A trajetória militante de Pedro Coutinho Filho
(Parte I)
Leonardo Soares dos Santos
Professor de História
Universidade Federal Fluminense
Instituto de História da Baixada de
Jacarepaguá
O
Partido Comunista do Brasil nascido em 1922 foi sem dúvida a agremiação
política mais marcante da história contemporânea brasileira, pelo menos até a
redemocratização iniciada em fins da década de 70. Uma massa expressiva de
informações e um vasto conjunto de reflexões a respeito dessa história foram
sendo elaboradas desde as primeiras décadas da sua existência – por meio de
memórias, relatórios e documentos oficiais – foram enormemente engrossados por
pesquisas que passaram a ser realizadas no âmbito de programas universitários
brasileiros de graduação e pós-graduação a partir dos anos 1980 e 1990. Antigas
ideias e conceitos cristalizados sobre a evolução do partido e sua atuação no
cenário político passaram a ser incisivamente problematizadas. Questões como a
relação do partido com a democracia, a ideia de Revolução, a Questão Agrária,
tudo foi sendo objeto de severo crivo analítico.
Mas
curiosamente algumas questões ainda seguem pouco esclarecidas. Embora a
historiografia do PCB tenha produzido considerável material sobre alguns de
seus principais militantes,[1] os
“dirigentes mais destacados” – sobre os quais já havia significativo acervo de
memórias e biografias[2] -,
pouca atenção foi dada até hoje àqueles militantes menos notórios, seja por não
terem ocupado as instâncias mais elevadas da hierarquia partidária seja por
terem militado a partir de pontos geográficos mais distantes dos grandes
centros políticos (subúrbios, periferia, meio rural, pequenas cidades).
Esses
militantes ainda pouco lembrados foram extremamente relevantes para a expansão
organizacional do partido nos bairros mais distantes dos centros e nas pequenas
cidades e localidades rurais. Sem eles o PCB provavelmente teria ficado
circunscrito às áreas centrais onde predominavam as classes médias urbanas.
Um
desses militantes foi Pedro Coutinho, militante comunista, nascido no Ceará em
1901, que começou sua trajetória como seguidor de Padre Cícero em Juazeiro e
que depois se tornaria o principal quadro do PCB na zona rural da cidade do Rio
de Janeiro. Reconstituir essa trajetória de Pedro implica em lançar luz sobre
essa também pouca estudada questão, a atuação do PCB em áreas suburbanas e
rurais das grandes cidades.
Mesmo a
atuação de Pedro tendo sido expressiva na área rural do Rio - o chamado Sertão
Carioca - ela deixou poucas marcas na memória social da região. A história
construída por esse e outros militantes acabou sendo soterrada por décadas de
esquecimento e desprezo consciente sobre esse passado. A exclusão desses
personagens da memória local não foi nada casual.
De todos os militantes que
atuaram foi de longe o que mais mereceu a atenção dos órgãos de informação da
polícia política, do “farto dossier” (sic) produzido sobre ele é que colhemos
boa parte das informações que aqui apresentamos.[3]
Pedro Coutinho nasceu em 10 de junho de 1901. Exerceria as profissões de professor, engenheiro civil, jornalista e advogado. Ingressou no
PCB em 1935, mas só começou o trabalho como militante dois anos depois,
possivelmente foi nesse momento que recebeu o codinome “Cícero”. Certamente um codinome que fazia uma irreverente
alusão a sua origem cearense e, principalmente, ao fato de ter sido seguidor e
correligionário do célebre Padre Cícero. Por sua atuação como comunista esteve preso de 13 de
janeiro a 12 de julho de 1937, e de 3 de dezembro de 1937 a 4 de junho de 1938,
por ter sido condenado pelo Tribunal de Segurança Nacional à pena de 1 ano de
“prisão celular”. Por suas “atividades comunistas” esteve novamente preso entre
25 de março de 1940 a
29 de agosto de 1940.
Mas
Pedro Coutinho não era um iniciante da militância política quando foi capturado
pela polícia em Jacarepaguá, no momento em que procurava reorganizar as células
do PCB na localidade. Muito pelo contrário: Coutinho já tinha trilhado uma
substantiva trajetória em seu estado natal, o Ceará. Mas, curiosamente, o
combativo militante comunista se iniciou nas lides políticas bem longe dos
marcos do “movimento vermelho”.
Ele
começou a se notabilizar por ter uma atuação bem próxima ao padre Cícero, o
“patriarca de Juazeiro”, da qual Coutinho também era “afilhado” (O Combate, 24/01/1935, p. 2). Nesse
período nem mesmo Pedro era capaz de imaginar que em poucos anos ele viria a se
tornar um destacado quadro comunista. Ele fazia questão de destacar numa das
suas várias entrevistas ao jornal cearense O
Combate, que não escondia a sua repulsa por “doutrinas extremistas,
dissolventes” (Idem).
