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sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Jacarepaguá e seus hospitais de isolamento

 

Por Janis Alessandra Pereira Cassilia

Pesquisadora do IHBAJA

Professora de história e mestre em história das ciências e da saúde (COC/Fiocruz) 

 

            No início do século XX, a cidade do Rio de Janeiro, então capital federal passou por uma série de transformações urbanísticas e sociais. Casarões e cortiços, lares dos mais pobres eram demolidos enquanto as chamadas “classes perigosas” se dirigiam para zonas mais afastadas, formando as primeiras favelas e bairros do subúrbio da zona norte. Ao mesmo tempo, a elite começa a direcionar suas residências e palacetes para a zona sul à procura de ares mais sadios e longe das doenças do centro. Procurava-se produzir uma cidade organizada e “civilizada” aos moldes europeus como vitrine de um país modernizado de acordo às ideias da recém proclamada república brasileira.

Longe do burburinho do centro, Jacarepaguá era considerada zona rural do município, o chamado “sertão carioca”, com fazendas, sítios e chácaras que produziam hortaliças, frutíferas e outros gêneros. O acesso era difícil, feito a carroça, charrete ou a pé. Durante muito tempo a estação de trem mais próxima ficava em Cascadura, e a linha do bonde (à tração animal e depois elétrico) seguia da Praça Seca até o Tanque. Grande parte da região, ainda conservava os velhos casarões e fazendas coloniais, muitos deles de antigas famílias nobres e de ordens religiosas.

            No meio de tantas transformações, intelectuais, políticos, médicos e sanitaristas pensavam a cidade do Rio de Janeiro como uma cidade doente que deveria ser medicalizada e higienizada. Enquanto o movimento pela vacina era visto como medida primordial para o combate de doenças, pensava-se que o tratamento de outras doenças deveria ser realizado em isolamento e longe dos centros urbanos. Diversos argumentos eram utilizados para implantar esse modelo de tratamento e assistência, como retirar da cidade a fim de proteger os doentes dos olhares dos habitantes, impedir a circulação de vadios e personagens violentos, além de proporcionar a esses indivíduos um local sadio e em meio à natureza.

            Para isso, a área de Jacarepaguá foi eleita como lugar ideal para a criação de hospitais de isolamento de tratamento de doenças como tuberculose, lepra e doença mental, pois oferecia o clima e a distância necessárias para tal feito. Entre as décadas de 1920 e 1950 quatro hospitais foram criados na Baixada de Jacarepaguá, todos obedecendo os critérios de locais de isolamento e tratamento dessas doenças.

            Construídos na década de 1920, a Colônia Juliano Moreira e o Hospital-Colônia Curupaiti, estavam dentro dos parâmetros do conceito de Hospital-Colônia, um local de grande extensão espacial, longe dos centros urbanos e de difícil acesso, onde além do tratamento houvesse meios de formação de um espaço de sociabilidades dentro do hospital e controlado pela equipe médica. Inaugurados nas décadas de 1940 e 1950, o Hospital de Santa Maria e o Conjunto Sanatorial da Curicica, de atendimento a tuberculosos, estavam inseridos em uma política de erradicação da Tuberculose do Governo Federal. Eram grandes instalações que preconizavam o isolamento como forma de tratamento e de impedir a propagação da doença. É característico destes espaços a internação compulsória e o longo tempo de internação, culminando muitas vezes em grande parte da vida do paciente.

 

Colônia Juliano Moreira (atual Instituto Municipal de Assistência à Saúde Mental Juliano Moreira)


Arcos da Colônia Juliano Moreira. Acervo fotográfico do Museu Bispo do Rosário.

     Em área equivalente ao bairro de Copacabana, a Colônia Juliano Moreira é uma instituição psiquiátrica fundada em 1924 para atendimento de pacientes masculinos e a mais antiga instituição hospitalar de Jacarepaguá. Está situado nas terras da Fazenda do Engenho Novo, desapropriada pelo poder público em 1912. Na época da inauguração foi nomeada como Colônia de Psicopatas- Homens e, a partir da década de 1930, passou a atender pacientes mulheres, idosos e crianças. Se tornou a partir desse momento em um imenso hospital-colônia com diversos tratamentos cirúrgicos (como lobotomia) e eletrochoque e choque químico) e terapêuticas pautadas no trabalho em oficinas e hortaliças. Além disso foi criada uma vila formada por alguns funcionários e suas famílias que deveriam oferecer um “ambiente saudável” para a ressocialização do paciente (tratamento hetero familiar). Em 1946 foi renomeada como Colônia Juliano Moreira.

