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domingo, 19 de julho de 2020


A trajetória militante de Pedro Coutinho Filho
(Parte I)


Leonardo Soares dos Santos

Professor de História
Universidade Federal Fluminense
Instituto de História da Baixada de Jacarepaguá


O Partido Comunista do Brasil nascido em 1922 foi sem dúvida a agremiação política mais marcante da história contemporânea brasileira, pelo menos até a redemocratização iniciada em fins da década de 70. Uma massa expressiva de informações e um vasto conjunto de reflexões a respeito dessa história foram sendo elaboradas desde as primeiras décadas da sua existência – por meio de memórias, relatórios e documentos oficiais – foram enormemente engrossados por pesquisas que passaram a ser realizadas no âmbito de programas universitários brasileiros de graduação e pós-graduação a partir dos anos 1980 e 1990. Antigas ideias e conceitos cristalizados sobre a evolução do partido e sua atuação no cenário político passaram a ser incisivamente problematizadas. Questões como a relação do partido com a democracia, a ideia de Revolução, a Questão Agrária, tudo foi sendo objeto de severo crivo analítico.
Mas curiosamente algumas questões ainda seguem pouco esclarecidas. Embora a historiografia do PCB tenha produzido considerável material sobre alguns de seus principais militantes,[1] os “dirigentes mais destacados” – sobre os quais já havia significativo acervo de memórias e biografias[2] -, pouca atenção foi dada até hoje àqueles militantes menos notórios, seja por não terem ocupado as instâncias mais elevadas da hierarquia partidária seja por terem militado a partir de pontos geográficos mais distantes dos grandes centros políticos (subúrbios, periferia, meio rural, pequenas cidades).
Esses militantes ainda pouco lembrados foram extremamente relevantes para a expansão organizacional do partido nos bairros mais distantes dos centros e nas pequenas cidades e localidades rurais. Sem eles o PCB provavelmente teria ficado circunscrito às áreas centrais onde predominavam as classes médias urbanas.
Um desses militantes foi Pedro Coutinho, militante comunista, nascido no Ceará em 1901, que começou sua trajetória como seguidor de Padre Cícero em Juazeiro e que depois se tornaria o principal quadro do PCB na zona rural da cidade do Rio de Janeiro. Reconstituir essa trajetória de Pedro implica em lançar luz sobre essa também pouca estudada questão, a atuação do PCB em áreas suburbanas e rurais das grandes cidades.
Mesmo a atuação de Pedro tendo sido expressiva na área rural do Rio - o chamado Sertão Carioca - ela deixou poucas marcas na memória social da região. A história construída por esse e outros militantes acabou sendo soterrada por décadas de esquecimento e desprezo consciente sobre esse passado. A exclusão desses personagens da memória local não foi nada casual.
De todos os militantes que atuaram foi de longe o que mais mereceu a atenção dos órgãos de informação da polícia política, do “farto dossier” (sic) produzido sobre ele é que colhemos boa parte das informações que aqui apresentamos.[3] Pedro Coutinho nasceu em 10 de junho de 1901. Exerceria as profissões de professor, engenheiro civil, jornalista e advogado. Ingressou no PCB em 1935, mas só começou o trabalho como militante dois anos depois, possivelmente foi nesse momento que recebeu o codinome “Cícero”. Certamente um codinome que fazia uma irreverente alusão a sua origem cearense e, principalmente, ao fato de ter sido seguidor e correligionário do célebre Padre Cícero. Por sua atuação como comunista esteve preso de 13 de janeiro a 12 de julho de 1937, e de 3 de dezembro de 1937 a 4 de junho de 1938, por ter sido condenado pelo Tribunal de Segurança Nacional à pena de 1 ano de “prisão celular”. Por suas “atividades comunistas” esteve novamente preso entre 25 de março de 1940 a 29 de agosto de 1940.
Mas Pedro Coutinho não era um iniciante da militância política quando foi capturado pela polícia em Jacarepaguá, no momento em que procurava reorganizar as células do PCB na localidade. Muito pelo contrário: Coutinho já tinha trilhado uma substantiva trajetória em seu estado natal, o Ceará. Mas, curiosamente, o combativo militante comunista se iniciou nas lides políticas bem longe dos marcos do “movimento vermelho”.
Ele começou a se notabilizar por ter uma atuação bem próxima ao padre Cícero, o “patriarca de Juazeiro”, da qual Coutinho também era “afilhado” (O Combate, 24/01/1935, p. 2). Nesse período nem mesmo Pedro era capaz de imaginar que em poucos anos ele viria a se tornar um destacado quadro comunista. Ele fazia questão de destacar numa das suas várias entrevistas ao jornal cearense O Combate, que não escondia a sua repulsa por “doutrinas extremistas, dissolventes” (Idem).
A partir de 1929 passaria e viver no Rio de Janeiro, onde se tornou professor da Escola de Direito e Colégio Pedro II (A Noite, 14/10/1930, p. 5). Desde então militava também no Sindicato dos Professores Secundários, não apenas fazendo parte do corpo diretor, mas contribuindo diretamente para a sua criação (Diário de Notícias, 28/04/1931, p. 7).
Mesmo no Rio, Coutinho mantinha ligações com Juazeiro. Junto com o jornalista Nóbrega da Cunha, ele organizaria uma “exposição juazeirense”, tendo como convidado especial Getúlio Vargas e que começou no dia 22 de junho de 1934, e tinha como objetivo divulgar as “artes e indústrias” da cidade cearense (Diário Carioca, 20/06/1934, p. 2). Além de representante de Juazeiro em terras cariocas, Pedro atuava também como porta-voz principal de Padre Cícero na capital da República.
Em meados da década de 1930, Pedro se tornaria correligionário de coronel Felipe Moreira Lima, interventor do estado do Ceará, ligado ao Governo Vargas (O Combate, 24/12/1934, p. 1). Ele volta ao Ceará em 1934, disposto a concorrer a uma vaga de deputado federal pelo Partido Social Democrático, com o apoio da Liga Católica (O Radical, 19/10/1934, p.2).
Assim o jornal cearense O Radical apresentava a sua candidatura:
Engenheiro, professor e jornalista, Pedro Coutinho Filho não é apenas essa inteligência curiosa, avida de abranger os mais vastos e complexos conhecimentos humanos.
Elle personifica, também, um trabalhador incansável e um moço a quem o septicismo da nossa época não embota o sentimento patriótico.
O que elle tem conseguido elle tem conseguido no Rio, em benefício do Ceará e em reivindicação do renome do seu povo, e que melhor se concretisou na Exposição Joazeirense aqui por elle promovida, há mezes, vale bem a compensação que agora lhe offerecerá o eleitorado cearense, enviando-o, como seu mandatario, ao Congresso Nacional. Ninguém melhor do que elle póde exhibir credenciaes de sincero interprete dos sentimentos e das aspirações do povo do Ceará (O Radical, 11/10/1934, p. 2).

