como criar um site

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Terras e Tramas do Itanhangá

Terras e Tramas do Itanhangá


Por Leonardo Santos

Prof. de História, UFF/Campos

Pesquisador do IHBAJA

 

Quem quer que procurasse notícias sobre a Barra da Tijuca e Itanhangá entre a segunda metade dos anos 1930 e por toda a década de 1940, daria de cara com alguma notícia sobre algum evento celebrado no Itanhangá Golf Club. Fosse um jantar, almoço ou festa, ou uma competição de golfe, era certa a presença nele de “muitas pessoas de relevo na sociedade carioca” – como gostavam de frisar os jornais da época.

O lançamento da pedra fundamental do Itanhangá Golf Club contou com a presença de Getúlio Vargas. Ele considerava o clube o seu favorito para a prática do golfe. Na solenidade citada, ocorrida em 1936, além do “opíparo churrasco” servido aos convivas, o que chama atenção é a presença de altos oficiais das forças armadas, embaixadores, vereadores e membros destacados da burguesia carioca. Eram figuras que com seu prestígio contribuíam para fortalecer a posição do clube como espaço de afirmação do poder da elite carioca (A Nação, 18/09/1936, p. 10).



O Itanhangá Country Club era o favorito de Vargas para a prática do golfe. Era assíduo frequentador. Quase um garoto-propaganda informal da entidade. Fonte: A Noite, 22/04/1941, p. 6.


Porém, essa áurea de poder e ostentação sofreria sério abalo alguns anos depois. Acontecimentos associados ao clube apareceriam em manchetes situadas não nas colunas sociais, mas nas páginas que retratavam questões policiais.

 “Lesado numa compra de terrenos o presidente do Itanhangá Golf Club”. Com essa manchete o Gazeta de Notícias publicava uma matéria que dava conta da queixa-crime apresentada por Antonio Ferraz ao delegado Dulcídio Gonçalves, da 1ª Delegacia Auxiliar. Segundo aquele, o cidadão Gustavo de Carvalho vendeu a ele um terreno cuja planta indicava como sendo de dimensão de 4 mil metros quadrados, recebendo por ele a quantia de 4 mil contos. Ferraz queria com isso garantir terras para implantar os campos de golfe de seu clube.

Contudo, “ao entrar na posse das terras”, o senhor Ferraz teve a desagradável constatação de que as terras que efetivamente adquiriu mediam apenas 1.327.000 metros, “faltando portando 2.673.000” (Gazeta de Notícias, 10/05/1939, p. 9).

Um dia antes, a reportagem do jornal A Noite era mais incisiva e detalhada. Sem nenhuma cerimônia já tacharia Carvalho de “estelionatário”, que teria usado “de um meio hábil para iludir os compradores de tais terrenos”. O jornal afirmava que tudo que havia sido declarado na transação sobre o terreno “era fantástico, ou melhor, os terrenos existiam, mas pertenciam a terceiros”.

A venda teria sido consumada em 16 de maio de 1933. A Noite acrescentava detalhes ausentes em outros jornais. Segundo ela, Carvalho dizia ser de sua propriedade “três milhões e cento e vinte e sete mil metros quadrados”, e para chegar a 4 mil (que foi o que foi vendido), ele se obrigava a “elevar essa área com a aquisição de outras na sua vizinhança a quatro milhões de metros quadrados (Ele prometeu vender terras que no ato da transação ainda não era dele? Como assim?).

Ainda segundo jornal, a proposta foi aceita por Ferraz, representando o Itanhangá Golf Club, por “oitocentos contos de réis, pelos quatro milhões de metros”.

Outro detalhe importantíssimo: a matéria detalhava os supostos limites da propriedade.

Os terrenos estavam situados entre a Lagoa do Camorim, o rio Cachoeira, a Pedra de Itanhangá e as vertentes da Serra da Taquara, sítios conhecidos sob a denominação de Picapau, Qubra-Cangalhas e Pequeno, compreendendo extensa área que vai desde o alto da Tijuca até Jacarepaguá.