 Até a década de 1950, possuía 4 núcleos com diversos pavilhões, incluindo um para cirurgias como lobotomia e tratamento por eletrochoque e choque químico, e passou a ser visto como o mais importante hospital psiquiátrico do Brasil. No auge do seu funcionamento, a colônia chegou a atender quase 8 mil internos, possuir 4 núcleos divididos em 2 masculinos e 2 femininos, pavilhões para tuberculosos, pavilhões de isolamento para pacientes perigosos, necrotério, hospital de cirurgias, cinema, rádio, hortas e oficinas mecânicas e de colchões, campo e time de futebol, clube recreativo, igreja, vila de casas para funcionários, casa do diretor e de médicos e biblioteca.

Contudo a superlotação e os cortes no orçamento contribuíram para a depredação e abandono de pavilhões e núcleos. Enquanto isso, a comunidade interna aumentava e ganha feições de bairro integrado ao resto da cidade.

Apesar de sua estrutura, inúmeras eram as histórias de abandono e de dificuldades dos pacientes. Muitos eram para lá encaminhados de outras instituições psiquiátricas, correcionais ou até mesmo da polícia e eram internados de forma compulsória. Nos anos 70 e 80 as denúncias de maus tratos ganharam força e impulsionaram o movimento da reforma psiquiátrica.

Hoje, a área é dividida pela Prefeitura do Rio de Janeiro, a Fundação Oswaldo Cruz e o Exército, e é cortada por uma via expressa (a transolímpica). Algumas unidades de tratamento ainda existem como o Hospital Jurandyr Manfredini e pavilhões dos núcleos Rodrigues Caldas e Franco da Rocha. Outros prédios do antigo hospital sofrem com a descaracterização, invasões e abandono.

 

Hospital Colônia Curupaiti (atual Instituto Estadual de Dermatologia Sanitária – Hospital Curupaiti Dermatologista)

 

"Esta Casa foi a sede de administração até 1937. Hoje o Hospital tem lotação para 400 doentes e é centro de leprologia". Hospital Colônia de Curupaiti, fundado em Jacarepaguá, Distrito Federal, em Outubro de 1928. Acervo Base Arch da Casa de Oswaldo Cruz. Fiocruz. Disponível em: http://basearch.coc.fiocruz.br/

 

Fundado em 1928, em terreno elevado de difícil acesso e de 130 mil m², o Hospital Colônia do Curupaiti, foi um dos primeiros hospitais-colônia para o tratamento da hanseníase em controle do Estado. Se tornou centro de referência no tratamento da doença apesar da internação compulsória realizada no local. Começando com o tratamento de 53 pacientes, com o passar dos anos viu o número de internos e suas instalações aumentarem. Possuía 3 pavilhões e abrigos masculinos, 1 pavilhão e abrigo femininos, cineteatro, rádio, campo de futebol, hospital de cirurgias, prédio de psiquiatria, prédio para tratamento de crianças, além de casas e vilas para os internos, divididos entre solteiros e casais. A vida social dentro da Colônia também era expressiva, dado a existência de muitas festas (como casamentos e aniversários) e de festas religiosas (como carnaval, juninas, entre outros). Além da presença da Igreja Católica, havia centro espírita, centro de umbanda, igrejas evangélicas e centro budista.

A internação compulsória também foi uma característica desta instituição. Assim como a doença mental, a hanseníase (antiga lepra) trazia a seus enfermos o estigma do preconceito, e uma morte social que precedia a morte física. Dentro da instituição, esses pacientes se integravam a vida social lá existente enquanto recebiam tratamento para a hanseníase. Muitos já curados permaneciam no Curupaiti devido a crença no retorno da doença e na dificuldade de retornar a sociedade externa fora dos muros do hospital-colônia.