Nesse tempo, Pedro passaria a ter grande atuação na região do Cariri. Cumpre destacar que nessa época, o grande adversário do grupo do interventor cel. Lima – do qual Pedro fazia parte – era o grupo de Menezes Pimentel, fortemente apoiado por setores católicos do estado.


Foto do então jovem seguidor de Padre Cícero. Fonte:
O Radical, 11 de outubro de 1934, p. 8.

Pedro Coutinho foi peça importante para a eleição do cel. Lima, nas eleições para governador de 1935.  Ele atuaria exatamente para amealhar votos em Juazeiro e Cariri. E como préstimo do seu engajamento foi nomeado Diretor da Escola para Menores Abandonados e Delinquentes, em Santo Antonio de Pitaguarí em 24 de abril de 1935.  (O Combate, 03/05/1935, p. 3)

Pedro em evento cultural no Rio. Sentado, o terceiro da esquerda para a direita. Fonte: Fon Fon, 30 de novembro de 1929, p. 10.

* * *

Pedro já tinha, portanto, atuação política em sua terra natal, Juazeiro do Norte. Era muito próximo do maior nome da política da cidade e do Ceará, o Padre Cícero.[4] Ele provavelmente se encontrava no estado quando rebentou o Levante Comunista de 1935. Pelas informações que pude levantar a seu respeito, não é possível dizer se ele já fazia parte do PCB.
Tal lacuna sobre sua trajetória, por isso mesmo, torna mais intrigante ainda o fato de reencontrarmos já em 1937 o nome de Pedro Coutinho envolto numa espetaculosa “trama macabra comunista” em plena zona rural da cidade do Rio de Janeiro. Pedro havia ganho notoriedade – claramente negativa – como agente do PCB e membro ativo da também proscrita Aliança Nacional Libertadora (ANL)[5], com a foto de seu rosto estampado em vários jornais de grande circulação do Rio, São Paulo e Minas Gerais. E bem antes da imprensa, toda a polícia política já tinha acumulado robusta informação sobre a sua pessoa e seus respectivos passos.
Assim, em 14 de outubro de 1937 era preso em Itanhandú/MG, enquadrado pelo tribunal de segurança nacional por ações envolvendo a reorganização do PCB e da Aliança Nacional Libertadora em Jacarepaguá, bairro da zona rural carioca.
Sua prisão foi assim noticiada – e festejada – pelo O Imparcial:
A polícia mineira acaba de deitar mãos em um perigoso communista. Trata-se de um extremista envolvido no[s] sangrentos e covardes acontecimentos de novembro de 1935 e que se achava refugiado no interior do Estado.
Há dias, o sr. Orlando Moretzohn, delegado de Ordem Pública, após uma série de investigações, conseguiu localizar, homisiado na cidade de Andrelândia, o perigoso communista Pedro Coutinho Filho, que estava sendo procurado pela polícia do Rio. O delegado de Ordem Pública officiou, então, ao delegado de Andrelandia, pedindo a prisão do elemento vermelho. Immediatamente, a policia de Andrelandia e deteve, remettendo-o para a capital. Mesmo antes da intentona, Pedro Coutinho havia sido preso no Rio, por prégar e credo vermelho. Leccionou em escolas da capital da República e, em 35, envolveu-se nos acontecimentos que consanguentaram o paiz, estando, por isso sendo procurado pela polícia carioca.
O sr. Orlando Moretszohn [...] interrogou o extremista que deverá ser enviado para o Rio [...].

