Terras e Tramas do Itanhangá
Por Leonardo
Santos
Prof. de História,
UFF/Campos
Pesquisador do
IHBAJA
Quem quer que procurasse
notícias sobre a Barra da Tijuca e Itanhangá entre a segunda metade dos anos
1930 e por toda a década de 1940, daria de cara com alguma notícia sobre algum
evento celebrado no Itanhangá Golf Club. Fosse um jantar, almoço ou
festa, ou uma competição de golfe, era certa a presença nele de “muitas pessoas
de relevo na sociedade carioca” – como gostavam de frisar os jornais da época.
O lançamento da pedra
fundamental do Itanhangá Golf Club contou com a presença de Getúlio
Vargas. Ele considerava o clube o seu favorito para a prática do
golfe. Na solenidade citada, ocorrida em 1936, além do “opíparo churrasco”
servido aos convivas, o que chama atenção é a presença de altos oficiais das
forças armadas, embaixadores, vereadores e membros destacados da burguesia
carioca. Eram figuras que com seu prestígio contribuíam para fortalecer a posição
do clube como espaço de afirmação do poder da elite carioca (A Nação,
18/09/1936, p. 10).
O Itanhangá Country Club era o favorito de Vargas para a prática do golfe. Era assíduo frequentador. Quase um garoto-propaganda informal da entidade. Fonte: A Noite, 22/04/1941, p. 6.
Porém, essa áurea de
poder e ostentação sofreria sério abalo alguns anos depois. Acontecimentos
associados ao clube apareceriam em manchetes situadas não nas colunas sociais,
mas nas páginas que retratavam questões policiais.
“Lesado numa compra de terrenos o presidente
do Itanhangá Golf Club”. Com essa manchete o Gazeta de Notícias
publicava uma matéria que dava conta da queixa-crime apresentada por Antonio
Ferraz ao delegado Dulcídio Gonçalves, da 1ª Delegacia Auxiliar. Segundo
aquele, o cidadão Gustavo de Carvalho vendeu a ele um terreno cuja planta
indicava como sendo de dimensão de 4 mil metros quadrados, recebendo por ele a
quantia de 4 mil contos. Ferraz queria com isso garantir terras para implantar
os campos de golfe de seu clube.
Contudo, “ao entrar na
posse das terras”, o senhor Ferraz teve a desagradável constatação de que as
terras que efetivamente adquiriu mediam apenas 1.327.000 metros, “faltando
portando 2.673.000” (Gazeta de Notícias, 10/05/1939, p. 9).
Um dia antes, a
reportagem do jornal A Noite era mais incisiva e detalhada. Sem nenhuma
cerimônia já tacharia Carvalho de “estelionatário”, que teria usado “de um meio
hábil para iludir os compradores de tais terrenos”. O jornal afirmava que tudo
que havia sido declarado na transação sobre o terreno “era fantástico, ou
melhor, os terrenos existiam, mas pertenciam a terceiros”.
A venda teria sido
consumada em 16 de maio de 1933. A Noite acrescentava detalhes ausentes em
outros jornais. Segundo ela, Carvalho dizia ser de sua propriedade “três
milhões e cento e vinte e sete mil metros quadrados”, e para chegar a 4 mil
(que foi o que foi vendido), ele se obrigava a “elevar essa área com a
aquisição de outras na sua vizinhança a quatro milhões de metros quadrados (Ele
prometeu vender terras que no ato da transação ainda não era dele? Como
assim?).
Ainda segundo jornal, a
proposta foi aceita por Ferraz, representando o Itanhangá Golf Club, por
“oitocentos contos de réis, pelos quatro milhões de metros”.
Outro detalhe
importantíssimo: a matéria detalhava os supostos limites da propriedade.
Os
terrenos estavam situados entre a Lagoa do Camorim, o rio Cachoeira, a Pedra de
Itanhangá e as vertentes da Serra da Taquara, sítios conhecidos sob a
denominação de Picapau, Qubra-Cangalhas e Pequeno, compreendendo extensa área
que vai desde o alto da Tijuca até Jacarepaguá.
Porém, a diferença entre
a real extensão do terreno e que havia sido declarado de “má fé” por Gustavo de
Carvalho era enorme. O que configurava, no dizer do A Noite, o “crime de
estelionato”. Além disso, outro detalhe que complicava ainda mais a situação de
Carvalho: ele “mandara há tempos, antes de efetuar a venda, levantar uma planta
daqueles terrenos, planta essa que foi levantada pelo Dr. Gastão de Carvalho”.