            Após a década de 1980, quando o isolamento e a internação compulsória deixaram de existir, o espaço passou a sofrer cada vez com o abandono e depredação das suas instalações. Atualmente em parte do terreno foi criada uma comunidade. Os prédios do cineteatro, rádio e outros instrumentos de socialização foram abandonados, com exceção de alguns centros religiosos e do campo de futebol.  Muitos ex-pacientes continuam a residir dentro dos pavilhões com dificuldades de mobilidade (provocadas pela doença ou por velhice) e de reinserção social (como moradia e emprego). Outros constituíram família e residem em casas e vilas dentro do hospital.

 

Hospital Sanatório Santa Maria (atual Hospital Estadual Santa Maria)



Hospital de Santa Maria, em Jacarepaguá, s/d. Acervo pessoal.

            Sua construção teve início em 1939, em terras da antiga Fazenda Santa Maria. Foi inaugurado em 1943, mas só começou a atender pacientes em 1945, com 26 enfermos transferidos do Hospital São Sebastião. Era um hospital destinado ao isolamento e tratamento de tuberculosos, com capacidade de 546 leitos, e fazia parte do projeto de construção de diversos sanatórios no Brasil, a cargo do Departamento Nacional de Tuberculose (DNT), do Ministério da Educação e Saúde (MES).

            Localizado em terreno elevado de difícil acesso, recebia pacientes transferidos de diversas instituições e a partir dos anos de 1960 passou a estar sob a responsabilidade do governo estadual e a prestar atendimento clínico e cirúrgico. Em meados dos anos de 1970, as cirurgias foram interrompidas, dedicando-se à internação e isolamento dos pacientes tísicos.

            Com a passagem do tempo formou-se uma comunidade ao redor do Hospital. Diversas enfermarias e pavilhões foram desativados e abandonados. Nos últimos anos, os conflitos entre o tráfico de drogas e a milícia que disputam território na região, atingiram o hospital que foi fechado pelo poder público estadual em 2019.

 

Conjunto Sanatorial de Curicica (atual Hospital Municipal Raphael de Paula Souza)



Vista aérea das obras do Sanatório de Curicica”, fotografia com data de 25 de março de 1950. Fonte: Base Arch da Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz. Disponível em: http://basearch.coc.fiocruz.br/

             Inaugurado em 1951 e funcionando a partir de 1952, o Conjunto Sanatorial de Curicica foi destinado a internação de tísicos e do tratamento da tuberculose. O hospital foi projetado pelo arquiteto Sérgio Bernades e é um exemplo arquitetônico único entre os hospitais de isolamento de Jacarepaguá. A criação do hospital fazia parte do programa federal Campanha Nacional contra a da Tuberculose (CNCT), do Serviço Nacional de Tuberculose (SNT) que propunha a erradicação da doença no Brasil em até 10 anos. O tratamento para a tuberculose foi criado em 1946 e, portanto, acreditava-se que o isolamento dos doentes em Jacarepaguá, proporcionava solução para a disseminação e a cura através do tratamento pelo antibiótico estreptomicina.

            O Conjunto Sanatorial Curicica possuía capacidade para 1.500 leitos, era composto biblioteca, enfermarias, laboratório, centro cirúrgico, maternidade, biblioteca, administração, necrotério, alojamento para médicos e diretor, centro médico, biotério, capela, estação de tratamento de esgoto, subestação de luz e força, entre outros prédios típicos de hospitais de isolamento e que também existiam na Colônia e no Curupaiti.        

            A partir da década de 1980, o hospital foi dividido em duas partes. Uma administrada pelo município do Rio de Janeiro, que compunha o hospital, os serviços ambulatoriais e a administração, e outra composta pela Casa do Diretor e alojamentos que passaram a compor um centro de pesquisa, Centro de Referência Hélio Fraga, da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), Fiocruz. A parte sob responsabilidade do município encontra-se em estado de má conservação e completo abandono, com pavilhões, enfermarias fechadas, inclusive o centro cirúrgico.  Parte do terreno original do hospital sofreu com invasões e a criação de uma comunidade. Além disso, foi construída uma creche municipal e pavilhões foram demolidos pelo poder público alegando-se perigo de desabamento.