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domingo, 3 de março de 2024

A História da ocupação de Gardênia Azul (Parte IV)


POR Leonardo Soares dos Santos, 

Professor de História/UFF, Pesquisador do IHBAJA e do IAP

 

Se não havia dúvidas sobre a inclinação do governo Lacerda pela desapropriação, o que ainda gerava preocupação era a modalidade desta: que tipo de desapropriação pretendia Lacerda realizar? E essa não era uma questão menor. Havia duas formas mais comuns, a desapropriação por utilidade pública e por interesse social. Havia (e ainda há) importantes diferenças entre as duas.

Na primeira, o processo de desapropriação não tem caráter de urgência. Já na segunda forma, a execução teria que se efetivada no prazo de dois anos. Havia uma outra diferença, mais crucial ainda: pela primeira, o executante não era obrigado a conservar os antigos moradores em suas posses. Ou seja, se o Estado quisesse, ele poderia despejar a população de Gardênia Azul para a realização de outro empreendimento. Pela segunda forma, o Estado se via obrigado a prover meios que assegurassem a permanência dos seus moradores no território.

Havia o receio de que por existir perto dali a construção do conjunto da Cidade de Deus, e diante das várias evidências de que Gardênia Azul foi estabelecida num terreno impróprio para ocupação (área alagadiça, antes um verdadeiro brejo, sempre sujeita a alagamentos), Lacerda se decidisse pela transferência dos moradores desta última para a localidade vizinha.

Daí que seus habitantes vissem com grande preocupação a declaração da área abarcada por Gardênia Azul como de “utilidade pública” (o que definia a área a ser objeto de desapropriação). Face a esse acontecimento, Angela Fontes, “a Associação passou a lutar em duas frentes: ao nível do privado, pela legalidade do loteamento feito pelo sr. Padilha, e, ao nível público, contra o interesse do estado em preservar a área para ocupação por uma classe de renda alta” (FONTES, 1984: 79-80).

Pouco tempo depois, as pressões fariam o efeito tão ambicionado. Em 10 de março de 1965, quase um ano depois do Golpe Militar, o governador Carlos Lacerda assinou o decreto de desapropriação da área do loteamento do Parque Gardênia Azul. Argumentava o mandatário que a decisão estava “baseada no fato que os proprietários da área desapropriada descumpriram obrigações com os promitentes compradores dos lotes deixando o ‘Parque Gardênia Azul’ sem urbanização e saneamento e sem condições de habitabilidade” (Diário Carioca, 13/03/1965). 


Diário Carioca, 13/03/1965.

 

Ficava ainda a Companhia Metropolitana de Habitação da Guanabara (COHAB) encarregada de executar a desapropriação e “instrução para mandar urbanizar toda a área”. 

A matéria do Diário Carioca ainda informava que “os compradores dos lotes desapropriados deverão assinar convênio com a COHAB para a execução das obras necessárias ao saneamento e à urbanização do Parque”. 

Antonio Silvino, um dos primeiros moradores de Gardênia Azul (ele dizia ter sido o “sexto”), em entrevista concedida a Angela Fontes na primeira metade dos anos 80, rememora o acontecimento:

Em 1965, o governador Carlos Lacerda queria desapropriar para utilidade pública, o que desapropriava a nós também. Nós resistimos. Mantivemos a posição firme em torno da desapropriação por interesse social, direitos de terceiros e adquirentes. Então, em 65, num dos últimos atos de Lacerda, a assinatura do decreto da desapropriação por interesse social. Muito bem! Mas o Lacerda saiu e ficou só assinatura” (FONTES, 1984: 80).

 

 



Correio da Manhã, 13/03/1965.

 

Em parte, as medidas oficializadas por Lacerda seriam cumpridas. Alguns desses compradores conseguiram regularizar a sua situação junto à COHAB. Porém, vários outros seguiriam lutando para regularizar sua situação 

Mas as obras e melhoramentos prometidos pelo executivo estadual demoraram muito a acontecer. Logo, a penúria perdurava. Nos últimos dias de 1965, matéria do Última Hora traçava um triste retrato das condições de vida na região: 

Também moradores do Bairro Gardênia Azul (Jacarepaguá) foram vítimas da conversa fiada de companhia loteadora. Como acontece com a maioria deles, na hora de vender, nhannhanzinhos, com tranquilidade bovina, prometiam: água, luz, gás, esgoto, arruamentos, o diabo. E nada disso foi feito. Claro. Hoje, cerca de cinco mil moradores comem o pão que o diabo amassou, pois estão no mato sem cachorro. Começa que vivem na mais completa escuridão. Não tem água. Nem telefone. Quanto à condução é a mais avacalhada possível: uma só linha de ônibus e cujos carros, no verão, trafegam com gente pendurada até em coma das rodas, pois vão até a Barra da Tijuca. E quem reside no Gardênia Azul que se dane. Que mofe duas e mais horas à espera que algum passageiro desça e dê uma vaguinha muito espremida. 

E mais: se alguém adoece durante a noite e tem necessidade de socorro urgente, pode ir encomendando o enterro ao papa-defunto porque vai morrer por absoluta falta de recursos! 

É incrível mas verdade. 

Por conseguinte, aos diretores do Dep. de Concessões (hoje com nome complicado pra burro), do Serviço de Aguas e de Energia Elétrica, pra fazerem qualquer coisa pelos moradores do Jardim Gardênia, que de conversa fiada já andam cheios, coitadinhos (Última Hora, 13/12/1965, p. 31). 

 

Diário de Notícias, 13/03/1965.

 

Seria já no Governo Negrão de Lima que o desafio de transformas a “assinatura” de Lacerda em algo efetivo, ou seja, a realização de obras públicas e a garantia da propriedade da terra por parte de seus moradores.

 

Referência bibliográfica:

FONTES, Angela Maria Mesquita. Gardênia Azul: o trabalho feminino na reprodução do espaço urbano. Rio de Janeiro: Dissertação de mestrado, UFRJ/COPPE, 1984.



Continua.......