Em tal planta, seria indicado a existência “de um milhão e poucos metros” sob
propriedade efetiva por Carvalho. Daí, continua o jornal, que “para melhor
iludir os compradores, Gustavo não lhes mostrou nunca essa planta, apresentando
entretanto uma outra, que demarcava os terrenos dentro de quatro milhões” (A
Noite, 09/05/1939, p. 1).
Dois dias depois das
primeiras publicações sobre o escândalo, Gustavo Carvalho apresentaria a sua
versão da história. O jornal Diário de Notícias seria um dos jornais que
publicaria a sua carta. Mas não sem antes publicar uma nota tentando desfazer a
confusão que o público estava fazendo com o nome de Gustavo de Carvalho, que
estava sendo associado a outro Gustavo de Carvalho (Gustavo Adolpho de
Carvalho”, presidente do C.R. do Flamengo, e, declara José Brigido – o autor da
nota, “pessoa de reconhecida honorabilidade” homônimo.
Feito o esclarecimento, a
edição de 11 de maio publicaria a carta de Carvalho, na qual o missivista
começaria negando o crime de estelionato. alegava que a transação fora feita
“com a maior lisura e boa fé”. Sustentava que a queixa havia sido apresentada
unicamente por Ferraz, de maneira individual, sem qualquer anuência do
Itanhangá Golf Club.
Um dos pontos mais
sensíveis da sua argumentação reside no fato, alegado por ele, de que a
negociação se deu com base em “escripturas de promessa de compra e venda” que
Carvalho teria lavrado com proprietário de sítios (Quebra-Cangalhas, Pequeno,
Pica-Páo e Itanhangá), cujas compras não tinham sido efetivadas, mas que, ao
mesmo tempo, havia o compromisso que de que dentro de “um prazo bastante longo”
as escrituras definitivas seriam lavradas – e tudo isso com o conhecimento dos diretores da “entidade sportiva”, segundo
ele. O “club”, prossegue, sabia que ele “não possuía ainda todo o numerário
suficiente para a transacção”, assim como eles estariam informados que “alguns
terrenos se achavam, em parte, invadidos por vizinhos e intrusos”.
No meio da transação, os
diretores do clube teriam proposto “a rescisão da promessa de compra e venda
que haviam feito commigo”. Segundo Carvalho, tais diretores teriam decidido que
seria melhor que o “Club” tratasse diretamente com os proprietários dos sítios
para adquiri-los. Diante disso, Carvalho teria rescindido as promessas de
compra e venda que tinha com estes proprietários. Que eles se acertassem entre
si; “Sahia eu, assim, do negócio”. E insistia que os “diretores” tinham
conhecimento de tudo:
Para
essas transacções, “todos os títulos de propriedade foram entregues aos
ilustres advogados do club, os quais emitiram previamente parecer sobre a
perfeita regularidade dos mesmos”.
Carvalho
reconhecia assim que nem todas as terras eram de sua propriedade, mas
justificava a suposta existência de promessas de venda de alguns sítios para
incluí-los no conjunto vendido ao clube. Terrenos comprados e terrenos a serem
comprados, na sua lógica, podiam todos serem incluídos na planta que ele
apresentou junto ao anúncio da venda.
Ao sair do
negócio, o clube que se virasse para efetivar aquelas promessas – esse era o
raciocínio de Carvalho. Inclusive a demarcação. Seria de responsabilidade daquele
também.
Ora, nada se alega
contra a autenticidade desses títulos. Existe, portanto, por eles, a área de
4.000.000 de metros quadrados, vendida ao “Itanhangá Golf Club”. Si ela se
encontra, em parte, invadida por vizinhos ou intrusos, não me cabe a culpa. Ao “Itanhangá”,
com a rescisão da promessa de compra e venda que comigo fizera, ficou o encargo
de demarcar as áreas que adquirira diretamente dos proprietários.