A
partir de 1929 passaria e viver no Rio de Janeiro, onde se tornou professor da Escola
de Direito e Colégio Pedro II (A Noite,
14/10/1930, p. 5). Desde então militava também no Sindicato dos Professores
Secundários, não apenas fazendo parte do corpo diretor, mas contribuindo
diretamente para a sua criação (Diário de
Notícias, 28/04/1931, p. 7).
Mesmo
no Rio, Coutinho mantinha ligações com Juazeiro. Junto com o jornalista Nóbrega
da Cunha, ele organizaria uma “exposição juazeirense”, tendo como convidado
especial Getúlio Vargas e que começou no dia 22 de junho de 1934, e tinha como
objetivo divulgar as “artes e indústrias” da cidade cearense (Diário Carioca, 20/06/1934, p. 2). Além
de representante de Juazeiro em terras cariocas, Pedro atuava também como
porta-voz principal de Padre Cícero na capital da República.
Em
meados da década de 1930, Pedro se tornaria correligionário de coronel Felipe
Moreira Lima, interventor do estado do Ceará, ligado ao Governo Vargas (O Combate, 24/12/1934, p. 1). Ele volta
ao Ceará em 1934, disposto a concorrer a uma vaga de deputado federal pelo
Partido Social Democrático, com o apoio da Liga Católica (O Radical, 19/10/1934, p.2).
Assim o
jornal cearense O Radical apresentava
a sua candidatura:
Engenheiro,
professor e jornalista, Pedro Coutinho Filho não é apenas essa inteligência
curiosa, avida de abranger os mais vastos e complexos conhecimentos humanos.
Elle
personifica, também, um trabalhador incansável e um moço a quem o septicismo da
nossa época não embota o sentimento patriótico.
O que elle
tem conseguido elle tem conseguido no Rio, em benefício do Ceará e em
reivindicação do renome do seu povo, e que melhor se concretisou na Exposição
Joazeirense aqui por elle promovida, há mezes, vale bem a compensação que agora
lhe offerecerá o eleitorado cearense, enviando-o, como seu mandatario, ao
Congresso Nacional. Ninguém melhor do que elle póde exhibir credenciaes de
sincero interprete dos sentimentos e das aspirações do povo do Ceará (O Radical, 11/10/1934, p. 2).
Nesse
tempo, Pedro passaria a ter grande atuação na região do Cariri. Cumpre destacar
que nessa época, o grande adversário do grupo do interventor cel. Lima – do
qual Pedro fazia parte – era o grupo de Menezes Pimentel, fortemente apoiado
por setores católicos do estado.
Foto do então jovem seguidor de Padre Cícero.
Fonte:
O Radical, 11 de outubro de 1934, p. 8.
Pedro
Coutinho foi peça importante para a eleição do cel. Lima, nas eleições para
governador de 1935. Ele atuaria
exatamente para amealhar votos em Juazeiro e Cariri. E como préstimo do seu
engajamento foi nomeado Diretor da Escola para Menores Abandonados e
Delinquentes, em Santo Antonio de Pitaguarí em 24 de abril de 1935. (O Combate,
03/05/1935, p. 3)
Pedro em
evento cultural no Rio. Sentado, o terceiro da esquerda para a direita. Fonte: Fon Fon, 30 de novembro de 1929, p. 10.
* * *
Pedro já tinha, portanto, atuação política em sua
terra natal, Juazeiro do Norte. Era muito próximo do maior nome da política da
cidade e do Ceará, o Padre Cícero.[4]
Ele provavelmente se encontrava no estado quando rebentou o Levante Comunista
de 1935. Pelas informações que pude levantar a seu respeito, não é possível
dizer se ele já fazia parte do PCB.
Tal lacuna sobre sua trajetória, por isso mesmo,
torna mais intrigante ainda o fato de reencontrarmos já em 1937 o nome de Pedro
Coutinho envolto numa espetaculosa “trama macabra comunista” em plena zona
rural da cidade do Rio de Janeiro. Pedro havia ganho notoriedade – claramente
negativa – como agente do PCB e membro ativo da também proscrita Aliança
Nacional Libertadora (ANL)[5],
com a foto de seu rosto estampado em vários jornais de grande circulação do
Rio, São Paulo e Minas Gerais. E bem antes da imprensa, toda a polícia política
já tinha acumulado robusta informação sobre a sua pessoa e seus respectivos
passos.
Assim, em 14 de outubro de 1937 era preso em
Itanhandú/MG, enquadrado pelo tribunal de segurança nacional por ações
envolvendo a reorganização do PCB e da Aliança Nacional Libertadora em Jacarepaguá,
bairro da zona rural carioca.
