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sábado, 22 de setembro de 2012



Campo Grande, Guaratiba, Jacarepaguá, Irajá, Inhaúma, Tijuca, Engenho Novo, Santo Antônio e Santa Cruz – eram estes os nomes das freguesias que em conjunto formavam a zona rural da cidade do Rio de Janeiro, instituída pelo Ato Adicional de 12 de agosto de 1834. O historiador Ilmar Mattos em seu O Tempo Saquarema nos informa que eram chamadas de freguesias “de fora”, em contraste com as freguesias “de dentro”, pois, mais próximas dos centros de decisão da corte, a saber, as “instituições e instalações que tornavam possível a reprodução dos interesses dominantes”: o Paço, o Senado, a Câmara dos Deputados e a Câmara Municipal. Um pouco antes, no século XVIII, tinha sido a zona rural carioca grande produtora de açúcar. Os engenhos dos carmelitas e dos beneditinos eram as principais unidades produtoras. Só em Jacarepaguá, eram 11 os engenhos da “Veneranda Ordem de São Bento”. O século XIX traz uma aparente “decadência” econômica, ou como ele também prefere designar – um “estado de letargia produtiva”. Em vez de grandes unidades – fazendas e engenhos – serão as chácaras e sítios os responsáveis pelo novo tipo de produção. Esta nem de longe se aproximava da do século anterior, tanto que será a produção doméstica ou de subsistência a ocupar o papel de maior relevância econômica. A chamada produção comercial estará restrita a poucas fazendas, localizadas principalmente nas freguesias de Irajá e Jacarepaguá. Fora dessas regiões, a cultura do café, por exemplo, teria sido efêmera e tão somente de “fundo de quintal”. Por outro lado, chácaras e sítios de Jacarepaguá “plantavam para o gasto” (mercado interno), mas também se dedicavam a uma produção de larga escala, “com colheitas de centenas de milhares de arrobas”, voltada para o abastecimento de um mercado mais amplo. A cultura do café teria se disseminado nas encostas de morros propícias ao cultivo, as “soalheiras” (vertentes ensolaradas e bem drenadas), deixando de lado as “noruegas” (vertentes úmidas e sombrias) e as baixadas de Sepetiba e Jacarépaguá.


A região da Baixada de Jacarepaguá no Mappa do Município Neutro.



     Muitos historiadores entendiam que a partir da década de 1890 a região conheceria uma grande crise. Até aquele momento, a Zona Rural tinha-se mantido como uma área de “grande valor populacional e comercial”. Prova disso era Jacarepaguá, a freguesia de maior população escrava da Corte. Segundo o recenseamento de 1838, entre seus 7.302 habitantes, 4.491 eram escravos. O fim da escravidão somado ás outras transformações sócio-econômicas, promoveriam importantes mudanças na paisagem social da zona rural. E as representações sobre esse lugar não ficaram imunes a essas mudanças. Os autores dos relatos sobre a região interpretavam as transformações que estavam ocorrendo nessa época como indícios de “decadência” e “abandono”. É como se terras antes em plena produção tivessem sido tomadas pela esterilidade agrícola e por doenças como febre-amarela e malária. O Almanaque Laemmert de 1900 informava que a circunscrição de Guaratiba, a outrora “mais rica e florescente” do Distrito Federal, encontrava-se com seus cafezais destruídos, seus vastos campos de criação em agonia, infestada por doenças. A única coisa que talvez destoasse desse quadro de desalento era o desenvolvimento da pequena lavoura. Dizemos talvez, pois o fato era apresentado de maneira a comprovar a situação de franca decadência de uma área antes dominada por famílias tradicionais, com suas grandes propriedades e imensos cafezais. O relato de Noronha Santos, escrito no mesmo ano, é emblemático dessa visão calcada na idéia da decadência. O que o autor procura fazer com isso, é impor um marco divisório entre um antes, pleno e produtivo com grandes propriedades que funcionavam com mão-de-obra escrava, e um depois, quando o fim da escravidão impõe a tomada de novas estratégias por parte dos grandes proprietários em relação às novas formas de trabalho. Mas escrevia Noronha Santos que em Campo Grande havia “algumas” lavouras nas fazendas do Barata, do Monte Alegre, do Juriari e da Paciência, e pequenas plantações de cana em diversos sítios, “próximos dos povoados e lugarejos”. Havia também importantes fazendas de gado, “hoje abandonadas por falta de braços para o trabalho rural”. Sobre Guaratiba, em que pese o desenvolvimento da pequena lavoura e outras atividades como a extração de madeira (cedro, peroba, jequibá, canela, jacarandá e pau-ferro), “sua decadência é sensível devido às secas que têm consumido suas plantações e importantes cafezais”. Em Santa Cruz, junto a um comércio incipiente havia uma pequena lavoura existente em terras “outrora tão bem aproveitadas”.

