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segunda-feira, 3 de outubro de 2016




 por Leonardo Soares, pesquisador do IHBAJA e professor da UFF e UFRJ



Não era fácil os trabalhadores rurais se organizarem em associações trabalhistas em pleno início da década de 1960. Muito embora as iniciativas do Governo João Goulart favorecessem a criação de novos sindicatos, é preciso que não se esqueça que o ambiente anti-comunista era muito presente no interior dos aparelhos policiais. E tal fato condicionava enormemente o intenso trabalho de vigilância da polícia política sobre essas entidades. A suspeita de que tais entidades não passavam de meros aparelhos a serviço do PCB eram acentuadas.
Entre as poucas informações que temos sobre como funcionavam efetivamente aquelas entidades é bastante emblemático que a mais detalhada seja exatamente um relatório produzido pelos DOPS do então estado da Guanabara, em dois de dezembro de 1963. A ânsia do agente em captar os mínimos detalhes da Associação Rural de Jacarepaguá acaba nos proporcionando informações que infelizmente não encontramos em relação a outras. Por ele ficamos sabendo que a Associação se localizava na estrada dos Bandeirantes, nº 5.045, “a 100 m. adiante do marco Km 5”. O agente da polícia política nota ainda que “suas instalações são toscas. Constam de pequena sala e carteiras e bancos tipo escolar. Algumas gravuras nas paredes com motivos e trajes do campo”. A minúcia no detalhamento é tanto que consta também que existe “um quadro negro onde estava escrito - ‘manina’ e gravuras relativas ao dia das mães”. A sede da associação parecia ser pobre não apenas em mobiliário, como em termos de acervo de livros: “num armário encontra-se um número da revista A Lavoura, papéis não identificados e alguns talões de blocos de recibo amarrados e sem uso”.
Certos detalhes do relato sugerem que as observações do agente não foram realizadas numa única visita à sede. É bem provável que ele participasse de várias reuniões. É o que se deduz quando lemos detalhes sobre a rotina de funcionamento da sede:
- A chave da sede é guardada na residência do filho do tesoureiro localizada nos fundos do terreno. Note-se que esse indivíduo é desconfiado e não responde a perguntas. Tem pequeno defeito nos quadris.

- Das reuniões participam constantemente políticos e, no show de 24, o Ministro do Trabalho enviou representante.

- Tudinho e Arlindo Amador da Silva possuem carteira social. São moradores na rua do Rio do Cascalho, no antigo Km 28 da Estrada dos Bandeirantes e nada de concreto quiseram informar. Demonstraram medo em suas respostas que são sempre repetições do que tem sido divulgado pela Associação.

    O relatório revela também um aspecto da metodologia de investigação do DOPS, e que  reforça a hipótese de que as observações de campo que os agentes efetuavam          demandavam dias – talvez semanas - de trabalho de apuração:
Embora o Sr. Caseiro informe que a Associação tem por finalidade a legalização da situação dos posseiros, frente aos legítimos proprietários, verifica-se que se está promovendo a intensificação de um progresso social visando arregimentar novos socios ao mesmo tempo que novas teorias lhes são apresentada[s].
Cheguei a tal conclusão, não só pelo que ouvi no local como também pela faixa afixada frente a estrada dos Bandeirantes, que convidava aos lavradores para um grande show, enquanto os convites distribuidos entre os associados menciona grande assembléia para a fundação do sindicato.

Além das informações sobre o dia-a-dia da Associação, o relatório concede grande papel à figura do tesoureiro da entidade, o sr. Antonio Ferreira Caseiro. É ele quem “conhece todo o histórico imobiliário do local, descrevendo tudo com muita facilidade.” Conhecimento esse que de certa forma revela a notável importância que nesse tipo de entidade possuía a figura do advogado, que no caso da Associação de Jacarepaguá era o dr. Pedro Coutinho Filho.