Sua prisão foi assim noticiada – e festejada – pelo
O Imparcial:
A polícia mineira acaba de deitar mãos em um
perigoso communista. Trata-se de um extremista envolvido no[s] sangrentos e
covardes acontecimentos de novembro de 1935 e que se achava refugiado no
interior do Estado.
Há dias, o sr. Orlando Moretzohn, delegado de Ordem
Pública, após uma série de investigações, conseguiu localizar, homisiado na
cidade de Andrelândia, o perigoso communista Pedro Coutinho Filho, que estava
sendo procurado pela polícia do Rio. O delegado de Ordem Pública officiou,
então, ao delegado de Andrelandia, pedindo a prisão do elemento vermelho.
Immediatamente, a policia de Andrelandia e deteve, remettendo-o para a capital.
Mesmo antes da intentona, Pedro Coutinho havia sido preso no Rio, por prégar e
credo vermelho. Leccionou em escolas da capital da República e, em 35,
envolveu-se nos acontecimentos que consanguentaram o paiz, estando, por isso
sendo procurado pela polícia carioca.
O sr. Orlando Moretszohn [...] interrogou o
extremista que deverá ser enviado para o Rio [...].
Foi provavelmente nesse período que ele passaria a
ter contato com o advogado Heitor Rocha Faria, já que este seria designado
defensor de Coutinho no processo movido pelo Estado por seu envolvimento nas
tentativas de reorganização do PCB, em decisão do juiz Raul Machado, Heitor
seria designado advogado em lugar de Carlos Alberto Dunshee de Abranches.[6]
Poucos anos depois, Heitor também atuaria como advogado na defesa de causas
judiciais de posseiros da região do Sertão Carioca e Baixada Fluminense. Junto
com Pedro se tornariam os principais militantes comunistas a fornecerem serviço
jurídicos por meio das associações estruturadas pelo PCB (Ligas, Associações
Democráticas, Sindicatos).
O Globo, 15 de
Janeiro de 1937, noticiando a tentativa de recriação da ANL por Pedro Coutinho
e seus “asseclas”. Coutinho aparece na foto do meio da linha inferior.
Em março do ano seguinte seria levado aos
tribunais, para ser mais exato, ao Tribunal de Segurança Nacional, onde o juiz
Raul Machado condenou Pedro e seus companheiros a um ano de prisão pelo “crime”
de tentar reorganizar a “Alliança Nacional Libertadora” (Correio Paulistano,
30/03/1938, p. 3). Depois de cumprir a pena, Pedro passou pouco fora da cadeia.
Em 13 de abril de 1940 era novamente preso com outras dezenas de militantes
após uma grande operação da polícia de “Ordem Política e Social” por vários
estados do Brasil. Segundo o então chefe de polícia da época, Filinto Müller,
tratava-se de uma “trama macabra” dos “agentes vermelhos”, que por meio de
ampla ação partindo de São Paulo visavam a reorganização do PCB. Logo depois
conseguiria o relaxamento de sua prisão. Mesmo tendo sido acusado de fazer
parte desse “plano terrorista”, sendo denunciado ao Tribunal de Segurança
Nacional, Pedro aguardava o julgamento em liberdade quando, sob influxos da
vitoriosa campanha dos Aliados na II Guerra, irrompe no Brasil um movimento em
prol da anistia aos presos políticos do regime varguista.
Esta seria a primeira grande campanha que Pedro se
lançaria. Campanha essa, a “Pró-Anistia”, que não apenas garantiria a sua
liberdade como a volta do PCB à legalidade. Pedro seria um dos principais nomes
da cidade do Rio nessa vitoriosa campanha, tendo se dedicado a coordenar a
criação dos comitês de bairro Pró-Anistia. Sim, vitoriosa: em 18 de abril de
1945 era assinado o decreto-lei de anistia pelo presidente Getúlio Vargas.
Mal havia encerrada aquela campanha, Pedro Coutinho
já trataria de reconstruir o PCB, agora na legalidade. Após a libertação dos
seus antigos líderes, a prioridade passava a ser a reativação da agremiação,
que quase foi extinta entre os anos 30 e 40. Com esse objetivo Pedro e outros
quadros prontamente se mobilizaram para organizar eventos em “homenagem a Luiz
Carlos Prestes” e campanhas de reconstrução de sua imprensa, o jornal Tribuna Popular.
Pensando em termos estratégicos, Pedro se fixaria
exatamente na zona rural da cidade, onde adquiriria até um imóvel residencial
no bairro da Taquara, no então distrito de Jacarepaguá. O próprio Pedro
Coutinho se veria envolvido num litígio de terras na região nos anos 1950.