     Essa representação que tomava a zona rural pelo viés da decadência, carregada pela nostalgia de uma “época de ouro”, não nos permite compreender importantes processos que a partir dessa época passavam a tomar forma na zona rural. Um deles diz respeito à formação e expansão de uma agricultura baseada na pequena produção. Se atentarmos para este processo com mais cuidado, veremos que a disseminação da pequena lavoura se deveu menos à derrocada da ordem dos grandes senhores de terra e mais a uma estratégia posta em prática por eles mesmos para a obtenção de ganhos econômicos e, possivelmente simbólicos.

     Uma espécie de economia de subsistência passa a dominar a zona rural a partir do último quartel do século XIX foi possibilitada pela divisão das grandes propriedades em chácaras e sítios que foram arrendadas ou aforadas aos lavradores.   Isto cumpria aos olhos dos antigos senhores de terra, dois papéis muito importantes. Primeiro, era preciso atrair uma nova mão-de-obra para as terras, a fim de que através de seu trabalho, elas se mantivessem produtivas e rentáveis. Uma das formas mais utilizada para tal fim foi a cessão da posse da terra através da enfiteuse, uma instituição jurídica que remontava à Idade Média portuguesa. Por meio dela o proprietário recebia uma pensão ou foro anual, ficando o adquirente obrigado a conservar a terra produtivamente. Mas havia nisso um segundo propósito. Ao ceder apenas o direito de posse, pretendia-se conservar a extensão territorial da grande propriedade e o domínio sobre ela. Mas o fundamental nisso tudo era a introdução na área do pequeno lavrador, seja como foreiro, arrendatário ou parceiro. Ou seja, com eles, novas relações sociais começavam a se consolidar na região. No início, esses agentes eram vistos pelos grandes proprietários como solução para a valorização de suas terras, “enquanto estas aguardam novos tempos, à espera do antigo fausto”. É de suma importância que tenhamos isso em mente quando começarmos o estudo desses “novos tempos”.

Anúncio de fins do século XIX do Jornal do Commercio.

     Mas a terra e, principalmente, o que havia nela (benfeitorias, ferramentas, plantações, etc.), proporcionaram ganhos aos seus proprietários através de outras formas. Enquanto muitos proprietários preferiram manter suas terras para fins de cultivo com a simples cessão da posse, outros preferiram inseri-las no circuito comercial de compra, venda e aluguel de terrenos e benfeitorias. Este mercado se desenvolveu nas freguesias de Irajá, Inhaúma, Tijuca, Engenho Novo e Santo Antônio. O desenvolvimento dessa forma de valorização daria ensejo, segundo Pechman, ao surgimento de um “mercado de terras” no subúrbio da cidade. Negócio que, segundo ele, mostrou ser proveitoso a partir da década de 1840. A proliferação de anúncios de venda e aluguel de terrenos e benfeitorias nas páginas de classificados dos jornais no início daquela década seria um seguro indício. Mas os próprios anúncios nos mostram o quanto é problemático afirmarmos sobre a existência, ao menos naquela época, de um mercado de terras. Vejamos então alguns deles:

-     Arrenda-se um sítio na Penha, distante 3 léguas da cidade, com muito boa casa de vivenda, excelente água, grande cafezal, muito capim, podendo tirar diariamente 12 talhas, muito arvoredo frutífero e porto de mar muito perto...
      