Foi provavelmente nesse período que ele passaria a ter contato com o advogado Heitor Rocha Faria, já que este seria designado defensor de Coutinho no processo movido pelo Estado por seu envolvimento nas tentativas de reorganização do PCB, em decisão do juiz Raul Machado, Heitor seria designado advogado em lugar de Carlos Alberto Dunshee de Abranches.[6] Poucos anos depois, Heitor também atuaria como advogado na defesa de causas judiciais de posseiros da região do Sertão Carioca e Baixada Fluminense. Junto com Pedro se tornariam os principais militantes comunistas a fornecerem serviço jurídicos por meio das associações estruturadas pelo PCB (Ligas, Associações Democráticas, Sindicatos).


O Globo, 15 de Janeiro de 1937, noticiando a tentativa de recriação da ANL por Pedro Coutinho e seus “asseclas”. Coutinho aparece na foto do meio da linha inferior.


Em março do ano seguinte seria levado aos tribunais, para ser mais exato, ao Tribunal de Segurança Nacional, onde o juiz Raul Machado condenou Pedro e seus companheiros a um ano de prisão pelo “crime” de tentar reorganizar a “Alliança Nacional Libertadora” (Correio Paulistano, 30/03/1938, p. 3). Depois de cumprir a pena, Pedro passou pouco fora da cadeia. Em 13 de abril de 1940 era novamente preso com outras dezenas de militantes após uma grande operação da polícia de “Ordem Política e Social” por vários estados do Brasil. Segundo o então chefe de polícia da época, Filinto Müller, tratava-se de uma “trama macabra” dos “agentes vermelhos”, que por meio de ampla ação partindo de São Paulo visavam a reorganização do PCB. Logo depois conseguiria o relaxamento de sua prisão. Mesmo tendo sido acusado de fazer parte desse “plano terrorista”, sendo denunciado ao Tribunal de Segurança Nacional, Pedro aguardava o julgamento em liberdade quando, sob influxos da vitoriosa campanha dos Aliados na II Guerra, irrompe no Brasil um movimento em prol da anistia aos presos políticos do regime varguista.
Esta seria a primeira grande campanha que Pedro se lançaria. Campanha essa, a “Pró-Anistia”, que não apenas garantiria a sua liberdade como a volta do PCB à legalidade. Pedro seria um dos principais nomes da cidade do Rio nessa vitoriosa campanha, tendo se dedicado a coordenar a criação dos comitês de bairro Pró-Anistia. Sim, vitoriosa: em 18 de abril de 1945 era assinado o decreto-lei de anistia pelo presidente Getúlio Vargas.
Mal havia encerrada aquela campanha, Pedro Coutinho já trataria de reconstruir o PCB, agora na legalidade. Após a libertação dos seus antigos líderes, a prioridade passava a ser a reativação da agremiação, que quase foi extinta entre os anos 30 e 40. Com esse objetivo Pedro e outros quadros prontamente se mobilizaram para organizar eventos em “homenagem a Luiz Carlos Prestes” e campanhas de reconstrução de sua imprensa, o jornal Tribuna Popular.
Pensando em termos estratégicos, Pedro se fixaria exatamente na zona rural da cidade, onde adquiriria até um imóvel residencial no bairro da Taquara, no então distrito de Jacarepaguá. O próprio Pedro Coutinho se veria envolvido num litígio de terras na região nos anos 1950.
A região crescia enormemente, tanto em termos de estrutura urbana (ruas, construções, linhas de bonde e ônibus) quanto demograficamente.[7] E até por isso as terras agrícolas nas quais trabalhavam centenas de famílias de pequenos lavradores vinham sofrendo forte pressão pela expansão urbana. Os conflitos por terra se avolumavam desde a década de 40. Ou seja, a região era um palco de tensões e lutas. Um cenário de grande interesse para o PCB que coube a Pedro Coutinho desbravar.



