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quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

A História da ocupação de Gardênia Azul (Parte III)

  A História da ocupação de Gardênia Azul (Parte III)

Leonardo Soares dos santos

Professor de História/UFF

Pesquisador do IHBAJA e do IAP


 Contudo, se a linha adotada pelo governo Lacerda junto às favelas localizadas na zona sul era muito coerente com as estratégias políticas por ele elaboradas, como pensar a questão específica de Gardênia Azul? Como o governo podia lidar com os crescentes problemas da população em termos de precariedade das condições de habitação? Ela não era caracterizada como uma favela passível de ser removida, principalmente por não estar localizada numa área considerada “nobre”. Ao contrário, visto em si, o projeto de ocupação de Gardênia Azul era um exemplo animador para os objetivos de Carlos Lacerda, que esperava urbanizar o quanto antes a Baixada de Jacarepaguá, plano que ele tinha em mente desde os anos 1940, quando era vereador. Tratava-se no fundo de um bairro que contribuiria para a afirmação do caráter crescentemente urbano da região. Daí que a remoção não fosse algo cogitado. A fixação daqueles moradores na localidade era sim o que interessava. Mas, ao mesmo tempo, faltava quase tudo: água, luz, telefone, transporte, esgoto, escolas, postos de saúde.


Carlos Lacerda. Fonte:https://www.camara.leg.br/deputados/130732/biografia.



Mas havia um outro complicador: oficialmente, o loteamento Gardênia Azul era um empreendimento privado, cuja melhoria urbana era de responsabilidade pelo responsável por aquele projeto, o Sr. José Padilha. Portanto não era fácil que os poderes públicos assumissem as tarefas de urbanização da localidade. Isso ficou nítido um ano antes, pois mesmo o governo produzindo um relatório bastante negativo sobre o loteamento, ficava impossibilitado de tomar medidas mais efetivas, já que se tratava de uma área de propriedade particular.

Porém, como vimos nos acontecimentos de 1963, com a ocupação de terras em Urussanga, boa parte dos moradores buscava construir algumas alternativas a esse impasse. Naquele ano, a estratégia consistiu em ocupar terras, pressionando seja o governo federal (de João Goulart) ou o governo Estadual (de Carlos Lacerda) a desapropriar a área. No entanto, a repressão foi intensa, impossibilitando a realização daquele objetivo.

Após esse insucesso, outra alternativa passou a ganhar o horizonte: a possibilidade de desapropriação da própria área de Gardênia Azul. Para isso, era fundamental que se comprovasse que o antigo proprietário não tenha cumprido com o prometido no ato da venda dos lotes. Significativo que alguns movimentos tenham sido realizados nesse sentido. De fundamental importância foi a pressão desses moradores junto às autoridades públicas por meio de denúncias crescentes sobre as péssimas condições de moradia do lugar.

O contexto político pós-golpe tornava tudo mais difícil. Muitas das desapropriações efetuadas pelo governo João Goulart foram anuladas, por exemplo. A desapropriação de terras para fins de reforma agrária acabou se tornando um símbolo da esquerda subversiva e radicalizada – esse foi o discurso difundido pelos setores conservadores que contribuíram para a vitória do movimento golpista que instaurou o regime militar no país. Contudo, o fechamento do regime não foi capaz de paralisar o segmento mobilizado e organizado dos moradores de Gardênia Azul. Mesmo com toda a dificuldade imposta pela nova e dura conjuntura política, eles e elas seguiram exercendo pressão sobre as autoridades políticas da cidade. Em outubro de 1964, “o deputado estadual Rossini Lopes encaminhou requerimento à CPI que apura irregularidades nos loteamentos, encarecendo investigar a respeito da venda de lotes no bairro “Gardênia Azul’, em Jacarepaguá, de propriedade do sr. José Nunes Padilha Coimbra (Diário de Notícias, 13/10/1964, p. 3).”