-     Vendem-se terras pertencentes à Ilma. Sra. D. Jerônima Duque Estrada Meyer, no Engenho Novo, um sítio com arvoredos frutíferos, um apequena casa de palha e parte das terras ainda em capoeirão...

-     Vendem-se as benfeitorias de um sítio em terras do Engenho Novo do Campinho, distrito de Inhaúma, contendo boa casa de vivenda, plantações de café, enxertos de laranja de todas as qualidades, mandiocas e bananeiras, tudo em quantidade...
    

     Dos três anúncios, só no segundo a terra aparece como o objeto de transação. O primeiro se refere a um arrendamento, ou seja, o que se negocia é o direito de uso sobre a terra e não a terra em si. No terceiro, o que se põe a venda são as benfeitorias. Isso passará a mudar a partir de 1870 com a extensão das linhas de trem e de bonde em direção aos subúrbios, de um lado, e a abertura de ruas, do outro. Neste momento, parte da zona rural – compreendida pelas freguesias referidas acima – passará a ver a transformação de suas fazendas em lotes urbanos. Numa área que vai até o limite entre a freguesia de Inhaúma e Jacarepaguá, verifica-se uma diminuição do tamanho dos terrenos postos à venda e uma nova lógica na repartição da terra. Cabe lembrar que os lotes vendidos localizavam-se em áreas arruadas e faziam parte de um conjunto de outros lotes, “caracterizando, sem sombra de dúvidas, um processo de constituição de uma malha urbana”. Esta só se consolidaria a partir da década de 1890, quando si inicia a urbanização dos bairros do subúrbio como Engenho Novo e Méier. Data dessa época o grande número de pedidos encaminhados à Diretoria de Obras e Viação para abertura, nivelamento e calçamento de ruas, prolongamento e aceitação de logradouros, e licenças para construir. A intensidade desse processo fará com que, iniciado o século XIX, as freguesias de Inhaúma, Irajá, Engenho Novo, Tijuca e Santo Antônio passem a constituir uma “franja urbano-rural”, onde é intensa a mistura de usos dos dois tipos. Mesmo as freguesias que ainda eminentemente rurais (onde a maior parte das propriedades se destinava à atividade agrícola) entrarão no novo século tendo que conviver com o aprofundamento de um processo de urbanização, que se dá seja através do retalhamento das terras, seja pela expansão de obras urbanas com a extensão de linhas de trem, bonde e abertura de ruas e avenidas. Mas por se tratar de um processo marcadamente lento, os usos urbanos terão de conviver forçosamente com os usos rurais, ainda amplamente dominantes.

Outro anúncio do JC.


     O século XIX terminava mas a região tinha bons motivos para não ser considerada decadente. Em primeiro lugar, há um significativo mercado girando em torno do uso sobre a terra (sob a forma principalmente do arrendamento), e o desenvolvimento de um “mercado de terras”, bem mais tímido é verdade. Mas tanto um como outro ajudavam a expandir uma agricultura baseada em pequenas unidades de produção e lançar as primeiras sementes de uma malha urbana no subúrbio do Rio, e que nas freguesias mais próximas do centro da cidade já se encontrava consolidada desde a década de 1890. Em segundo, o fato dos antigos proprietários terem retalhado seus terrenos pode muito bem não ter sido um sintoma de decadência. Na verdade, o discurso sobre a “decadência” dizia mais respeito a um olhar saudoso da época das grandes plantações movidas pelo trabalho escravo do que a processos que efetivamente ocorriam na região.  Infelizmente alguns pesquisadores incorporariam isso em suas análises. 

Leonardo Soares dos Santos
Membro do IHJA
Professor Adjunto II do Curso de História do Polo da UFF/Campos
Coordenador do NEPETS
Professor  Colaborador da USS