Antonio Caseiro na visita da comissão do Sindicato Rural de Jacarepaguá é o segundo da esquerda para a direita. Fundo Última Hora do acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo.



Mas o que mais chama atenção do agente mesmo é a grande capacidade do tesoureiro Antonio Caseiro em efetuar uma espécie de trabalho de conscientização política dos posseiros que recorriam à entidade. Lembra o agente que ele devia “possuir biblioteca” e que lia “tudo sobre o problema de terras e colonos”.
Capacidade essa que se expressava na própria organização da estrutura física da sede.  Aspectos que denotavam o desenvolvimento da Associação como uma espécie de centro de socialização e aprendizado de conceitos e categorias discursivas e de pensamento, voltados para a configuração de uma determinada leitura sobre os processos sociais da região que mais dissesse respeito à experiência de vida dos pequenos lavradores que recorriam à organização. Além das carteiras e cadeiras disposta como num auditório ou sala de aula, o agente do DOPS notava que “na frente da sede existe pequeno palanque”. O mesmo frisava ainda vários “políticos” costumavam comparecer à Associação. O próprio Caseiro era descrito como “amigo influente” de políticos como os deputados pela Guanabara Mourão Filho, Roland Corbusier, Hercules Correia e Oswaldo Pacheco. Rede de amizades que provavelmente muito tinha a ver com o fato de ser “Cabo Eleitoral desde muitos anos, existindo no terreno de sua residência uma placa eleitoral do Dr. João Machado – [do partido] MRT”.
A formação de uma rede de apoiadores não visava apenas às autoridades políticas. Os dirigentes da Associação, até por contar com algum recurso viabilizado pela entidade (ou mesmo por partidos, como o PCB, ou mesmo por alguns daqueles políticos), desenvolvia ações que buscava congregar o maior número possível de pequenos lavradores, dos diversos pontos não só da região de Jacarepaguá, mas de outros do Sertão Carioca. Para a reunião do dia oito de dezembro de 1963, haviam sido “fretados 2 ônibus para transporte grátis dos participantes”. No dia 1º daquele mês, o “ônibus nº de ordem 49.513 da Viação Taquara S.A. conduziu associados para uma reunião em Santíssimo”.
O reconhecimento da grande habilidade de Caseiro em articular seus argumentos leva o investigador do DOPS a destacar em tópicos os temas de maior interesse por parte do português:
Sem grande conhecimento, porém com grande vibração discute:
Criticas ao Governador
Reforma Agrária na China
Necessidade de Reforma Agrária
Inoperância do Poder Legislativo
Ricos ‘demais’ e pobres ‘miseráveis’
Sindicalização
S.U.P.R.A.
A Reação inevitável do camponês

Outro aspecto a se destacar é que bem antes da averiguação da Associação Rural de Jacarepaguá por parte do DOPS, este já tinha uma ficha com informações sobre seus dirigentes. Eles já sabiam, por exemplo, que “Teobaldo ou Theobaldo José Ribeiro, brasileiro, preto, morador na estação de Santíssimo. [...] Cabo eleitoral experimentado e influente entre autoridades” (as mesmas que Caseiro).
Sobre Antonio Caseiro, os agentes já tinha ciência que se tratava de um “português naturalizado, branco, casado com brasileira, pouca instrução, 60 anos aparentes, morador no local 33 anos em casa situada à 200 metros da sede da Associação, onde são guardados todos os documentos e livros do órgão”.

Para infelicidade de Caseiro os agentes não apenas conheciam muito de sua vida e de sua atuação sindical e política. Na visão deles, o luso-brasileiro era subversivo demais para os padrões políticos da região. Tanto assim que mal havia sido desencadeada com o Golpe de 1964, a Ditadura Militar por meio do mesmo DOPS iria ao encalço de Antonio Caseiro, prendendo-o e torturando-o, certamente pelo “programa social” que ele tinha o costume de discutir com tanta “vibração”.