 

Porém, a diferença entre a real extensão do terreno e que havia sido declarado de “má fé” por Gustavo de Carvalho era enorme. O que configurava, no dizer do A Noite, o “crime de estelionato”. Além disso, outro detalhe que complicava ainda mais a situação de Carvalho: ele “mandara há tempos, antes de efetuar a venda, levantar uma planta daqueles terrenos, planta essa que foi levantada pelo Dr. Gastão de Carvalho”. Em tal planta, seria indicado a existência “de um milhão e poucos metros” sob propriedade efetiva por Carvalho. Daí, continua o jornal, que “para melhor iludir os compradores, Gustavo não lhes mostrou nunca essa planta, apresentando entretanto uma outra, que demarcava os terrenos dentro de quatro milhões” (A Noite, 09/05/1939, p. 1).

Dois dias depois das primeiras publicações sobre o escândalo, Gustavo Carvalho apresentaria a sua versão da história. O jornal Diário de Notícias seria um dos jornais que publicaria a sua carta. Mas não sem antes publicar uma nota tentando desfazer a confusão que o público estava fazendo com o nome de Gustavo de Carvalho, que estava sendo associado a outro Gustavo de Carvalho (Gustavo Adolpho de Carvalho”, presidente do C.R. do Flamengo, e, declara José Brigido – o autor da nota, “pessoa de reconhecida honorabilidade” homônimo.

Feito o esclarecimento, a edição de 11 de maio publicaria a carta de Carvalho, na qual o missivista começaria negando o crime de estelionato. alegava que a transação fora feita “com a maior lisura e boa fé”. Sustentava que a queixa havia sido apresentada unicamente por Ferraz, de maneira individual, sem qualquer anuência do Itanhangá Golf Club.

Um dos pontos mais sensíveis da sua argumentação reside no fato, alegado por ele, de que a negociação se deu com base em “escripturas de promessa de compra e venda” que Carvalho teria lavrado com proprietário de sítios (Quebra-Cangalhas, Pequeno, Pica-Páo e Itanhangá), cujas compras não tinham sido efetivadas, mas que, ao mesmo tempo, havia o compromisso que de que dentro de “um prazo bastante longo” as escrituras definitivas seriam lavradas – e tudo isso com o conhecimento  dos diretores da “entidade sportiva”, segundo ele. O “club”, prossegue, sabia que ele “não possuía ainda todo o numerário suficiente para a transacção”, assim como eles estariam informados que “alguns terrenos se achavam, em parte, invadidos por vizinhos e intrusos”.

No meio da transação, os diretores do clube teriam proposto “a rescisão da promessa de compra e venda que haviam feito commigo”. Segundo Carvalho, tais diretores teriam decidido que seria melhor que o “Club” tratasse diretamente com os proprietários dos sítios para adquiri-los. Diante disso, Carvalho teria rescindido as promessas de compra e venda que tinha com estes proprietários. Que eles se acertassem entre si; “Sahia eu, assim, do negócio”. E insistia que os “diretores” tinham conhecimento de tudo:

Para essas transacções, “todos os títulos de propriedade foram entregues aos ilustres advogados do club, os quais emitiram previamente parecer sobre a perfeita regularidade dos mesmos”.

 

Carvalho reconhecia assim que nem todas as terras eram de sua propriedade, mas justificava a suposta existência de promessas de venda de alguns sítios para incluí-los no conjunto vendido ao clube. Terrenos comprados e terrenos a serem comprados, na sua lógica, podiam todos serem incluídos na planta que ele apresentou junto ao anúncio da venda.

Ao sair do negócio, o clube que se virasse para efetivar aquelas promessas – esse era o raciocínio de Carvalho. Inclusive a demarcação. Seria de responsabilidade daquele também.

Ora, nada se alega contra a autenticidade desses títulos. Existe, portanto, por eles, a área de 4.000.000 de metros quadrados, vendida ao “Itanhangá Golf Club”. Si ela se encontra, em parte, invadida por vizinhos ou intrusos, não me cabe a culpa. Ao “Itanhangá”, com a rescisão da promessa de compra e venda que comigo fizera, ficou o encargo de demarcar as áreas que adquirira diretamente dos proprietários.

