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sexta-feira, 31 de março de 2017

A chacina da Praça Sentinela: uma terrível página da Ditadura em Jacarepaguá






Nos primeiros anos da década de 1970, a nossa Jacarepaguá já não era o bairro bucólico de outrora. Havia até trechos, uma área aqui e acolá onde as atividades rurais persistiam (Jardim Clarice, Curicica, as Vargens, Colônia etc.). Isso tudo, somado a um ambiente ainda bastante tranqüilo em comparação a outras localidades da cidade, emprestavam ao lugar um certo ar bucólico, que atraía muita gente em busca de ambientes mais discretos e sossegados, mais seguros para o desenvolvimento de algumas atividades, para a elaboração de certos planos. Foi possivelmente isso que atraiu tanto os jovens Almir Custódio de Lima, Ranúsia Alves RodriguesVitorino Alves Moitinho e Ramires Maranhão do Vale a se aventurarem em Jacarepaguá. Mas para seu infortúnio, muita gente tinha conhecimento desses atrativos, inclusive agentes que atuavam na brutal repressão desencadeada pela ditadura militar a partir da edição do Ato Institucional Nº5 em 1968. E assim caminharam para um doloroso e bárbaro fim.

Chovia muito na noite do dia 27 de outubro de 1973, “um sábado”, quando bem em frente à Praça Sentinela agentes do DOPS e da Polícia Civil “acharam” um fusca vermelho ainda em chamas. Dentro dele os corpos totalmente carbonizados de 3 homens “sem identidade” e o corpo tombado de uma mulher de “calça cor vinho com bolinhas brancas”, que “aparentava 25 anos”. A única pessoa naquela cena que não teve o corpo queimado, morrendo com três tiros no rosto e um no peito. Segundo reportagem da revista Veja (9/11/73), tudo não passaria de uma briga entre “quadrilhas de traficantes de tóxicos”. E indagava ainda: seria tudo isso “terror”? Algumas testemunhas diziam ter participado da ação contra os “criminosos” de oito a nove carros. Perto das 22:00h, imediatamente após o cerco ao fusca que estava “estacionado” em frente a então escola Pedro Américo, um homem teria saído do Opala e dado início ao tiroteio contra os “dois casais”. Um outro ainda teria se aproximado do carro e jogado nele uma bomba. Os órgãos oficiais corroborariam a versão de uma guerra de quadrilhas. Os jornais da época noticiavam que o DOPS/GB havia instaurado uma ‘investigação policial’, cuja conclusão demoraria bastante, “inclusive pela dificuldade de identificar oficialmente os terroristas cujos corpos foram carbonizados”. Mesmo os “poucos casais de namorados” que estavam no muro da escola para, segundo eles, se “protegerem da chuva (!)”, não conseguiram anotar o número de uma placa sequer.




A jovem Ranúsia Alves Rodrigues, pernambucana e militante do PCBR. Uma das vítimas da chacina da Praça Sentinela.Foto tirada quando da sua prisão no Congresso Clandestino da UNE em 1968.


Décadas depois, a farsa montada pela repressão caia por terra. Tudo havia sido minuciosamente planejado pelo DOPS carioca. Ele sabia desde o início quem eram os quatro. Todos membros do PCBR (Partido Comunista Revolucionário Brasileiro); todos – exceto Vitorino, que era capixaba – eram originários de Pernambuco. O quarteto vinha sendo monitorado desde o dia 08 daquele mês. Ranúsia foi preso na manhã do dia 27. Prestou depoimento e tudo. Por certo, as confissões que prestou não foram dadas em clima amistoso e acolhedor. E mais do que isso: os agentes sabiam de quem se tratava e certamente foi usada como isca para a captura dos seus três companheiros de luta. O documento do I Exército, informação n. 2805, de 29 de outubro de 1973, narra em detalhes como foi feito o cerco. Ele fala de farta documentação encontrada com Ranúsia e da morte dos 4 militantes, dando-lhes os nomes completos. O que não impediu que fossem enterrados como indigentes no cemitério de Ricardo de Albuquerque.

E terminava justificando o recurso á censura e confessando que a cena havia sido toda ela montada após o crime, para produzir a maior confusão possível: “já que há mais onze subversivos cujos passos permanecem vigiados na esperança de registrar o encontro PCBR-ALN, esta Agência achou por bem não permitir a divulgação de nota alguma para o público externo sobre o fato". Pois como Ranúsia teria tentado sair do carro para fugir, se desde a manhã daquela dia ela estava em poder do DOPS? E, numa hipótese absurda, por que ao tentar fugir ela teria corrido em direção ao fusca alvo de intenso tiroteio e até bomba? E por que uma equipe tão mais numerosa e melhor armada efetuou uma ação tão violenta, sabendo-se que com os três homens não foi encontrada uma arma sequer?

E o ex-policial do DOPS Cláudio Guerra encarregou-se, há poucos anos, de dissipar qualquer dúvida. Ele confirmou em depoimento que os quatro integrantes do PCBR foram, sim, chacinados. Sem nenhuma resistência. À sangue frio. E acrescenta que o oficial que matou Ranúsia, “ria enquanto atirava”. Ele “ria alto.”


       Por Leonardo Soares dos Santos, professor de História da UFF e 
       de Direitos Humanos na UFRJ, e pesquisador do IHBAJA.