A insistência das denúncias sobre a precariedade do local e as irregularidades do loteamento tinham todo o sentido. Em que pese o contexto político mais amplo, o interesse pela desapropriação podia ser facilmente acolhido pela administração Carlos Lacerda. Mesmo porque, a desapropriação em questão aqui não era aquela voltada para reforma agrária, mas para o assentamento de população urbana na periferia da cidade. Cabe relembrar que o instituto da desapropriação fazia parte da política habitacional do governo estadual no tocante às favelas, pois era o que viabilizava áreas destinadas para sediar conjuntos habitacionais voltados para as populações transferidas daquelas. Assim, com esse objetivo, o governo promoveu a desapropriação de áreas para a instalação de Vila Kennedy (Senador Camará), Vila Aliança (Bangu), Cidade Alta (Cordovil), Vila Nova Holanda (Ramos) e Cidade de Deus (Jacarepaguá). Segundo ainda Rose Compans, o governo Carlos Lacerda construiu ao todo 10 conjuntos habitacionais, perfazendo um total de 8.869 unidades habitacionais neles distribuídos (COMPANS, 2011, p. 5). E, ainda segundo a autora, três desses conjuntos - Vila Kennedy, Vila Aliança e Vila Esperança – acabaram abrigando “moradores de 32 favelas parcial ou totalmente erradicadas” (Idem).

E o mais relevante para a situação dos moradores de Gardênia Azul: o governo parecia disposto a efetuar a desapropriação de áreas já ocupadas, desde que não estivesse localizada na zona sul, para a fixação de população de baixa renda e, quem sabe, atrair moradores de favelas extintas.

A reportagem do Diário de Notícias do início de 1964, ainda antes do Golpe Militar, é ilustrativa. Com o sugestivo título “Desapropriações para exterminar favelas cariocas” o jornal destacava o plano do governo estadual para “construir, ainda este ano, seis mil casas populares numa área de 700 mil metros quadrados da rua Edgar Werneck, em Jacarepaguá”. As “autoridades estaduais” estariam ainda examinando “a desapropriação de mais duas áreas de terras para a instalação de novos núcleos residenciais, frisando que, quando este programa estiver concluído, o Rio não terá mais favelas nem cariocas vivendo em condições precárias” (04/02/1964, p. 7). Demonstrando apoio irrestrito aos objetivos do plano do governo, o texto ainda sublinhava que “tanto quanto possível”, o executivo procurava “deslocar parte da superpopulação da zona sul para as regiões pouco habitadas”, por meio dos conjuntos residenciais (Idem).

Mas se na zona sul o governo procurava expulsar as populações das favelas, na zona rural e subúrbios a ênfase era exatamente oposta. A administração Lacerda não hesitaria em fazer uso de instrumentos urbanísticos para fixar tais populações na região. Daí que o jornal assim explique o papel das desapropriações na “solução” do “problema” das favelas

O Plano de Urbanização [do governo Carlos Lacerda] começou há pouco mais de dois anos. Durante esse período, o governo construiu casas e transferiu favelas. Por outro lado, atento à “ganância” de proprietários de terras, a atual administração intervém sempre que se torna necessário evitar o despejo de centenas de pessoas (Idem).

 

A matéria finalizava mencionando um exemplo que tinha muitas semelhanças com o caso de Gardênia Azul. Tratava-se da Mangueira, “onde, por decreto, foi feita a desapropriação de toda a área, transformando-a de utilidade pública”. O que demonstrava a inclinação do governo Carlos Lacerda em utilizar a desapropriação como uma saída política para determinados conflitos, e em benefício dos moradores – desde que não habitassem na zona sul. O caso da Mangueira indicava também que a desapropriação, seguida de uma política de urbanização poderia ser benéfica para o capital ligado ao setor da construção civil. Nesse sentido, a reportagem acrescentava que na “Mangueira, a primeira etapa do plano de urbanização está pronta, [...] já tem rua calçada, esgoto e água. Agora esta sendo estudado um programa de loteamento de toda a área para construção de casas de alvenaria” (Idem).  

Não parece sem sentido pensar que Carlos Lacerda visse a desapropriação de Gardênia Azul com bons olhos. É possível que ele passasse a ver a localidade como mais uma área a receber moradores despejados de favelas erradicadas na zona sul.

Outro ponto que não pode ser negligenciado no debate sobre essa conjuntura dos anos 1964 e 1965, a parte final do governo Carlos Lacerda, é o grande desgaste que este sofreu pela radicalidade e violência da sua política remocionistaGonçalves lembra ainda que até mesmo as agências financiadoras da política habitacional lacerdista teceriam críticas a sua estratégia de remoção violenta.

Mas é também possível que a desapropriação visada por Lacerda pudesse ser ruim também para os seus humildes moradores. É possível que o governador tivesse planos de expulsar todos dali. E essa possibilidade não era infundada. 

E isso passou a assombrar os moradores de Gardênia Azul nos primeiros meses de 1965.



Continua......

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