 

Com o passar das semanas, o imbróglio foi perdendo interesse. Mas ele revelou problemas que se ampliariam pelas décadas seguintes. Um deles tinha a ver com a brutal valorização imobiliária da região, de maneira um tanto desordenada, que ia atraindo cada vez mais a cobiça de inúmeros agentes, muitos deles ricos. E o que era mais grave: toda essa expansão estava se realizando numa região onde pairava enorme dúvidas sobre a titularidade daquelas terras. Dúvidas que não eram novas. Já havia vários debates na imprensa e nos legislativos municipal e federal sobre suspeitas de grilagem de terras envolvendo o Banco de Crédito Móvel na Barra da Tijuca e Jacarepaguá desde pelo menos fins do século XIX. E esse não era um caso único. Em várias partes da zona rural da cidade pipocavam disputas de terras que onde os dois lados da contenda juravam ter o título de propriedade verdadeiro do lugar. Ou seja, alguém ali estava mentindo. Pelo menos um deles estava querendo se apropriar ilegalmente de uma parcela que não teria direito. Mas a questão podia ser mais grave: era possível que nenhum dos dois pudesse ter razão. Podia se tratar de uma tentativa de ambos de açambarcar terras que poderia pertencem ao poder público ou a um terceiro ente privado. Nenhuma hipótese podia ser descartada, pois a regularização fundiária da região era quase letra morta. Valia ali a lei do mais forte.

Mas tudo passou a se complicar ainda mais quando as terras das grandes fazendas da região foram sendo retalhadas entre as últimas décadas do XIX e primeiras do XX. E com a avultada valorização delas, mais e mais agentes querendo lucrar com o loteamento daquelas terras foram se interessando pela região.

Foi nesse contexto que o Itanhangá Gold Club foi ali instalado. Além da sua fixação ali ser indicativo da valorização imobiliária, há que destacar que ele simbolizava um plano mais abrangente de direcionar a expansão urbana e imobiliária da região (em especial Barra da Tijuca, Itanhangá e Jacarepaguá) em favor das classes média e alta da sociedade carioca.

É bastante sugestivo que no relato sobre o lançamento da pedra fundamental do clube, ocorrido em 13 de setembro de 1936, e que contou com a presença do então presidente da República Getúlio Vargas, o autor destacasse a presença de “elevado numero de senhoras e senhoritas da nossa melhor sociedade” (A Noite, 14/09/1936).

Ao mesmo tempo, se a inauguração do clube era representativa da expansão imobiliária da região, o estabelecimento do Itanhangá ali agia decisivamente como fator impulsionador da valorização do lugar. Se ele só foi construído ali porque os poderes públicos construíram estradas como a do Joá, Furnas e do Alto da Boa Vista, que permitiam aos ricaços da cidade e suas famílias acessassem o Itanhangá Golf Club. E que também só foi possível porque o Governo Federal tenha realizado uma série de obras de saneamento daquela região da Baixada de Jacarepaguá por meio do DNOS, tornando-o saneado e salubre. Foi por conta também do Itanhangá Golf Club que muitos agentes do mercado imobiliário carioca passaram a pensar naquela região como uma oportunidade verdadeiramente auspiciosa de investimento. Foi a partir exatamente dos anos 40 que grandes loteamentos passaram a ser lançados naquele ponto do território da Baixada de Jacarepaguá. E emblemático que os anúncios destacassem a proximidade em relação ao clube.

 


Fonte: Diário de Notícias, 25/12/19, 2ª Seção, p. 7.



Fonte: Correio da Manhã, 4/11/1949, p. 7. 


Fonte: Correio da Manhã, 14/031954, 3º Caderno, Parte 1, p. 16


Muito mais curioso é que as próprias obras governamentais buscavam justificar a sua importância se respaldando na existência do Itanhangá Golf na região.

A reportagem publicada pelo Radical em 1942 é bastante simbólica dessa perspectiva. Em texto evidentemente laudatório – que mais parecia uma peça de propaganda imobiliária – sobre “as obras admiráveis de nossa capital”, que enriqueciam a cidade, onde não havia “nada que a faça paralisar no seu ritmo de progresso, silencioso e dinâmico”, o autor destacava como uma das principais obras a “pavimentação de um grande trecho, que vai justamente do Alto da Boa Vista até a estrada da Barra, contornando o Joá e passando ao lado do Itanhangá Golf Club, fazendo entroncamento com a Estrada do Pica-Pau, que vai sair em Jacarepaguá” (O Radical, 30/06/1942, p. 5).  

O autor da “reportagem” associava tais obras a um plano do governo em promover um plano de expansão da ocupação da Baixada de Jacarepaguá (que fazia parte do então chamado Sertão Carioca, zona rural da cidade do Rio). Num trecho sobre as potencialidades dessa intervenção, vemos destacado a intervenção a partir do Alto da Boa Vista rumo a Jacarepaguá e Barra da Tijuca:

Pára e contempla a maravilha da Natureza no derrame de tantas paisagens encantadoras. Observa no entanto que o homem procurou dela aproximar-se fazendo no que lhe competia obra digna. É que se sente em cada sinuosidade aberta, em cada curva fechada, em cada refugio, canteiro, pérgolas, jardins, a mão do artífice, o fino gosto do traçado e dos detalhes numa grandiosa avenida – a Avenida Tijuca. Percorremo-la.