A região crescia enormemente, tanto em termos de
estrutura urbana (ruas, construções, linhas de bonde e ônibus) quanto
demograficamente.[7]
E até por isso as terras agrícolas nas quais trabalhavam centenas de famílias
de pequenos lavradores vinham sofrendo forte pressão pela expansão urbana. Os
conflitos por terra se avolumavam desde a década de 40. Ou seja, a região era
um palco de tensões e lutas. Um cenário de grande interesse para o PCB que coube
a Pedro Coutinho desbravar.
Pedro, o
primeiro sentado da esquerda para a direita, num evento Pró-Anistia. Fonte: Tribuna Popular, 20 de maio de 1945, p.
3.
[1] Estes são alguns dos trabalhos
dessa nova tendência: MAGALHÃES, Mario.
Marighella - o Guerrilheiro Que Incendiou o Mundo. São
Paulo: Companhia Das Letras, 2012; REIS, Daniel Aarão. Luís Carlos Prestes: um revolucionário
entre dois mundos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. PERICÁS, Luiz
Bernardo. Caio Prado Júnior: uma
biografia política. São Paulo: Boitempo, 2016.
[2] Podemos citar como alguns dos
escritos representativos dessa época: CORRÊA, Hércules. Memórias de um Stalinista.
Rio de Janeiro: Opera mostra, 1995. BEZERRA, Gregório. Memórias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980; BRANDÃO,
Octavio. Combates e batalhas. São
Paulo: Alfa-Ômega, 1978.
[3] APERJ. Fundo DOPS. Série
Sindicato: Sociedades Civis, n. 72; Série Informações, n. 34: “memorando nº
69/62”.
[4] Cícero Romão
Batista era o nome oficial de Padre Cícero. Nascido na cidade cearense de Crato
em 24 de março
de 1844 e falecido em Juazeiro do Norte, 20 de julho de 1934 foi uma liderança religiosa e política não só do
Nordeste como do Ceará.
Ele era de tendência fortemente conservadora, tanto
que era membro do Partido Republicano
Conservador (PRC) e profundamente
anti-comunista. Numa entrevista de 1931, chegaria afirmar que: "O
comunismo foi fundado pelo Demônio. Lucífer é o seu nome e a disseminação de
sua doutrina é a guerra do diabo contra Deus. Conheço o comunismo e sei que é
diabólico. É a continuação da guerra dos anjos maus contra o Criador e seus
filhos." - In: “Na casa de Padre Cícero”, O Povo, 14 fevereiro de 1999.
[5] A Aliança Nacional Libertadora
foi criada na primeira metade da década de1930 e se constituiu numa
frente nacionalista e de esquerda integrada por correntes de caráter
anti-imperialista, antifascista e anti-integralista
(congregando comunistas, alguns tenentes, operários e intelectuais de esquerda). Embora tivesse um caráter
pluripartidário, no inicio de 1935 a organização encontrava-se sob domínio do
PCB e assim foi até a sua dissolução em julho de 35.
[6] Gazeta de Notícias, 12/11/1937, p. 6.
[7] Para um estudo
mais detalhado sobre a urbanização de Jacarepaguá, indico os seguintes
trabalhos: FERNANDES,
Leonardo Jefferson. O remédio amargo:
as obras de saneamento na Baixada Fluminense.
Seropédica, Dissertação de mestrado em Desenvolvimentos Agrícola/CPDA/Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1998; GALVÃO, Maria do Carmo Corrêa.
Lavradores brasileiros e portugueses na Vargem Grande, In: Boletim Carioca
de Geografia, Rio de Janeiro, n° 3 e 4, 1957; MUSUMECI, Leonarda.
Pequena produção e modernização da
Agricultura: o caso dos hortigranjeiros
no estado do
Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro:
IPEA/ INPES, 1987; PECHMAN, Robert
Moses. Gênese do mercado
urbano de terras,
a produção de moradias e a formação dos subúrbios no Rio
de Janeiro. 1985. Rio de Janeiro, Dissertação de Mestrado em
Planejamento Urbano e Regional/Universidade Federal do Rio
de Janeiro, 1985; SANTOS, Leonardo
Soares dos. Um Sertão entre tantas
certezas: luta pela terra na zona rural da cidade do Rio de Janeiro.
Niterói, Dissertação de mestrado em História/UFF, 2005; SOUZA, João Gonçalves de. “Custos
de produção e preços de venda dos produtos agrícolas do Distrito Federal” In: Boletim Carioca de Geografia, Rio de
Janeiro, ano IV n°1, 1951; VIANA, Helio. Baixada de Jacarepaguá: Sertão
e Zona Sul. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esporte?
DGPC, 1992.