabilizava áreas destinadas para sediar conjuntos habitacionais
voltados para as populações transferidas daquelas. Assim, com esse objetivo, o
governo promoveu a desapropriação de áreas para a instalação de Vila Kennedy
(Senador Camará), Vila Aliança (Bangu), Cidade Alta (Cordovil), Vila Nova
Holanda (Ramos) e Cidade de Deus (Jacarepaguá). Segundo ainda Rose Compans, o
governo Carlos Lacerda construiu ao todo 10 conjuntos habitacionais, perfazendo
um total de 8.869 unidades habitacionais neles distribuídos (COMPANS, 2011, p.
5). E, ainda segundo a autora, três desses conjuntos - Vila Kennedy, Vila
Aliança e Vila Esperança – acabaram abrigando “moradores de 32 favelas parcial
ou totalmente erradicadas” (Idem).
E o mais
relevante para a situação dos moradores de Gardênia Azul: o governo parecia
disposto a efetuar a desapropriação de áreas já ocupadas, desde que não
estivesse localizada na zona sul, para a fixação de população de baixa renda e,
quem sabe, atrair moradores de favelas extintas.
A
reportagem do Diário de Notícias do início de 1964, ainda antes do Golpe
Militar, é ilustrativa. Com o sugestivo título “Desapropriações para exterminar
favelas cariocas” o jornal destacava o plano do governo estadual para
“construir, ainda este ano, seis mil casas populares numa área de 700 mil
metros quadrados da rua Edgar Werneck, em Jacarepaguá”. As “autoridades
estaduais” estariam ainda examinando “a desapropriação de mais duas áreas de
terras para a instalação de novos núcleos residenciais, frisando que, quando
este programa estiver concluído, o Rio não terá mais favelas nem cariocas
vivendo em condições precárias” (04/02/1964, p. 7). Demonstrando apoio
irrestrito aos objetivos do plano do governo, o texto ainda sublinhava que
“tanto quanto possível”, o executivo procurava “deslocar parte da superpopulação
da zona sul para as regiões pouco habitadas”, por meio dos conjuntos
residenciais (Idem).
Mas se na
zona sul o governo procurava expulsar as populações das favelas, na zona rural
e subúrbios a ênfase era exatamente oposta. A administração Lacerda não
hesitaria em fazer uso de instrumentos urbanísticos para fixar tais populações
na região. Daí que o jornal assim explique o papel das desapropriações na
“solução” do “problema” das favelas
O Plano de Urbanização [do governo Carlos Lacerda]
começou há pouco mais de dois anos. Durante esse período, o governo construiu
casas e transferiu favelas. Por outro lado, atento à “ganância” de
proprietários de terras, a atual administração intervém sempre que se torna
necessário evitar o despejo de centenas de pessoas (Idem).
A matéria
finalizava mencionando um exemplo que tinha muitas semelhanças com o caso de
Gardênia Azul. Tratava-se da Mangueira, “onde, por decreto, foi feita a
desapropriação de toda a área, transformando-a de utilidade pública”. O que
demonstrava a inclinação do governo Carlos Lacerda em utilizar a desapropriação
como uma saída política para determinados conflitos, e em benefício dos
moradores – desde que não habitassem na zona sul. O caso da Mangueira indicava
também que a desapropriação, seguida de uma política de urbanização poderia ser
benéfica para o capital ligado ao setor da construção civil. Nesse sentido, a
reportagem acrescentava que na “Mangueira, a primeira etapa do plano de
urbanização está pronta, [...] já tem rua calçada, esgoto e água. Agora esta
sendo estudado um programa de loteamento de toda a área para construção de
casas de alvenaria” (Idem).
Não
parece sem sentido pensar que Carlos Lacerda visse a desapropriação de Gardênia
Azul com bons olhos. É possível que ele passasse a ver a localidade como mais uma
área a receber moradores despejados de favelas erradicadas na zona sul.
Outro ponto que não pode ser negligenciado no debate sobre essa conjuntura dos anos 1964 e 1965, a parte final do governo Carlos Lacerda, é o grande desgaste que este sofreu pela radicalidade e violência da sua política remocionista. Gonçalves lembra ainda que até mesmo as agências financiadoras da política habitacional lacerdista teceriam críticas a sua estratégia de remoção violenta.
Mas é também possível que a desapropriação visada por Lacerda pudesse ser ruim também para os seus humildes moradores. É possível que o governador tivesse planos de expulsar todos dali. E essa possibilidade não era infundada.
E isso passou a assombrar os moradores de Gardênia Azul nos primeiros meses de 1965.
Continua......