E ela, pela sua categoria, uma estrada de montanha, de acesso comodo e desenvolvimento adequado para ganhar altura, inscrita habilmente nos acidentes topográficos sem quebrar a beleza natural do ambiente.

Sobre o ponto de vista de sua utilidade, vemo-la como uma super-estrada para circulação rápida de veículos, dotada de condições técnica excelentes, grande visibilidade, raios de curva e rampas máximas admissíveis pelas mais recentes especificações rodoviárias mundiais em vigor.

Por excelência ela se torna uma estrada de turismo como raríssimas, cruzando e dominando cenários e panoramas deslumbrantes e maravilhosos.

 

Contudo, a questão que se impunha – e que a imprensa em grande medida ignorava – era de se saber para quem esses “panoramas deslumbrantes” e essas “paisagens encantadoras” estavam sendo minuciosamente esquadrinhados e incorporados ao sistema urbano da cidade?

Para a população pobre e trabalhadora é que não estava sendo feito tudo isso.

Mais de um ano depois, matéria do Gazeta de Notícias (25/12/1943, p. 4) seguia explorando o Itanhangá como forma de enaltecer obras que eram do governo para a região. Mais do que isso, o teor do texto (na verdade, peça de propaganda) deixava claro que mais do que vias de comunicação, o governo faria o máximo para dotar a região dos melhores serviços urbanos possíveis:

A estrada Pica-Pau-Muzema, fazendo ligação entre Itanhangá Golf Club e a Avenida Geremário Dantas, é uma realização que trouxe grandes benefícios às populações servidas por aquela importante via de comunicação. Contando 13 quilômetros de extensão, nos quais tem a largura de 6,50 ms., a sua pavimentação é das mais modernas. As sargetas(sic) para escoamento das águas pluviais teem(sic) 0,50 ms, e a faixa pavimentada a macadame betuminoso, depois de toda concluída terá 72.000 ms², dos quais já estão concluídos mais de 35.000 ms².  

Em toda a extensão da estrada foram reconstruídos quatro pontilhões em sentido transversal, sendo três de 3 metros cada um e um de 5 metros de vão. Também foram reconstruídas totalmente duas muralhas situadas às margens da lagoa de Jacarepaguá, uma com a extensão de 432 metros por 1,50 de altura e outra medindo 164 metros.

 

O terreno das obras era minuciosamente preparado. Não para receber loteamentos populares ou melhorar a vida da gente humilde que ali já morava há décadas. A Barra da Tijuca e a área circundante (aí incluído o bairro do Itanhangá) estava sendo pensada para receber a instalação de “hotéis, cassinos, balneários e palacetes”, como clamava a revista Beira-Mar em 1927.

Este era o caráter das obras planejadas para a região. Numa imagem muita utilizada pelos setores da imprensa que apoiavam vivamente os interesses do mercado imobiliário, a expansão urbana que começa a ganhar vulto nessa parte do Sertão Carioca a partir dos anos 1940 será frequentemente associada a uma versão carioca da “Marcha para o Oeste”, implementada desde os tempos do Governo Getúlio Vargas. Só que no caso carioca, o progresso era pensado incorporando aspectos estéticos e paisagísticos, daí que a região também fosse vista para fins turísticos também: “O aproveitamento de seus recursos naturaes cedo o transformaria em o ‘Eldorado Carioca’!” (Beira-Mar, 15/11/1927, p. 17)

Associado a essas intervenções urbanísticas havia o claro propósito de favorecer a ocupação do território, e o consequente usufruto dos serviços e estruturas urbanas instaladas, em favor dos grupos sociais de maior poder aquisitivo da cidade.

Contudo, por mais que plano para Itanhangá e Barra da Tijuca fosse aquele, a realidade foi apresentando uma trilha bem mais tortuosa, pontilhada ainda por várias encruzilhadas. Se os ricaços com o beneplácito dos poderes públicos tinham um projeto para a região, havia outros grupos com distintos planos e vivências. É  o que  mostrarão as disputas e tensões que vão se acirrar a partir dos anos 1950.


  

Continue lendo →