Com o passar das
semanas, o imbróglio foi perdendo interesse. Mas ele revelou problemas que se
ampliariam pelas décadas seguintes. Um deles tinha a ver com a brutal
valorização imobiliária da região, de maneira um tanto desordenada, que ia
atraindo cada vez mais a cobiça de inúmeros agentes, muitos deles ricos. E o
que era mais grave: toda essa expansão estava se realizando numa região onde
pairava enorme dúvidas sobre a titularidade daquelas terras. Dúvidas que não
eram novas. Já havia vários debates na imprensa e nos legislativos municipal e
federal sobre suspeitas de grilagem de terras envolvendo o Banco de Crédito
Móvel na Barra da Tijuca e Jacarepaguá desde pelo menos fins do século XIX. E
esse não era um caso único. Em várias partes da zona rural da cidade pipocavam
disputas de terras que onde os dois lados da contenda juravam ter o título de
propriedade verdadeiro do lugar. Ou seja, alguém ali estava mentindo. Pelo
menos um deles estava querendo se apropriar ilegalmente de uma parcela que não
teria direito. Mas a questão podia ser mais grave: era possível que nenhum dos
dois pudesse ter razão. Podia se tratar de uma tentativa de ambos de açambarcar
terras que poderia pertencem ao poder público ou a um terceiro ente privado.
Nenhuma hipótese podia ser descartada, pois a regularização fundiária da região
era quase letra morta. Valia ali a lei do mais forte.
Mas tudo passou a
se complicar ainda mais quando as terras das grandes fazendas da região foram
sendo retalhadas entre as últimas décadas do XIX e primeiras do XX. E com a
avultada valorização delas, mais e mais agentes querendo lucrar com o
loteamento daquelas terras foram se interessando pela região.
Foi nesse contexto
que o Itanhangá Gold Club foi ali instalado. Além da sua fixação ali ser indicativo
da valorização imobiliária, há que destacar que ele simbolizava um plano mais
abrangente de direcionar a expansão urbana e imobiliária da região (em especial
Barra da Tijuca, Itanhangá e Jacarepaguá) em favor das classes média e alta da
sociedade carioca.
É bastante
sugestivo que no relato sobre o lançamento da pedra fundamental do clube,
ocorrido em 13 de setembro de 1936, e que contou com a presença do então
presidente da República Getúlio Vargas, o autor destacasse a presença de
“elevado numero de senhoras e senhoritas da nossa melhor sociedade” (A Noite,
14/09/1936).
Ao mesmo tempo, se
a inauguração do clube era representativa da expansão imobiliária da região, o
estabelecimento do Itanhangá ali agia decisivamente como fator impulsionador da
valorização do lugar. Se ele só foi construído ali porque os poderes públicos
construíram estradas como a do Joá, Furnas e do Alto da Boa Vista, que
permitiam aos ricaços da cidade e suas famílias acessassem o Itanhangá Golf
Club. E que também só foi possível porque o Governo Federal tenha realizado uma
série de obras de saneamento daquela região da Baixada de Jacarepaguá por meio
do DNOS, tornando-o saneado e salubre. Foi por conta também do Itanhangá Golf
Club que muitos agentes do mercado imobiliário carioca passaram a pensar
naquela região como uma oportunidade verdadeiramente auspiciosa de
investimento. Foi a partir exatamente dos anos 40 que grandes loteamentos
passaram a ser lançados naquele ponto do território da Baixada de Jacarepaguá.
E emblemático que os anúncios destacassem a proximidade em relação ao clube.
Fonte: Correio da Manhã, 4/11/1949, p. 7.
Fonte: Correio da Manhã, 14/031954, 3º Caderno, Parte 1, p. 16
Muito mais curioso é que as próprias obras governamentais buscavam justificar a sua importância se respaldando na existência do Itanhangá Golf na região.
A reportagem
publicada pelo Radical em 1942 é bastante simbólica dessa perspectiva.
Em texto evidentemente laudatório – que mais parecia uma peça de propaganda
imobiliária – sobre “as obras admiráveis de nossa capital”, que enriqueciam a
cidade, onde não havia “nada que a faça paralisar no seu ritmo de progresso,
silencioso e dinâmico”, o autor destacava como uma das principais obras a
“pavimentação de um grande trecho, que vai justamente do Alto da Boa Vista até
a estrada da Barra, contornando o Joá e passando ao lado do Itanhangá Golf Club,
fazendo entroncamento com a Estrada do Pica-Pau, que vai sair em Jacarepaguá” (O
Radical, 30/06/1942, p. 5).
O autor da
“reportagem” associava tais obras a um plano do governo em promover um plano de
expansão da ocupação da Baixada de Jacarepaguá (que fazia parte do então
chamado Sertão Carioca, zona rural da cidade do Rio). Num trecho sobre as
potencialidades dessa intervenção, vemos destacado a intervenção a partir do
Alto da Boa Vista rumo a Jacarepaguá e Barra da Tijuca:
Pára e contempla a
maravilha da Natureza no derrame de tantas paisagens encantadoras. Observa no
entanto que o homem procurou dela aproximar-se fazendo no que lhe competia obra
digna. É que se sente em cada sinuosidade aberta, em cada curva fechada, em cada
refugio, canteiro, pérgolas, jardins, a mão do artífice, o fino gosto do
traçado e dos detalhes numa grandiosa avenida – a Avenida Tijuca.