Pedro, o primeiro sentado da esquerda para a direita, num evento Pró-Anistia. Fonte: Tribuna Popular, 20 de maio de 1945, p. 3.


[1] Estes são alguns dos trabalhos dessa nova tendência: MAGALHÃES, Mario. Marighella - o Guerrilheiro Que Incendiou o Mundo. São Paulo: Companhia Das Letras, 2012; REIS, Daniel Aarão. Luís Carlos Prestes: um revolucionário entre dois mundos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. PERICÁS, Luiz Bernardo. Caio Prado Júnior: uma biografia política. São Paulo: Boitempo, 2016.
[2] Podemos citar como alguns dos escritos representativos dessa época: CORRÊA, Hércules. Memórias de um Stalinista. Rio de Janeiro: Opera mostra, 1995. BEZERRA, Gregório. Memórias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980; BRANDÃO, Octavio. Combates e batalhas. São Paulo: Alfa-Ômega, 1978.
[3] APERJ. Fundo DOPS. Série Sindicato: Sociedades Civis, n. 72; Série Informações, n. 34: “memorando nº 69/62”.
[4] Cícero Romão Batista era o nome oficial de Padre Cícero. Nascido na cidade cearense de Crato em 24 de março de 1844 e falecido em Juazeiro do Norte, 20 de julho de 1934 foi uma liderança religiosa e política não só do Nordeste como do Ceará.
Ele era de tendência fortemente conservadora, tanto que era membro do Partido Republicano Conservador (PRC) e profundamente anti-comunista. Numa entrevista de 1931, chegaria afirmar que: "O comunismo foi fundado pelo Demônio. Lucífer é o seu nome e a disseminação de sua doutrina é a guerra do diabo contra Deus. Conheço o comunismo e sei que é diabólico. É a continuação da guerra dos anjos maus contra o Criador e seus filhos." - In: “Na casa de Padre Cícero”, O Povo, 14 fevereiro de 1999.
[5] A Aliança Nacional Libertadora  foi criada na primeira metade da década de1930 e se constituiu numa frente nacionalista e de esquerda integrada por correntes de caráter anti-imperialista, antifascista e anti-integralista (congregando comunistas, alguns tenentes, operários e intelectuais de esquerda). Embora tivesse um caráter pluripartidário, no inicio de 1935 a organização encontrava-se sob domínio do PCB e assim foi até a sua dissolução em julho de 35.
[6] Gazeta de Notícias, 12/11/1937, p. 6.
[7] Para um estudo mais detalhado sobre a urbanização de Jacarepaguá, indico os seguintes trabalhos: FERNANDES, Leonardo Jefferson. O remédio amargo: as obras de saneamento na Baixada Fluminense.    Seropédica, Dissertação de mestrado em Desenvolvimentos  Agrícola/CPDA/Universidade  Federal  Rural  do  Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1998; GALVÃO, Maria do Carmo Corrêa. Lavradores brasileiros e portugueses na Vargem Grande, In: Boletim Carioca de Geografia, Rio de Janeiro, n° 3 e 4, 1957; MUSUMECI, Leonarda. Pequena produção e modernização da Agricultura: o caso dos hortigranjeiros  no  estado  do  Rio  de  Janeiro.  Rio  de  Janeiro:  IPEA/ INPES, 1987; PECHMAN,  Robert  Moses.  Gênese  do  mercado  urbano  de  terras,  a  produção  de moradias e a formação dos subúrbios no Rio de Janeiro. 1985. Rio de Janeiro, Dissertação de       Mestrado       em       Planejamento       Urbano       e Regional/Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1985; SANTOS, Leonardo Soares dos. Um Sertão entre tantas certezas: luta pela terra na zona rural da cidade do Rio de Janeiro. Niterói, Dissertação de mestrado em História/UFF, 2005; SOUZA, João Gonçalves de. “Custos de produção e preços de venda dos produtos agrícolas do Distrito Federal” In: Boletim Carioca de Geografia, Rio de Janeiro, ano IV n°1, 1951; VIANA, Helio. Baixada de Jacarepaguá: Sertão e Zona Sul. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esporte? DGPC, 1992.

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