Percorremo-la.
E ela, pela sua
categoria, uma estrada de montanha, de acesso comodo e desenvolvimento adequado
para ganhar altura, inscrita habilmente nos acidentes topográficos sem quebrar
a beleza natural do ambiente.
Sobre o ponto de
vista de sua utilidade, vemo-la como uma super-estrada para circulação rápida
de veículos, dotada de condições técnica excelentes, grande visibilidade, raios
de curva e rampas máximas admissíveis pelas mais recentes especificações rodoviárias
mundiais em vigor.
Por excelência ela
se torna uma estrada de turismo como raríssimas, cruzando e dominando cenários
e panoramas deslumbrantes e maravilhosos.
Contudo, a questão
que se impunha – e que a imprensa em grande medida ignorava – era de se saber
para quem esses “panoramas deslumbrantes” e essas “paisagens encantadoras”
estavam sendo minuciosamente esquadrinhados e incorporados ao sistema urbano da
cidade?
Para a população
pobre e trabalhadora é que não estava sendo feito tudo isso.
Mais de um ano
depois, matéria do Gazeta de Notícias (25/12/1943, p. 4) seguia explorando
o Itanhangá como forma de enaltecer obras que eram do governo para a região. Mais
do que isso, o teor do texto (na verdade, peça de propaganda) deixava claro que
mais do que vias de comunicação, o governo faria o máximo para dotar a região
dos melhores serviços urbanos possíveis:
A estrada
Pica-Pau-Muzema, fazendo ligação entre Itanhangá Golf Club e a Avenida
Geremário Dantas, é uma realização que trouxe grandes benefícios às populações
servidas por aquela importante via de comunicação. Contando 13 quilômetros de
extensão, nos quais tem a largura de 6,50 ms., a sua pavimentação é das mais
modernas. As sargetas(sic) para escoamento das águas pluviais teem(sic) 0,50
ms, e a faixa pavimentada a macadame betuminoso, depois de toda concluída terá
72.000 ms², dos quais já estão concluídos mais de 35.000 ms².
Em toda a extensão
da estrada foram reconstruídos quatro pontilhões em sentido transversal, sendo
três de 3 metros cada um e um de 5 metros de vão. Também foram reconstruídas
totalmente duas muralhas situadas às margens da lagoa de Jacarepaguá, uma com a
extensão de 432 metros por 1,50 de altura e outra medindo 164 metros.
O terreno das
obras era minuciosamente preparado. Não para receber loteamentos populares ou
melhorar a vida da gente humilde que ali já morava há décadas. A Barra da
Tijuca e a área circundante (aí incluído o bairro do Itanhangá) estava sendo
pensada para receber a instalação de “hotéis, cassinos, balneários e palacetes”,
como clamava a revista Beira-Mar em 1927.
Este era o caráter
das obras planejadas para a região. Numa imagem muita utilizada pelos setores
da imprensa que apoiavam vivamente os interesses do mercado imobiliário, a
expansão urbana que começa a ganhar vulto nessa parte do Sertão Carioca a
partir dos anos 1940 será frequentemente associada a uma versão carioca da “Marcha
para o Oeste”, implementada desde os tempos do Governo Getúlio Vargas. Só que
no caso carioca, o progresso era pensado incorporando aspectos estéticos e paisagísticos,
daí que a região também fosse vista para fins turísticos também: “O
aproveitamento de seus recursos naturaes cedo o transformaria em o ‘Eldorado
Carioca’!” (Beira-Mar, 15/11/1927, p. 17)
Associado a essas intervenções
urbanísticas havia o claro propósito de favorecer a ocupação do território, e o
consequente usufruto dos serviços e estruturas urbanas instaladas, em favor dos
grupos sociais de maior poder aquisitivo da cidade.
Contudo, por mais que plano para Itanhangá e Barra da Tijuca fosse aquele, a realidade foi apresentando uma trilha bem mais tortuosa, pontilhada ainda por várias encruzilhadas. Se os ricaços com o beneplácito dos poderes públicos tinham um projeto para a região, havia outros grupos com distintos planos e vivências. É o que mostrarão as disputas e tensões que vão se acirrar a partir dos anos 1950.